“El Último Sueño de Frida y Diego” em São Francisco

El Último Sueño de Frida y Diego (2022)
Ópera em dois atos
Música: Gabriela Lena Frank
Libreto: Nilo Cruz
War Memorial Opera House (São Francisco), 13 de junho de 2023
Direção musical: Roberto Kalb
Direção cênica: Lorena Maza
Frida Kahlo: Daniela Mack, mezzosoprano
Diego Rivera: Alfredo Daza, barítono
Catrina: Yaritza Véliz, soprano
Leonardo: Jake Ingbar, contratenor
Aldeão #1: John Fulton, barítono
Aldeão #2/Muchacho: Moisés Salazar, tenor
Aldeão #3: Ricardo Lugo, baixo
Imagem de Frida #1: Mikayla Sager, soprano
Imagem de Frida #2: Nikola Printz, mezzosoprano
Imagem de Frida #3: Gabrielle Beteag, mezzosoprano
Guadalupe Ponti: Whitney Steele, mezzosoprano
San Francisco Opera Orchestra
San Francisco Opera Chorus

Como último título da temporada que marca o seu centenário, a Ópera de São Francisco ofereceu a estreia local de El Último Sueño de Frida y Diego, uma ópera em dois atos da compositora Gabriela Lena Frank, com libreto do dramaturgo cubano Nilo Cruz, cuja estreia mundial ocorreu em 29 de outubro de 2022 no Civic Theatre, de San Diego, sede da companhia na cidade. Outro importante teatro californiano, a Ópera de Los Angeles, também programou a estreia em seu palco para novembro deste ano, garantindo, assim, que os primeiros passos dessa obra ocorram na Costa Oeste dos Estados Unidos, especificamente na Califórnia, que tem uma grande população de falantes da língua espanhola.

A presença de Lena Frank e sua ópera tornou-se um evento histórico para São Francisco e para a  região, que tem uma ampla oferta cultural e musical: além do fato de a compositora ser natural da cidade de Berkeley, localizada a poucos quilômetros de São Francisco, do outro lado da baía, ela se tornou a primeira compositora mulher a ter uma obra encomendada por esse importante teatro para ser encenada em seu palco principal, além do fato de que El Último Sueno de Frida y Diego é a primeira ópera composta e cantada inteiramente em espanhol na história desse teatro.

O cenário não poderia ser mais animador: a obra foi apresentada dentro de uma temporada de grande significado e relevância para esta casa de ópera, que começou com a estreia mundial de Anthony and Cleopatra, de John Adams, um compositor com uma relação próxima com o teatro, também residente nesta região, e que tem em seu repertório uma ópera-oratório com texto em espanhol: El Niño, encomendada pelo Théâtre du Châtelet, de Paris, que lá estreou em 2000 e também foi apresentada no Carnegie Hall, em Nova York, na Ópera de Los Angeles, e está programado para a próxima temporada da Houston Symphony — eis um exemplo de como um renomado compositor americano também tem apresentado, em seu país, sua obra em espanhol.

Na realidade, são poucos teatros americanos que produzem óperas em espanhol. Há, contudo, honrosas exceções: em 1993, o compositor mexicano Daniel Catán conseguiu convencer a Ópera de San Diego a encenar a sua ópera em espanhol, La Hija de Rappacini, e se tornou um pioneiro desse gênero, se é que podemos chamá-lo assim, o que posteriormente gerou o interesse da Ópera de Houston em encomendar várias óperas em espanhol, das quais surgiu a criação de Florencia en el Amazonas, a ópera em espanhol mais encenada nos Estados Unidos, seguida por Il Postino, encomendada pela Ópera de Los Angeles; sem esquecer a trilogia de óperas-mariachi, criada pelo compositor Javier Martínez e pelo libretista Leonard Foglia, encomendada pelos teatros de Houston e Chicago.

