Soprano e baixo se destacam em apresentação na tarde de sábado.
Messa da Requiem (Missa de Réquiem), 1874
Música: Giuseppe Verdi
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
13 de maio de 2023
Tobias Volkmann, regente
Marly Montoni, soprano
Denise de Freitas, mezzosoprano
Paulo Mandarino, tenor
Christian Peregrino, baixo
Coro do Theatro Municipal
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
Quando Gioachino Rossini morreu em 1868, Giuseppe Verdi se propôs a unir forças com os seus colegas italianos para escrever um réquiem coletivo em memória do autor de O Barbeiro de Sevilha. Essa criação a várias mãos, por meio da qual os principais compositores da Itália naquele momento homenageariam um dos maiores gênios da história da ópera, acabou não vingando, mas Verdi tinha cumprido a sua parte e escrito o movimento Libera me. Com o cancelamento do projeto, ele manteve guardado esse pequeno fragmento da missa pelas almas dos mortos.
Alguns anos depois, quando do passamento do célebre escritor Alessandro Manzoni, Verdi voltou a considerar o assunto, mas, desta vez, o compositor decidiu que escreveria sozinho a missa completa, inclusive, utilizando o Libera me que havia escrito originalmente para o projeto naufragado da homenagem a Rossini. Verdi, que não mantinha relações próximas com Manzoni, mas o admirava com sinceridade, especialmente pela atuação do escritor em prol da reunificação da Itália, escreveu a sua Messa da Requiem (Missa de Réquiem) durante o ano de 1873, e a apresentou em público pela primeira vez na Igreja de San Marco, em Milão, no dia 22 de maio de 1874, exatamente um ano depois da morte de Manzoni.
Verdi era um homem de teatro até a medula, e a sua missa, além de ser uma composição magistral sob todos os aspectos, é também, na devida medida, uma obra dramática. Não somente o peso e a exuberância do coro e dos metais no Dies irae e no Tuba mirum ratificam a presença desse caráter dramático na obra, como também os bem marcados contrastes presentes na brilhante orquestração e na inteligente distribuição.
Além disso, a música do Requiem se une exemplarmente ao texto, e cada passagem da obra se liga à seguinte em um processo coeso, preciso e cuidadoso. Dentre outros, é por esses motivos aqui citados que a missa verdiana pelos mortos se localiza entre as grandes obras-primas não apenas do compositor ou do período em que foi escrita, mas da História da música.
Intensidade dramática e imprecisão técnica
Apresentado nos dias 12 e 13 de maio no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em programa da Série Celebrações que lembra os 210 anos do nascimento do compositor, o Requiem de Verdi recebeu na tarde do último sábado uma interpretação intensa, que valorizou os efeitos dramáticos da obra, mas que, ao mesmo tempo, foi tecnicamente imprecisa.
Sob a regência por vezes teatral de Tobias Volkmann, que poderia ter se contido um pouco mais no pódio, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal não chegou a repetir o bom desempenho do concerto cênico em que apresentou a ópera Piedade, realizado no fim de abril, mas, por outro lado, não esteve em seus piores dias. Os metais, como de costume, oscilaram na afinação, e aos violoncelos faltou maior expressividade. A flauta escorregou quando solou, mas, em geral, as madeiras apresentaram-se bem, assim como os violinos – ainda que, em algumas passagens, estes tenham deixado evidente a sua falta de refinamento sonoro.
O Coro do Theatro Municipal, preparado por Priscila Bomfim, seguiu pelo mesmo caminho: se passou longe da perfeição, há não muito tempo estava em piores condições. Há alguma evolução, portanto, ainda que paulatina. Em passagens como o célebre Dies Irae, a intensidade dramática compensava alguma imprecisão técnica, que ficou mais evidente no Sanctus. Em momentos mais contidos, como o introito (Requiem aeternam), o grupo mostrou-se mais homogêneo.
O quarteto solista também apresentou alguma oscilação. A mezzosoprano Denise de Freitas não destoou da linha geral do concerto, apostou na intensidade e ofereceu um Liber scriptus carregado no drama, mas descuidou de alguns ornamentos ao longo da tarde. Já o tenor Paulo Mandarino ofereceu um Ingemisco bastante musical, enquanto a região mais grave da sua voz deixou transparecer que necessita de cuidados.
A voz mais segura do concerto foi a do baixo argentino Christian Peregrino: em sua estreia no Municipal do Rio, o artista apresentou um material potente e expressivo, com afinação precisa e acabamentos bem cuidados. Desde o Mors stupebit, e passando pelo seu belíssimo Confutatis maledictis, Peregrino ofereceu um desempenho muito consistente e cativou ouvidos atentos.
Resta a soprano. Verdi poupa relativamente a mais poderosa voz humana durante quase toda a obra, não lhe concedendo nenhum solo até o movimento derradeiro: Libera me – aquele escrito originalmente para homenagear Rossini. E é aqui, na conclusão do seu Requiem, que o compositor finalmente solta a fera.
Também estreando no TMRJ, Marly Montoni demonstrou certa insegurança ao cantar praticamente todo o concerto sem tirar os olhos do regente. Isso, claro, não invalida a qualidade do seu canto, mas aponta que há arestas a aparar. E outra aresta é transição para a voz de peito: os graves estão lá, densos e sonoros, mas quase parece outra voz, outro timbre.
Feitas essas ressalvas, a soprano cantou com expressividade, exibindo agudos generosos e uma bela projeção que furou o coro até com certa facilidade. A artista fechou o concerto mantendo o nível geral de intensidade observado durante toda a tarde. Se souber lidar com as arestas que o seu instrumento ainda apresenta, Marly Montoni poderá atingir degraus mais altos em sua carreira. Só depende dela.
Fotos: Daniel Ebendinger.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.