Entre o mundo real e o fantástico universo wagneriano

Der Fliegende Holländer (O Navio Fantasma), de Richard Wagner, encerra a temporada lírica 2023 do Theatro Municipal de São Paulo com dois elencos.

Der Fliegende Holländer (O Holandês Errante, ou O Navio Fantasma, 1843)
Ópera em três atos
Música e libreto: Richard Wagner (1813-1883)
Libreto baseado em Memórias do Senhor de Schnabelewopski, de Heinrich Heine (1797-1856)
Theatro Municipal de São Paulo, 18 e 19 de novembro de 2023
Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Pablo Maritano
Cenografia e figurinos: Desirée Bastos
Vídeo: Matías Otálora
Luz: Aline Santini
Visagismo: Malonna
Holandês: Rodrigo Esteves, barítono (18) e Hernán Iturralde (19), baixo-barítono
Senta: Eiko Senda (18) e Carla Filipcic (19), sopranos
Erik: Ewandro Stenzowski (18) e Kristian Benedikt (19), tenores
Daland: Luiz-Ottavio Faria, baixo
Timoneiro: Giovanni Tristacci, tenor
Mary: Regina Elena Mesquita, mezzosoprano
Coro Lírico Municipal
Orquestra Sinfônica Municipal

Após longos oito anos, Richard Wagner retorna, finalmente, ao palco do Theatro Municipal de São Paulo com aquele que pode ser considerado seu primeiro drama: Der Fliegende Holländer (O Navio Fantasma). A obra, que encerra a temporada lírica 2023 do TMSP, havia sido apresentada na casa pela última vez em 1984, há quase quarenta anos.

A trama, baseada em Aus den Memoiren des Herren von Schnabelewopski (Memórias do Senhor de Schnabelewopski), de Heinrich Heine, típica da literatura fantástica da primeira metade do século XIX, é bastante conhecida: após ter desafiado Deus, o Holandês é condenado a errar pelos mares até o dia do Julgamento Final ou até que encontre a salvação por meio do amor de uma mulher que lhe seja realmente fiel, a ponto de dar a própria vida por ele. A cada sete anos, seu navio, que conta com tripulação fantasma, é autorizado a aportar para que o Holandês possa buscar essa redentora. Temática bastante germânica, desafiar Deus e obter a salvação por meio de uma mulher disposta a morrer remete, de imediato, ao Fausto, de Goethe.

O primeiro drama wagneriano

Em termos musicais e estruturais, pode-se dizer, grosso modo, que o Navio faz uma espécie de transição – na verdade, promove uma verdadeira revolução – entre o modelo operístico italiano do belcanto e o drama tipicamente wagneriano. No Navio, personagens e situações são rotulados musicalmente por um tema – um leitmotiv. Ao contrário, contudo, do que ocorrerá nas futuras obras de Wagner, no Navio esses temas permanecem mais ou menos constantes e facilmente reconhecíveis ao longo da obra, ou seja, não vão se transformando (ou se transformam pouco) conforme os personagens evoluem.

A afirmação – que ouvi algumas vezes nos dias em que estive no TMSP – de que o Navio é praticamente uma ópera italiana, deve ser encarada, portanto, com muita cautela. A abertura, por exemplo, apresenta os temas da ópera, coisa que ocorre em muitas aberturas italianas, só que, além de o ambiente sonoro ser muito distante daquele das óperas italianas, a abertura do Navio conta resumidamente o drama que estamos prestes a apreciar. Foi, pois, muito feliz a escolha do diretor cênico Pablo Maritano de ilustrar essa história com as gravuras de Gustave Doré para o poema The Rime of the Ancient Mariner (A Balada do Velho Marinheiro), de Samuel Taylor Coleridge, que narra a história de um marinheiro que, sem motivo, mata um albatroz que seguia o navio, provocando, assim, não somente a sua perdição, como a de sua nau com toda a tripulação.

A abertura começa com uma série de quintas justas (sem terça), nos moldes da Nona Sinfonia de Beethoven – obra que impactou Wagner profundamente e cujos ecos podem ser ouvidos no Navio. Como observou Serge Gut na Avant Scène Opéra, porém, “enquanto em Beethoven a quinta justa assume o aspecto cósmico da criação do mundo, em ‘O Navio Fantasma’ ela é um intervalo nefasto, ligado a forças diabólicas, um intervalo lúgubre pertencente ao lado sombrio do mundo sobrenatural”. Em ambos os casos, no entanto, a quinta justa transmite uma sensação de incompletude: em Beethoven, é o mundo se formando; em Wagner, o Holandês cuja alma não está encarnada. “Se o Holandês não pode morrer, é porque ele não está de fato encarnado, ele não passa – musicalmente falando – de uma quinta justa”, completa Gut. No fim da ópera, com Senta, a mulher que lhe será fiel e em cujo amor ele obterá a redenção, o acorde do Holandês será concretizado, definido, ganhará uma terça. Essa série de quintas prepara o tema do Holandês propriamente dito (que, claro, também conta com uma quinta justa).

