Em Baden-Baden, Nina Stemme se despede do papel-título em uma produção que ressalta a tensão, o perigo iminente; em Dresden, certa rigidez domina o ambiente.
Elektra (1909) Ópera em ato único |
Música: Richard Strauss (1864-1949) Libreto: Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) |
Festspielhaus Baden-Baden, 26 de março de 2024 |
Direção musical: Kirill Petrenko Direção cênica: Phillip Stölzl e Phillip M. Krenn |
Cenografia e iluminação: Phillip Stölzl Figurinos: Kathia Maurer |
Klytämnestra: Michaela Schuster, mezzosoprano Elektra: Nina Stemme, soprano Chrysothemis: Elza van den Heever, soprano Orest: Johan Reuter, barítono Aegisth: Wolfgang Ablinger-Sperrhacke, tenor O tutor de Orest: Anthony Robin Schneider, baixo A confidente: Serafina Starke, soprano A camareira: Anna Denisova, soprano Um jovem serviçal: Lucas van Lierop, tenor Um velho serviçal: Andrew Harris, baixo A governanta: Kirsi Tiihonen, soprano As cinco criadas: Katharina Magiera, Marvic Monreal, Alexandra Ionis, Dorothea Herbert, Lauren Fagan Serviçais: Mariana Ambrožová, Ada Bílková, Eliška Grohová, Zuzana Hirschová, Tereza Kurfiřtová, Štěpánka Pýchová (Solistas do Coro Filarmônico de Praga) |
Berliner Philharmoniker |
Semperoper Dresden, 29 de março de 2024 |
Direção musical: Marc Albrecht Direção cênica: Barbara Frey |
Cenografia: Muriel Gerstner Figurinos: Bettina Walter Iluminação: Gérard Cleven |
Klytämnestra: Doris Soffel, mezzosoprano Elektra: Lise Lindstrom, soprano Chrysothemis: Gabriela Scherer, soprano Orest: John Lundgren, barítono Aegisth: Jürgen Müller, tenor Tutor de Orest: Tilmann Rönnebeck, baixo A confidente: Menna Cazel, soprano A camareira: Ute Selbig, soprano Um serviçal jovem: Timothy Oliver, tenor Um serviçal velho: Matthias Henneberg, baixo A Governanta: Kelly God, soprano As cinco criadas: Michal Doron, Nicole Chirka, Simone Schröder, Roxana Incontrera, Ofeliya Pogosyan Serviçais: solistas do Staatsopernchor Dresden |
Staatskapelle Dresden |
Nina Stemme, Kirill Petrenko, Filarmônica de Berlim e Richard Strauss. Bastaria a metade desses nomes para que eu me animasse a enfrentar horas de viagem de avião e trem até Baden-Baden, na Alemanha, para assistir à Elektra apresentada no Festival de Páscoa. Já que estava na Alemanha, com apenas mais algumas horas de trem pude ir conhecer Dresden e, claro, ver mais óperas de Richard Strauss na Semperoper: outra Elektra e Die Frau ohne Schatten (A Mulher sem Sombra), uma das minhas paixões. Em Baden-Baden, Nina Stemme se despedia do papel-título de Elektra; em Dresden, Christian Thielemann se despedia do seu cargo de maestro titular da Staatskapelle Dresden para se tornar o titular da Staatsoper Unter den Linden, de Berlim. Neste texto, discuto um pouco sobre Elektra: a obra e o que vi em Baden-Baden e em Dresden. Em breve, em outro texto, comentarei a memorável Die Frau Ohne Schatten de Dresden.
Algumas considerações sobre Elektra
Se originalmente a tragédia Elektra é bem grega, a ópera que marca a estreia da frutífera parceria entre Richard Strauss (1864-1949) e Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) é bem austríaca. Em sua Elektra, Hofmannsthal transporta a obra de Sófocles para as crises da modernidade vienense do fin-de-siècle — crise da sociedade patriarcal, da lei do pai, e da crescente misoginia — e para o reino da psicanálise, que dava os seus primeiros passos.
