Desequilíbrios

Der Rosenkavalier (O Cavalheiro da Rosa, 1911)
Ópera em três atos

Música: Richard Strauss (1864-1949)
Libreto: Hugo von Hofmannsthal (1874-1929)

Theatro Municipal de São Paulo, 05 de agosto de 2022

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Pablo Maritano

Elenco:
Marechala: Carla Filipcic, soprano
Barão Ochs: Hernán Iturralde, baixo-barítono
Octavian: Luisa Francesconi, mezzosoprano
Sophie: Lina Mendes, soprano
Faninal: Rafael Thomas, baixo
Valzacchi: Paulo Queiroz, tenor
Annina: Magda Painno, mezzosoprano
Tenor Italiano: Atalla Ayan, tenor
Marianne: Juliana Taino, mezzosoprano
Comissário de Polícia: Marcelo Ferreira, barítono

Orquestra Sinfônica Municipal
Coral Paulistano

  • Texto atualizado em 08/08/2022, para incluir a resposta oficial do TMSP sobre a necessidade de concepção e realização de novos cenários (diferentes daqueles utilizados em 2018) e novo desenho de luz para o espetáculo. A resposta foi incluída no fim do texto original, no subtítulo “Resposta do Theatro Municipal sobre os novos cenários“.

Uma mulher madura, a Marechala Marie Theres, tem como amante o jovem Conde Octavian Rofrano e, aproveitando-se que o seu marido foi caçar bem longe de casa, passa a noite com ele. Quando a cortina se abre, é de manhã, e os amantes conversam após uma noite de amor. Pouco depois, percebendo que a idade está chegando, a nobre dama prevê que o seu caso com Octavian está com os dias contados e que em breve ele se interessará por uma mulher mais jovem.

Entre esses dois momentos narrados no parágrafo anterior, chega ao palácio o Barão Ochs von Lerchenau, um homem velho, rude e de modos grosseiros, que vem pedir à Marechala, sua prima, que lhe indique um cavalheiro para levar a rosa de prata, conforme as tradições da nobreza, à sua jovem noiva, Sophie von Faninal, com quem pretende se casar por interesse. Octavian é o indicado da Marechala e, quando ele vai à casa de Sophie para entregar-lhe o regalo do noivo, se apaixona por ela à primeira vista, confirmando os temores de Marie Theres. A comédia se desenvolve até a cena derradeira, quando a Marechala intervém para garantir a felicidade de Octavian e Sophie.

Este é o resumo da trama de Der Rosenkavalier (O Cavalheiro da Rosa), ópera em três atos de Richard Strauss sobre um libreto original de Hugo von Hofmannsthal, que é a quarta produção da temporada lírica 2022 do Theatro Municipal de São Paulo, onde ficará em cartaz por apenas cinco récitas até o dia 13 de agosto.

Recentemente, em um texto publicado aqui em Notas Musicais a respeito da produção da mesma ópera que viu em Munique, na Alemanha, Fabiana Crepaldi fez uma análise mais aprofundada da obra. Aos interessados, recomendo a leitura (leia aqui).

Carla Filipcic e Luisa Francesconi

Remontagem que não é remontagem

As primeiras notícias que surgiram na imprensa sobre o retorno de Der Rosenkavalier ao palco do Municipal paulistano davam conta de que a produção se trataria de uma remontagem daquela que subiu à cena em 2018. O próprio TMSP reafirma isso na página 23 do programa de sala da ópera: em um texto assinado a quatro mãos, Alessandra Costa (diretora executiva da Organização Social Sustenidos) e Andrea Caruso Saturnino (diretora geral da casa) afirmam que o Theatro Municipal recebe a ópera de Strauss “com belíssima remontagem cênica de Pablo Maritano”.

Bem, o que se viu no palco, definitivamente, não foi uma remontagem. No máximo, e com grande benevolência, pode-se dizer que foi uma releitura. Em 2018, a encenação do diretor argentino Pablo Maritano havia contado com cenários de caráter mais tradicional de Italo Grassi, que combinavam bem, em termos cromáticos, com os figurinos de Fábio Namatame. Os cenários de Grassi, no entanto, não estão mais disponíveis: conta-se nos bastidores que foram consumidos por cupins. Se isso for verdade, seria também um exemplo perfeito de como são “preservadas” as produções de ópera no Brasil.

Assim, para a presente releitura, foi necessário criar novos cenários, tarefa que coube a Desirée Bastos: com elementos (cama, porta, armário, mesas, cadeiras, luminárias, etc.) pendurados em cabos de aço que sobem e descem conforme a necessidade de cada cena, a cenografia dialoga muito bem esteticamente com a nova proposta do encenador, que busca mesclar realidade e sonho, e com a luz de Aline Santini, eficiente na maior parte do tempo. Ainda assim, é preciso dizer que, se por um lado os cenários permitem que as cenas se desenvolvam de maneira bastante dinâmica, por outro, o fato de serem bastante vazados dão menos sustentação à projeção das vozes dos cantores.