Seria um discurso árduo, talvez inadequado e desnecessário, debater por que as óperas em espanhol, com exceções como as já mencionadas, não são encenadas com mais frequência nos teatros de um país com uma enorme população de falantes de espanhol. O que é certo é que o público que gosta desse gênero e que o tem profundamente enraizado dentro de si continuará a assistir e a consumir qualquer coisa chamada ópera, que é, em última análise, um gênero perene, incessante e universal, independentemente do idioma em que é cantado.

O grande sucesso de Lena Frank e Nilo Cruz foi ter se concentrado na figura de dois artistas plásticos mexicanos relevantes, muito conhecidos e famosos na atualidade (de fato, Frida Kahlo é atualmente uma espécie de mito e figura admirada), criando uma história fictícia com o fascínio que Kahlo e Rivera sentiam pela vida após a morte e pela festa mexicana do dia de finados.  Como a compositora explicou em várias ocasiões, a criação dessa obra, sua primeira e até hoje única ópera, foi uma tarefa longa e árdua, pois levou cerca de 15 anos até que ela pudesse finalmente ver o seu trabalho no palco. Esse período, porém, não só a ajudou a fortalecer e forjar uma estreita relação de trabalho e criação com o próprio Cruz, mas também a refinar e encontrar o seu próprio estilo musical e de orquestração, e a entender melhor a voz, como refletido nesse trabalho, que eu pessoalmente acredito que está destinado a transcender, pois tem os elementos necessários para atrair teatros e orquestras. Em sua suntuosa e rica orquestração, em uma partitura que incorpora sons com uma influência marcante da música folclórica mexicana, vale a pena mencionar, por exemplo, o uso constante da marimba e dos alegres metais, que ela amalgamou com sons clássicos e contemporâneos de bom acabamento, criando momentos que cativaram, que surpreenderam e que atraíram, acima de tudo, por sua virtude de lidar e destacar o aspecto vocal, o cantabile e o coral, com os quais ele dotou os personagens e o coro.

A trama se passa em 02 de novembro de 1957, no dia de finados, alguns dias antes da morte de Diego Rivera e três anos após a morte de Frida Kahlo. Naquele dia, Diego Rivera estava visitando um cemitério, cercado por pessoas que vieram honrar os espíritos de seus entes queridos; e é ali que, diante de sua solidão, Diego pede a Frida que volte. Aparece uma mulher idosa vendendo flores, que na verdade é Catrina, guardiã dos mortos. Em Mictlan, o mundo dos mortos asteca, Catrina ordena que Frida retorne para acompanhar seu marido moribundo em sua jornada até o fim da vida – aqui é possível distinguir uma certa influência e semelhança com Orfeu e Eurídice, e na Catrina uma certa aproximação com o Mefistófeles de Fausto. No mundo dos mortos, Frida conhece o jovem Leonardo, um jovem ator que, personificando Greta Garbo, busca retornar ao mundo dos humanos, convencendo-a de que ela também deveria fazê-lo. Catrina permite que Frida retorne ao mundo dos vivos por apenas 24 horas, com a condição de que ela não toque nos vivos, dizendo-lhe: “Uma carícia pode lhe custar a lembrança de sua dor”. Sem inspiração, Diego encontra Frida na Alameda, e é aqui que ocorre um dos momentos mais vocalmente evocativos da peça, em que o próprio Diego, sentindo sua morte se aproximar, vai com Frida para sua Casa Azul em Coyoacán. Frida tenta pintar, mas não consegue porque não consegue encontrar o reflexo de sua imagem. Diego a incentiva a pintar, e é aqui que uma sequência bem elaborada de suas pinturas e imagens aparece no palco. Ao amanhecer, Frida deve retornar ao mundo dos mortos, e Diego entende que a única maneira de ela viver eternamente ao seu lado é indo também para a vida após a morte, o que finalmente consegue, graças à intervenção de Catrina e do deus Mictlantecuhtli.