Embora a ação se passe na mesma Micenas de Sófocles, e haja, grosso modo, uma correspondência entre as cenas das Elektras de Hofmannsthal e Sófocles, as situações são diversas, e os diálogos, significativamente diferentes. Mais que isso, o caráter da protagonista Elektra de Hofmannsthal é diferente daquele da de Sófocles. Na tragédia grega, Elektra busca a vingança da morte do pai para que a justiça seja feita, e a família possa se libertar do crime cometido por sua mãe. Em Hofmannsthal, ela é absolutamente obcecada pela ideia de vingar a morte do pai, Agamemnon, e matar os seus assassinos: Clitemnestra, sua mãe, e Egisto, então amante de Clitemnestra e que após o crime passou a ocupar o lugar de Agamemnon. Na figura de Elektra, podem ser reconhecidos casos clínicos discutidos por Sigmund Freud e Joseph Breuer em Estudos sobre a Histeria (1893), que integrava a biblioteca de Hofmannsthal.
A Elektra de Hofmannsthal estreou como peça de teatro em 1903. Embora tenha ficado impressionado com a obra, Strauss em princípio titubeou um pouco para transformá-la em ópera, por ter julgado se tratar de um tema muito próximo a Salome, sua ópera anterior e primeiro sucesso no gênero. Hofmannsthal, porém, convenceu o compositor a fazer de Elektra a sua quarta ópera. Em janeiro de 1909, ela estreava em Dresden, mesmo teatro em que, três anos antes, Salome havia estreado.
1903 também foi o ano em que Otto Weininger publicou, em Viena, o seu famoso tratado misógino Sexo e Caráter. O feminino, segundo Weininger, pode ser associado ao material, sensual, irracional, amoral. Para ele, a supremacia do homem era fundamental para que a humanidade trilhasse um caminho mais espiritualizado. Em sua visão, enquanto o progresso da humanidade vinha do homem ariano do norte da Europa, a mulher representava o regresso ao que havia de mais primitivo.
É evidente que a publicação de Sexo e Caráter não exerceu influência sobre a obra de Hofmannsthal, uma vez que são do mesmo ano. O que interessa é que a peça foi concebida dentro da mesma sociedade vienense de fin-de-siècle que produziu e popularizou uma obra como essa de Weininger.
Sobretudo no libreto, mas também na música, é possível encontrar ecos da misoginia reinante na época e da crise de identidade da sociedade patriarcal. Em seu interessante artigo Fin-de-siecle fantasies: Elektra, Degeneration and Sexual Science, publicado no Cambridge Opera Journal em 1993, Lawrence Kramer observa que “Elektra encarna toda a anarquia física e emocional que a cultura patriarcal existe para suprimir. Mas ela o faz apenas em consequência de sua absoluta devoção a essa ordem”. Segundo Jacques Le Rider — em A Modernidade Vienense e as crises de identidade (Ed. Civilização Brasileira, 1992) –, “No mundo de Egisto, no palácio devastado de Agamemnon, Elektra deve, sozinha (…), reconstruir ‘toda a casa’; os valores masculinos foram varridos, enquanto que a utopia do matriarcado foi irreversivelmente desacreditada pela barbárie de Clitemnestra. A lei do pai foi abolida, e os homens parecem ser incapazes de retomar a ordem do mundo em suas mãos, ordem esta da qual foram outrora os principais responsáveis”.
Foi Strauss quem deu a força dramática-musical às mulheres — e sobretudo à Elektra –, mas foi Sófocles quem lhes deu o protagonismo, e Hofmannsthal quem reduziu ainda mais a importância dos papéis masculinos. Le Rider conta que, em 1903, na estreia da Elektra em Berlim, Maximiliam Harden observou quão secundários eram os papeis masculinos. Ainda segundo Le Rider, o próprio Hofmannsthal confirmou essa observação: “De minha ‘Elektra’, ele (Harden) disse a única coisa pertinente que já li a esse respeito, a saber: que seria uma peça mais bela e uma obra de arte mais pura caso Orestes estivesse pura e simplesmente ausente dela”.
Destacando a predominância dos papéis femininos, a personagem-título é uma real protagonista: não se ausenta do palco por um momento sequer, tem um objetivo bem definido e uma personalidade forte, uma subjetividade bem construída, que não dá margem a qualquer ambiguidade.
Kramer aponta que há uma dupla leitura em Elektra, o que, para ele, “representa uma complexa negociação com a misoginia da cultura supremacista. Privilegiando a subjetividade de Elektra, Strauss vai contra o cerne da cultura supremacista, que nega a legitimidade das mulheres (…) como sujeitos individuais. Por outro lado, sua caracterização de Elektra reproduz todos os traços de primitivismo — animalidade, impureza, sensualidade cruel, perversidade erótica, amoralidade, automatismo — rotineiramente atribuídos às mulheres para justificar sua negação”.