Ao contrário de 2018, no entanto, há um contraste muito perceptível entre os novos cenários e os figurinos que Namatame concebeu há quatro anos, especialmente aqueles de caráter mais caricato. E esse é o primeiro desequilíbrio mencionado no título desta resenha: em alguns momentos, cenários e figurinos não combinam. É um risco que se corre quando se aposta nesse tipo de mistura.

Merece destaque especial a direção de cena de Pablo Maritano. Todos no palco sabem exatamente o que fazer, inclusive o coro (o que não é muito habitual em produções brasileiras). Tanto as passagens mais cômicas quanto os momentos sérios da obra são realizados cenicamente com bastante precisão.

Orquestra alta e oscilações vocais

Lina Mendes e Luisa Francesconi

Na récita de estreia, em 05 de agosto, a Orquestra Sinfônica Municipal, conduzida como sempre por Roberto Minczuk, enfrentou alguns problemas de sonoridade, especialmente no começo do primeiro ato, desencontros entre o fosso e o palco e entre o próprio conjunto. A dinâmica empregada pelo regente não favoreceu a obra (expressividade foi item raro), e muito menos os solistas: com o volume orquestral quase sempre mais alto que o necessário, os cantores sofreram, e todos foram encobertos em algum momento. Mais um desequilíbrio, pois.

É pena, mas, mesmo depois de alguns anos sendo praticamente o único regente a conduzir óperas no TMSP, Roberto Minczuk parece ainda não ter compreendido que, em uma ópera, as estrelas do espetáculo estão no palco, e não no fosso. E é exatamente nas estrelas do espetáculo que o trabalho do regente deve se concentrar em primeiro lugar; ele deve procurar, ao máximo, facilitar o trabalho dos cantores, não o contrário.

Quando somamos a orquestra alta e os cenários vazados, chegamos ao terceiro desequilíbrio dessa produção, que se concentra na performance vocal geral do espetáculo, como veremos a partir de agora. O Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira, apresentou-se bem, tanto vocal quanto cenicamente. Dentre os solistas, e já de antemão lembrando que todos apresentaram excelente desempenho cênico, Andrey Mira (Garçom), Felipe Bertol (Lacaio da Marechala), Isaque Oliveira, Diógenes Gomes, Alexandre Bialecki (Lacaios da Marechala e também Garçons), Cecília Massa (Modista), Renato Tenreiro (Vendedor de Animais) e Marcio Marangon (Notário) foram discretos em suas pequenas partes.

Gabriella Rossi, Laiana Oliveira e Elaine Martorano souberam aproveitar bem as três órfãs, com vozes claras e corretas. Pode-se dizer o mesmo do Estalajadeiro de Daniel Umbelino e dos dois Mordomos (o da Marechala e o de Faninal) interpretados por Miguel Geraldi – Umbelino sofreu um pouco mais com o volume da orquestra.

Os principais destaques do elenco terciário da montagem foram o barítono Marcelo Ferreira, que cantou com segurança a parte do Comissário de Polícia; a mezzosoprano Juliana Taino, que exibiu belos agudos e boa presença como Marianne; e o tenor Atalla Ayan, que, em participação especial, interpretou o Tenor Italiano muito bem e com a devida afetação.

A mezzosoprano Magda Painno (Annina) e o tenor Paulo Queiroz (Valzacchi) ofereceram performances razoáveis, ainda que sem maior brilho vocal. Painno, diga-se, ainda apresentou uma bela região média. Já como Faninal, o baixo Rafael Thomas foi bastante burocrático e apresentou afinação imprecisa.

Ainda que se possa dizer que os quatro solistas principais se apresentaram bem, é necessário, ao mesmo tempo, apontar que algumas imprecisões impediram performances perfeitas. A soprano Lina Mendes interpretou Sophie com excelência cênica, expressando muito bem o deslumbramento da personagem diante da iminência de integrar a nobreza, a paixão à primeira vista por Octavian, a decepção diante do noivo escolhido por seu pai, e os sentimentos ambíguos que tomam a personagem no trio quase no final da ópera. Alguns agudos, no entanto, foram marcados pela imprecisão, tanto na afinação quanto na qualidade da emissão.

Carla Filipcic

Duas artistas maiúsculas, que já haviam interpretado as mesmas partes em 2018, a mezzosoprano Luisa Francesconi e soprano argentina Carla Filipcic ofereceram boas performances, mas que estavam pelo menos um degrau abaixo em relação à montagem original. O Octavian da Francesconi oscilou entre alguns momentos de timidez e os rompantes naturais da adolescência com a expressividade e a inteligência que são peculiares à sua intérprete, que deixou transparecer, no entanto, alguma dificuldade na emissão de certos agudos.

Já a Marechala de Filipcic apresentou problemas ainda mais aparentes nos agudos, mas uma região média consistente manteve a sua atuação em nível minimamente satisfatório. A força da sua presença cênica, o entendimento sensível de uma personagem complexa e uma musicalidade expressiva foram os seus pontos fortes.