Um destaque do espetáculo, além da radiante partitura de Lena Frank, foi a equipe artística mexicana, que contribuiu e aumentou a autenticidade do que foi visto no palco, com Lorena Maza (diretora cênica), Eloise Kazan (figurinista), Víctor Zapatero (iluminação). Isso sem esquecer os cenários simples, mas brilhantes e sugestivos, de Jorge Ballina, como as flores e os altares dos mortos em vários níveis no primeiro ato, que criaram cenas muito marcantes; ou a casa em Coyoacán, com a sua inconfundível e particular cor azul e cenas do seu interior; bem como as pinturas de Frida, aqui representadas por atores e membros do coro, com o forte impacto que só Frida poderia causar.

Yaritza Véliz (Catrina), Daniela Mack (Frida Kahlo) e Alfredo Daza (Diego Rivera)

Vocalmente, o elenco foi muito sólido. Frida contou com a presença da mezzosoprano argentina Daniela Mack, que mostrou compenetração com o papel, cantando com verve, uma voz sedutora e dicção admirável, mesmo no uso de certas expressões idiomáticas mexicanas. O barítono mexicano Alfredo Daza, por sua vez, interpretou um Diego Rivera convincente e sofrido, de boa presença cênica, confiante e crível, vestido com seu inconfundível macacão de brim.  Vocalmente, ele resolveu muito bem o papel: possui uma voz redonda, ampla, que adquiriu muito corpo, e sabe como modular e enunciar com elegância, demonstrando a experiência e a vivência que adquiriu em sua longa e bem-sucedida carreira.

O contratenor Jake Ingbar deu o toque cômico e lúdico, necessário no palco, com bom desempenho tanto do ponto de vista vocal quanto na caracterização como Greta Garbo. A soprano chilena Yaritza Veliz, por sua vez, personificou uma Catrina enérgica, nunca exagerada, com figurinos e maquiagem deliciosos, além de uma voz de soprano ampla e robusta, segura no registro e no fraseado.

O desempenho dos aldeões, como o tenor Moisés Salazar, o barítono John Fulton e o baixo Ricardo Lugo, foi louvável. Também devemos mencionar a soprano MIkayla Sager e as mezzosopranos Nikola Printz e Gabrielle Beteag, que no palco deram vida aos personagens e às imagens tiradas das pinturas mais famosas de Frida Kahlo, bem como o canto brilhante da mezzosoprano Whitney Steele, que deu vida ao papel de Guadalupe Ponti.

As imagens de Frida

No pódio, o maestro mexicano Roberto Kalb fez uma leitura detalhada, repleta de poesia e imaginação, com atenção aos detalhes, sombreando as cores da partitura e, acima de tudo, trazendo à tona os sons folclóricos mexicanos que a partitura oferece.  A orquestra tocou com magia, liberdade e alegria. O coro, dirigido por seu líder, John Keene, não apenas foi participativo em todas as cenas em que teve de atuar, mas também agradou muito pelo trabalho preciso e certamente árduo que seus membros tiveram para pronunciar e fazer soar o mais natural possível em seu canto a dicção em espanhol.

Por fim, cabe mencionar que as vidas de Diego Rivera e Frida Kahlo também estiveram ligadas à cidade de São Francisco, onde viveram em um estúdio entre novembro de 1930 e maio de 1931, período em que Rivera pintou três murais e Frida Kahlo vários quadros. Mais tarde, e recém-divorciados, ambos retornaram à cidade em 1940, Rivera completando mais um mural, e Kahlo, várias pinturas. O curioso é que os dois artistas decidiram se casar novamente, e a cerimônia civil foi realizada em 08 de novembro de 1940 no City Hall (Prefeitura de São Francisco), o prédio que fica do outro lado da rua e a poucos metros do War Memorial Opera House, onde, quase oitenta e três anos depois, eles foram os protagonistas de uma ópera criada em sua memória, no que certamente foi a temporada mais importante do teatro de ópera que ocupa o segundo lugar em importância e qualidade nos Estados Unidos.

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Fotos: Cory Weaver/San Francisco Opera.