Apesar de um dos pontos altos da obra ser o monólogo da personagem-título, os diálogos predominam em Elektra. No primeiro deles, entre Elektra e sua irmã Crisóstemis, já se pode notar uma diferença significativa entre a ópera e a tragédia de Sófocles. Crisóstemis chega, como no original grego, para avisar a irmã de que Clitemnestra e Egisto pretendiam prendê-la. Daí em diante, Hofmannsthal se distancia de Sófocles e escancara a visão que a sua sociedade patriarcal tem da mulher: a reação de Elektra é se referir a Clitemnestra e Egisto como “as duas mulheres”. Em sua lógica, como Egisto matou Agamemnon pelas costas, ele é um covarde e não é, portanto, digno de ser chamado de homem: sua atitude é covarde e criminosa, feminina. No mesmo diálogo, Crisóstemis fala que deseja casar e ter filho, ser mulher: “eu sou uma mulher e quero um destino de mulher”. É aí exposta a única serventia das mulheres.
No diálogo seguinte, entre Elektra e Clitemnestra, o embate entre o masculino e o feminino dá lugar à psicanálise. No princípio, Clitemnestra vai ter com Elektra como quem vai ao psiquiatra. “Ela fala como um médico”, observa a mãe quando toma a resolução de ir falar com a filha. Clitemnestra tem seus traumas e bloqueios – “Isso me soa tão familiar. É simplesmente como se eu tivesse esquecido há muito, muito tempo”. Em sua terapia com Elektra, vai em busca de um meio de acabar com os seus pesadelos. Um de seus sonhos recentes era que estava sendo estrangulada por Orestes. A mãe considera a filha bem instruída e tenta, através dela, obter uma solução para os seus sofrimentos.
Em Sófocles a situação é bem diferente. Clitemnestra havia, de fato, tido um sonho, mas o de que Agamemnon havia ressuscitado. Em seu diálogo com Elektra, nem menciona o sonho. Sem traumas ou sentimento de culpa, a Clitemnestra grega se defende: matara Agamemnon como vingança por ele ter oferecido uma das filhas do casal, Ifigênia, em sacrifício para poder ir ajudar seu irmão Menelau em Troia. Essa justificativa nem é citada na ópera, onde a culpa de Clitemnestra é incontestável.
Clímax da ópera, a “sessão de análise” vai se transformando em algo extremamente agressivo: “O que deve sangrar? O seu próprio pescoço quando o caçador a capturar”, diz Elektra. “E eu, eu, eu, eu, eu, que o enviei a você, sou como um cão em seus calcanhares”.
Na estreia em Dresden, foi Ernestine Schumann-Heink a Clitemnestra que ouviu, da histérica Elektra vivida por Annie Krull, as palavras acima. Segundo Walter Panofsky em sua biografia de Richard Strauss, pouco tempo depois, em Nova York, ela concedeu uma entrevista contando como foi a experiência. Sobre a possibilidade de cantar Clitemnestra de novo, foi taxativa: “Nunca mais! Sinceramente, foi horrível. Sobre o palco estávamos como mulheres realmente loucas (…). Strauss nos havia olhado com olhos de mago e no final estávamos verdadeiramente loucas. Tudo isso eu disse ao próprio Strauss. De si e por si mesma sua música enlouquece um homem normal. Assim, por exemplo, começa com uma melodia bela, belíssima, ao longo de uns cinco compassos; então se arrepende de haver escrito algo belo e agradável e introduz uma dissonância que o anula. Strauss não necessita de cantores, pois é sua orquestra que fornece o quadro total, tanto o desenho quanto o colorido”.
Após receber a (falsa) notícia da morte de Orestes, seu irmão que deveria voltar para vingar a morte do pai, Elektra tenta convencer Crisóstemis de que agora elas terão que fazer a execução sozinhas. Essa é, tanto na tragédia grega quanto na ópera, a motivação do segundo diálogo entre as irmãs. A particularidade da ópera é a atitude sedutora e até erótica que Elektra tem com a irmã. É evidente que essa atitude faz parte da maquinação de Elektra para atingir o seu objetivo.
