Texto de Fabio Zanon:
GuitarCoop orgulhosamente apresenta, pela primeira vez em formato digital, um LP do lendário Duo Abreu. Este é o segundo álbum do duo, gravado nos estúdios EMI na Abbey Road, em Londres, em 1969, e lançado mundialmente pela CBS em 1971. Parece que eles não faziam ideia de que uma banda chamada The Beatles havia gravado um álbum chamado Abbey Road, no mesmo estúdio, poucos meses antes; mas estavam plenamente conscientes de que lá Arturo Benedetti Michelangeli e Arthur Schnabel tinham feito gravações icônicas.
Cada um dos três álbuns lançados pelo Duo Abreu entre 1969 e 1973 (dois dos quais,
esdruxulamente, carregam o mesmo título, The Guitars of Sergio and Eduardo Abreu) é igualmente icônico. Este de 1971 está entre os dois ou três álbuns de violão que mais escutei em minha vida, sempre “ouvindo com uma lupa” para tentar compreender a misteriosa perfeição artística. O repertório sedutor; a sonoridade ao mesmo tempo imaculada e contundente; a interpretação inocente e aguçada; a sensação de que a realização técnica paira acima das contingências – tudo isso intrigou e assombrou toda uma geração de violonistas que ainda o ouvem com devoção.
Sérgio, modestamente, atribuía a magia sonora aos instrumentos usados na gravação, um Hauser 1930 e um Santos Hernández 1920. Este deveria ter sido o primeiro disco comercial do duo. Ao chegar para um concerto em Londres, em 1968, eles já haviam se comprometido a gravar para a CBS, porém o diretor de outra gravadora, a Decca, esteve presente nesse concerto e fez uma proposta. As duas gravadoras fizeram um acordo e, naquela mesma semana, eles gravaram um primeiro álbum pela Decca, gentilmente cedidos pela CBS. Em conjunto, estes dois LPs trazem um resumo do repertório testado e aprovado que Sérgio e Eduardo tocavam nessa época. Apesar de composto por várias peças curtas de compositores diferentes, ele se desdobra com fluidez, quase como uma suíte.
Nada se sabe sobre Jane Pickering além do livro de peças de alaúde que ela compilou, com uma linda caligrafia, a partir de 1616. Ele nos dá um retrato da prática musical doméstica de então, e começa com uma seleção de duos, incluindo os encantadores Drewries Accordes e La Rossignol. “Drewry” é um nome masculino que evoca amor e amizade, musicalmente representados pelo diálogo em forma de eco entre os dois violões. Publicado em Paris 122 anos depois, o 3º movimento da primeira das 6 Sonatas Canônicas de Telemann tece uma continuidade da doçura de Drewries Accordes. Georg Phillip Telemann foi uma locomotiva musical, cujas obras, que se contam aos milhares, sempre estiverem à frente das rápidas mudanças da moda no século 18. Este pequeno cânone ilustra perfeitamente sua convicção de que a música deveria ser acessível a todos e abreviar as divergências.
O Duo Abreu dissipa a percepção equivocada de Telemann como um compositor menor, colocando-o ao lado de seus contemporâneos Scarlatti e Bach. Esta gravação, de delicadeza feérica, deve ter contribuído muito para a popularidade da Sonata K.9, conhecida como Pastorale, de Domenico Scarlatti, em arranjo de Emílio Pujol. Ela é complementada pela vitalidade do 3º Prelúdio d´O Cravo Bem Temperado, de Bach, fechando o primeiro bloco deste programa.
Em seguida, ouvimos a Sonata em Ré Maior, às vezes numerada como Op. 21, original para violino e violão, do obscuro compositor alemão Christian Scheidler (1747-1829). Sua pouco documentada biografia revela um músico que trabalhou como alaudista, violoncelista e fagotista em várias cortes reais; ele é também creditado como um dos agentes da transição do alaúde para o violão no final do século. O Duo Abreu aqui demonstra como uma obra bastante convencional pode ganhar estatura através de uma interpretação bem considerada, vibrante e com sonoridade mágica. Essa magia permeia também o Tema e Variações, uma versão abreviada do duo L´Encouragement, Op. 34, de Fernando Sor (1778-1834), dedicado “a seus alunos”. A versão do Duo Abreu elimina a longa introdução e enxuga a prolixidade do final. Esta, sim, é uma pequena obra-prima de inventividade e equilíbrio clássico, tocada com imenso desvelo e afeição.
O que era, originalmente, o lado B do LP é composto exclusivamente por música espanhola do século 20. Pujol assina o arranjo do Intermezzo da ópera Goyescas, de Granados, uma obra que, tocada ao violão, é algo aparentada à tonadilla La Maja de Goya. Ela é seguida pela Tonadilla em 3 movimentos, escrita em 1959 por Joaquín Rodrigo e estreada no mesmo ano, em Lille, pelo Duo Presti-Lagoya. O compositor nos diz que a tonadilla tem função similar ao intermezzo da ópera italiana: um interlúdio musical de transição entre dois atos, sejam burlescos ou trágicos; dessa forma, ela é flexível para expressar atmosferas contrastantes. Esta obra se assemelha a uma pequena sonata para dois violões, com um primeiro movimento em forma de tocata, áspero em sua bitonalidade, um minueto central que faz eco às sonatas de Scarlatti, e um terceiro movimento atlético e humorístico. Por sua enorme gama de expressão e dinâmica, seu imaculado virtuosismo e aristocrática firmeza rítmica, esta é a gravação de referência desta obra.
Evocación é a primeira peça da maior obra pianística de Albéniz, a suíte Iberia. O arranjo de Sérgio preserva a sutileza dos detalhes do original e lhe acrescenta um colorido envolvente e nostálgico. Ela faz um belo par com outra transcrição de Pujol, a Dança do início do segundo ato de La Vida Breve, de Manuel de Falla, erroneamente chamada de Dança Espanhola depois de ter sido arranjado para violino por Kreisler. Dentre os muitos excertos puramente instrumentais dessa ópera, esta dança é o mais conhecido e empolgante; ela pontua o momento em que o povo celebra um casamento que termina em ciúme e sangue. O Duo Abreu transmite a iminência de perigo da ação original com uma execução ousada, um perfeito desfecho para um álbum perfeito, cujo efeito hipnótico se sustenta num crescendo da primeira à última nota, e cuja gloriosa sonoridade pode agora ser apreciada em formato digital.
Ouça o álbum clicando aqui.
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Foto: internet.