Figura central de Der Rosenkavalier, o Barão Ochs foi interpretado em 2018 por um péssimo baixo alemão escalado de última hora. Para compensar, neste retorno da ópera de Strauss ao palco do Theatro Municipal de São Paulo, foi exatamente o intérprete do Barão o principal destaque vocal da récita de estreia: o baixo-barítono argentino Hernán Iturralde. Eu já o tinha escutado há alguns anos em um concerto no Rio de Janeiro (Requiem de Verdi) e, em 2018, na produção mineira de O Holandês Errante, de Wagner. Já sabia, por isso, que Iturralde é um ótimo cantor, mas tinha algumas dúvidas sobre como ele se sairia na parte hercúlea de Ochs.

O resultado do seu trabalho foi extremamente positivo. É verdade que, por ser baixo-barítono, faltaram-lhe as notas da região mais grave da parte do Barão, que seriam facilmente alcançáveis por um bom baixo profundo. Exceto por isso, o Ochs de Iturralde foi excelente, com voz potente, segura e de técnica apurada. Musical e expressivo, o artista soube imprimir à sua atuação todas as facetas do Barão: rústico, grosseiro, interesseiro, mundano e misógino, para além de um verdadeiro fanfarrão. Movimentação, gestos, olhares, tudo tinha um sentido em sua atuação. Foi a melhor performance ao vivo de um cantor lírico que pude presenciar até o momento em 2022.

Assim, entre alguns desequilíbrios, há o que se salve na atual produção paulistana desta maravilhosa ópera de Strauss. E eu diria que, se o regente ajustasse o volume da orquestra, pelo menos algumas das oscilações vocais aqui narradas se ajustariam naturalmente.

Perguntar não ofende

Quando John Neschling era diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo e regente titular da OSM, era comum que, ao longo das temporadas líricas da casa, regentes convidados fossem escalados para algumas óperas. A prática de se trabalhar com regentes convidados, além do regente titular, é salutar para qualquer orquestra, teatro de ópera, e até mesmo para o público. Para ficar em apenas um exemplo, é impossível não lembrar do trabalho primoroso que o regente russo Vladimir Ponkin realizou com a OSM em 2016 durante a temporada da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, de Shostakovich.

Desde que Roberto Minczuk chegou à regência titular da OSM, no entanto, tal expediente foi praticamente abolido nas temporadas líricas do TMSP. Por que será?

O “Cavalheiro” da Rosa

O dicionário de alemão define assim, em tradução livre, a palavra Kavalier: “Homem de comportamento distinto, discreto e cortês, especialmente com as mulheres, homem do mundo; amante, admirador; homem nobre, homem da corte”. Em todas essas acepções, a tradução mais próxima da palavra em português seria “cavalheiro”.

Consequentemente, a tradução para o português mais próxima do sentido original de Der Rosenkavalier, portanto, é “O Cavalheiro da Rosa”. Devido a um erro de tradução ocorrido há muitas décadas, até hoje é comum, talvez por tradição, traduzir o título da ópera como “O Cavaleiro da Rosa”. Por que os teatros brasileiros e a grande maioria das publicações nacionais não corrigem esse erro, não se sabe.

Luisa Francesconi, Hernán Iturralde e Carla Filipcic

Resposta do Theatro Municipal sobre os novos cenários

Na semana passada, Notas Musicais questionou o Theatro Municipal de São Paulo, via assessoria de imprensa, a respeito: a) da necessidade de conceber e realizar novos cenários e novo desenho de luz para o que havia sido anunciado como uma remontagem da produção de 2018; b) da necessidade de inclusão de um “*” na página oficial da produção no site da casa para informar que Fábio Namatame era o responsável pela concepção de figurino da montagem de 2018. Nesta segunda-feira, após a publicação desta resenha, recebemos a seguinte resposta oficial do TMSP:

“É uma remontagem, com o mesmo diretor cênico, Pablo Maritano, com o coral Paulistano e com o mesmo figurino, parte da cenografia foi refeita, porque não tínhamos no acervo do Theatro a cenografia completa, tal como foi feita em 2018, então foi necessário fazer uma readequação para essa montagem. Foi inspirada e usa os objetos de cena da primeira montagem, mas colocados de uma outra forma. O Itálo não estava no Brasil, então o diretor cênico sugeriu a Desirée Bastos, para fazer a leitura poética e trazer de um outro modo a cenografia. Obviamente quando muda a cenografia, muda também todo o desenho de luz, como o Caetano Vilela, infelizmente, não estava disponível nesse período, então convidamos a Aline Santini para fazer esse desenho de luz. Dessa forma, a montagem é da mesma direção, a mesma concepção cênica, com os elementos que nos restaram no acervo do Theatro. Quanto ao asterisco, quer dizer *Concepção de figurino da montagem de 2018. Nesta versão, serão utilizadas também peças de acervo do Theatro Municipal de São Paulo”.

Nota do Editor: Agradecemos a atenção e a resposta do TMSP.

Fotos: Stig de Lavor.

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