Alguns autores também veem erotismo incestuoso no diálogo seguinte, entre Elektra e Orestes. A música de Strauss, no entanto, parece transmitir mais ternura que erotismo. Após reconhecer o irmão, a atitude de Elektra é terna, maternal. Por um lado, ela se confia ao irmão, e por outro, reconhece nele o seu “menino” – mas um menino que vem vingar a morte do pai e assumir o seu lugar.
Os diálogos entre Elektra e seus familiares estão emoldurados pelo tema de Agamemnon – a primeira e a última coisa que se ouve na orquestra – e pelo monumental monólogo de Elektra e sua dança final (onde temas do monólogo são retomados). A promessa da dança triunfal, com a qual culmina o monólogo, é, no final, cumprida. Elektra e a orquestra se fundem, a música vem dela. Quanto ao tema de Agamemnon, é interessante observar que ele aparece pela primeira vez apenas na orquestra. No monólogo, Elektra o canta. No final da ópera, após as mortes de Clitemnestra e Egisto, quando a orquestra toca o tema, o nome que Crisóstemis canta não é mais o de Agamemnon, mas o de Orestes, seu sucessor. É restaurada a lei do pai. Mais que isso: a ópera está delimitada por essa lei patriarcal, está nela compreendida.
No universo de Elektra, como observou, acima, Schumann-Heink, a poderosa personagem-título rivaliza com um protagonista mais poderoso ainda: a enorme orquestra, com 105 músicos. É famosa a anedota segundo a qual, durante os ensaios para a estreia, Richard Strauss teria exclamado: “Mais alto! Ainda estou ouvindo a senhora Schumann-Heink!”. É evidente que, mesmo que a anedota seja verídica, o que Strauss queria não era que Clitemnestra não fosse plenamente ouvida, mas que a sua vida não fosse fácil, que o seu canto tivesse que lutar contra uma poderosa barreira.
Elektra em Baden-Baden: tensão permanente
Na Festspielhaus de Baden-Baden, os diretores cênicos Philipp Stölzl (que também foi responsável pelo cenografia e pela iluminação) e Philipp M. Krenn criaram um cenário funcional e abstrato para deslocar a trama da Grécia clássica ao ambiente psicanalítico. Ou, como escreveu Stölzl no programa de sala, optaram “por uma solução focada, que direciona uma lente de aumento para os personagens e seus sentimentos”.
Opressor, perigoso, íngreme, o cenário era constituído por uma escada enorme com degraus grandes e móveis. O deslocamento desses degraus permitia que a escada se transformasse ora em um muro, ora em ambientes distintos, que separavam verticalmente e confinavam os personagens, ora em ambientes que oprimiam, que não permitiam que os cantores ficassem de pé. Esse teto que oprime, que esmaga, foi utilizado, por exemplo, quando Elektra recebeu a notícia da morte de Orestes e em seu segundo dueto com Crisóstemis. Qualquer que fosse a configuração do cenário, no entanto, a tensão e o perigo estavam sempre presentes – estavam todos literalmente à beira do precipício, qualquer passo em falso poderia ser fatal. “Cada movimento nele pode ser arriscado – a natureza inquietante desse palco íngreme faz parte do conceito”, explica Stölzl.
Além do perigo iminente, os encenadores salientaram o valor do texto, da sua bagagem literária, por meio da projeção do libreto no cenário. “’Elektra’ não foi escrita para a ópera. Hofmannstahl escreveu a peça para o palco falado – há diálogos, monólogos, mas não a ária clássica, ‘stretta’ ou dueto como na ópera. A estrutura tem muitas referências à tragédia grega, às próprias origens do teatro. (…) Achamos que valia a pena experimentar se as incríveis imagens linguísticas de Hofmannsthal poderiam ser colocadas mais fortemente no centro da apresentação”, explicou Stölzl no programa.
Não eram projeções ordenadas, mas frases cujas fontes variavam em cor e tamanho, no estilo das projeções de William Kentridge em sua produção de O Nariz, de Shostakoritch, apresentada no Metropolitan Opera. A grande diferença é que Stölzl projetou o original de Elektra, em alemão, enquanto que Kentridge, por razões de ordem prática, utilizou a tradução em inglês (e não o texto em russo).
Os figurinos de Kathia Maurer eram basicamente pretos, mas todos com ornamentos que os diferenciavam e coloriam. Em Orestes, destacava-se a perna quebrada, bege; em Crisóstemis, uma espécie de lenço branco colegial; em Clitemnestra, os longos cabelos brancos; em Elektra, a peruca laranja; nas criadas, aventais brancos.
Desde a primeira cena, quando as criadas estão conversando sobre Elektra, já era perceptível que o cuidado na escolha do elenco contemplava, também, os comprimários. Katharina Magiera, Marvic Monreal, Alexandra Ionis, Dorothea Herbert e Lauren Fagan foram cinco criadas com vozes bem colocadas e bem projetadas.
Dentre o elenco principal, a soprano Elza van den Heever e a mezzosoprano Michaela Schuster já haviam feito parte, no ano passado, do elenco de alto nível de Die Frau ohne Schatten no mesmo festival. Naquela oportunidade, van den Heever brilhou como a imperatriz em busca de uma sombra e Schuster demonstrou, como a ama, os seus dotes cênicos, apesar de uma voz carente de peso nos médios e graves. Neste ano, como Clitemnestra, o poder dramático de Schuster ganhou até mais intensidade, a sua personagem foi muito bem construída, seu fraseado foi inteligente. Sua voz, contudo, mais uma vez apresentou carência nos graves e médios, de modo que ela fez uso de um som gutural, de um ronco mesmo, para que seus graves fossem ouvidos. Se, por um lado, faz sentido uma Clitemnestra com uma voz áspera, que emite sons feios e ferinos, que demonstra angústia e as suas fraquezas com a voz, por outro lado o canto perde peso, e a caracterização da personagem perde profundidade quando os graves não têm consistência.
Ainda sobre Clitemnestra, vale observar que ela foi retratada com longos cabelos brancos e rodeada pelas suas serviçais. Elas a bajulavam, acariciavam, de forma sensual. Stölzl, Krenn e Schuster foram muito felizes na construção dessa personagem que tenta demonstrar poder e força, mas, na realidade, é fraca, insegura, suscetível, sugestionável. Quando Clitemnestra morre, uma dublê rola escada abaixo, elevando ao máximo a tensão e o perigo iminente da cena.
A Crisóstemis de Elza van den Heever apareceu caracterizada como uma jovem aparentemente ingênua. A soprano ofereceu agudos penetrantes, mas os seus graves não conseguiram transpor a barreira orquestral. Apesar disso, foi memorável a sua interpretação de Kinder will ich haben, quando diz a Elektra que quer ter filhos antes que o seu corpo murche. Van den Heever cantou esse trecho de uma forma dramática, sofrida: uma Crisóstemis plenamente consciente do quão distante estava do êxtase, presente na música, que lhe provocaria a realização do seu sonho.
Os homens aparecem apenas quando a ópera está se aproximando do final. Orestes chegou com a perna engessada, de muleta – sim, pela escada! Ferido na batalha? O que importa é que arrasta as feridas da vida. Já Egisto, que chegou pedindo luz, teve a sua presença quase ofuscada por algumas lanternas. Os papéis foram interpretados de forma bastante convincente, respectivamente, pelo baixo-barítono dinamarquês Johan Reuter e pelo tenor austríaco Wolfgang Ablinger-Sperrhacke.
Sem dúvida, o grande nome, ou, mais que isso, a grande voz que brotou do enorme palco foi a de Nina Stemme. Muito se fala dos seus agudos já por vezes ásperos, da sua voz que, em alguns momentos, falha. Nada disso importa. Stemme, que anunciou que essa seria a sua última Elektra, despediu-se do papel de forma mais que digna: memorável.
A movimentação cênica nunca foi o foco dessa grande artista, que tem a rara capacidade de transmitir uma intensa dramaticidade através da expressividade da sua poderosa e penetrante voz. Stemme consegue criar uma personagem com toda a profundidade através do canto – um canto cheio de nuances, de vida. Sua voz quente combinou perfeitamente com a peruca laranja incandescente que estava usando e com o figurino preto desfiado, que a transformou em uma espécie de pássaro – um pássaro selvagem aprisionado. Ela deu vida e voz a uma Elektra com personalidade forte, essa Elektra que não dá espaço a qualquer ambiguidade, que tem um objetivo fixo e imutável, que tem os seus momentos de ternura, mas também os de fúria. Em sua Elektra, a subjetividade da personagem, fortalecida pela música e pelo canto, prevalece sobre os traços misóginos do libreto. No impactante monólogo Allein! Weh, ganz allein!, em que Elektra se dirige a Agamemnon, o pai assassinado, Stemme demonstrou o cuidado que tem com o texto. Foi, sem dúvida, o momento em que mais fez sentido a projeção do libreto no cenário.
Nina Stemme não poderia ter tido companhia melhor, no fosso, para se despedir desse papel tão marcante em sua carreira: Kirill Petrenko e a Filarmônica de Berlim. Esses dois nomes tornaram, nos últimos anos, Baden-Baden um destino obrigatório para aqueles que querem ver uma ópera executada com o máximo de refinamento e cuidado orquestral. Isso até o ano que vem, quando a ópera executada será Madama Butterfly, de Puccini, com Eleonora Buratto no papel-título. A partir de 2026, Petrenko e a Berliner passarão a se apresentar no Festival de Páscoa de Salzburg. Em Baden-Baden, teremos a Orquestra Real do Concertgebouw e a Mahler Chamber Orchestra. Será um duelo de titãs.
Conforme já foi observado acima, em Elektra a enorme orquestra tem um importante protagonismo: é sobretudo por meio dela que nos vem a irresistível música de Richard Strauss. Do fosso da Festspielhaus, brotou um som predominantemente poderoso, forte, mas sem negligenciar um único detalhe, e com a impressionante homogeneidade da Filarmônica de Berlim. Uma barreira sonora poderosa, mas permeável às vozes dos cantores, sobretudo à voz de Stemme. Ao som poderoso – mas jamais estridente, jamais barulhento ou gritado – contrastaram momentos de lirismo camerístico e até o silêncio da profunda pausa bem-marcada que precedeu o monólogo de Elektra. Petrenko e a Filarmônica de Berlim foram aplaudidos de pé (atitude que, na Europa, não é banalizada como no Brasil).
Elektra na Semperoper Dresden: rigidez
Após o impacto causado pela interpretação de Stemme e Petrenko, fui ver Elektra no teatro em que a obra estreou em 1909: a Semperoper Dresden. Como era de se esperar, dois dias de intervalo não foram suficientes para que eu conseguisse trocar a voz dramática de Stemme pela lírica e, por vezes, estridente de Lise Lindstrom – a competente cantora que entregou ao público de Dresden uma Elektra jovem, lírica, frágil e um tanto deprimida. Foi essa a proposta da diretora cênica Barbara Frey, que ambientou a obra na rígida fachada de um palácio onde há a inscrição Justitia regnorum fundamentum (a justiça é o fundamento do reino). Essa frase, lema do imperador austríaco Franz I (1830-1916), remete diretamente a Viena, mais especificamente ao Äußeres Burgtor, um dos portões do Palácio Hofburg, que foi redesenhado no início do século XX para homenagear os mortos da Primeira Guerra Mundial.
Os figurinos de Bettina Walter indicavam uma ambientação atualizada da trama, provavelmente no século XX. Desse modo, Elektra foi transportada a uma sociedade que carrega as cicatrizes emocionais da guerra. O cenário de Muriel Gerstner, que permanece estático, rígido, durante toda a ópera, se resumiu à fachada desse palácio. A rigidez foi, também, uma marca da direção de atores.
Se a inevitável comparação com a Elektra de Baden-Baden foi cruel com Lindstrom e mesmo com as cinco criadas (Michal Doron, Nicole Chirka, Simone Schröder, Roxana Incontrera e Ofeliya Pogosyan), que não tiveram o impecável desempenho de seus pares, a situação foi diferente com a Clitemnestra de Doris Soffel e com a Crisóstemis de Gabriela Scherer (esta última, estreando no papel). Ambas apresentaram um bom equilíbrio vocal, com especial destaque para Scherer. Com a sua voz poderosa, embora um pouco metálica, John Lundgren foi um Orestes correto.
À frente da excelente Staatskapelle Dresden, Marc Albrecht optou por uma leitura que valorizou o volume orquestral, mas, por muitas vezes, encobriu os cantores – sobretudo os médios e graves de Lindstrom – e deu pouco destaque às nuances da rica escrita de Strauss.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.