Na produção de Maritano, enquanto ouvimos um mar agitado (constituído por quintas e cromatismos) e o tema do Holandês, vemos a projeção de uma gravura de Doré do navio, de frente, em mar revolto. Quando, em seguida, em um ambiente musical de calmaria (andante), ouvimos o tema da salvação, vemos uma gravura com os anjos. O allegro inicial retorna, trazendo o tema da errância: aparece outra gravura do navio se deslocando rapidamente pelo mar. Adiante, ao som da canção dos marinheiros, vemos a tripulação do navio de Coleridge. No final, em um momento de grande beleza, quando os temas relativos ao Holandês e a Senta se aproximam, indicando que a ópera terminará com a redenção do Holandês e os dois unidos em outro plano, aparece a imagem de dois anjos.

Não tenho a pretensão de elencar todas as imagens. Mais importante do que isso é observar que Maritano encontrou uma excelente solução para o problema que nosso tempo, tão visual, tão repleto de imagens e telas, parece ter desenvolvido com as aberturas. Deixar a cortina fechada, o teatro escuro, com a orquestra escondida no fosso, é uma alternativa plenamente natural e aceitável para os iniciados, mas pouco atraente para um público não habituado à ópera, que vê nessa situação um convite a desviar a atenção, agitar-se impaciente e ruidosamente. Por outro lado, uma excessiva movimentação no palco durante a abertura – que tem sido a opção da maior parte dos diretores cênicos – tira em demasia a atenção da música (a visão sempre ganha a batalha). Com inteligência, Maritano conseguiu, por meio das imagens, guiar e enriquecer a experiência da escuta.

O mundo real e o fantástico universo wagneriano

Primeiro ato (ao centro e de costas, na plataforma superior, Luiz-Ottavio Faria)

Maritano fez uso da estética da graphic novel para contar a história do holandês errante: uma graphic novel noir, com imagens em branco e preto, deixando a ação teatral imersa nas interessantes (embora por vezes excessivas) projeções de Matías Otálora, que ocorriam na frente e no fundo do palco. Filme e teatro se misturam, seguindo uma tendência atual que pode ser vista em algumas produções europeias, dentre as quais me ocorrem as de Davide Livermore. Fisicamente, alternavam-se no palco estruturas bem elaboradas por Desirée Bastos, como uma espécie de ponte atravessando o palco de fora a fora que sobe e desce (fazendo, inclusive, certo ruído), uma caixa (evidentemente, sem a quarta parede) de onde surgia o Holandês, também móvel, e uma singela sala, em forma de trapézio, onde as mulheres fiavam e cantavam.

Primeiro ato: Luiz-Ottavio Faria (Daland, à esquerada) e Hernán Iturralde (o Holandês, à direita)

Os personagens – e, consequentemente, as situações que os envolvem – podem ser divididos em três grupos: aqueles que pertencem a um mundo material, com canto mais próximo ao do estilo tradicional italiano (Daland, o Timoneiro, Mary e os coros masculino e feminino), os que estão ligados mais a um mundo ideal ou fantástico e que apresentam já o novo estilo de canto wagneriano (o Holandês e Senta), e um único personagem que não pertence a nenhum desses dois mundos e que, vocalmente, ocupa uma posição intermediária entre eles (Erik). Os figurinos (também de Desirée Bastos) ajudaram, de modo geral, na distinção desses grupos.

Maritano expôs essas camadas de forma bastante inteligente. Se a ópera se inicia com estruturas concretas e bem definidas, com os marinheiros, lanternas nas mãos, iluminando a penumbra, o Holandês chega na contraluz em uma caixa branca, abstrata: ele é a penumbra. No segundo ato, o mais inspirado da produção, Senta canta a sua fantástica balada – o germe, a alma da ópera – no mesmo ambiente em que as mulheres estavam fiando, só que ela está nitidamente ausente, também na penumbra, segurando um livro que, literalmente, a ilumina. Quando Senta se encontra com o Holandês, a cena se torna escura com pontos brilhantes, e eles aparecem como se estivessem flutuando pelo espaço, enquanto câmeras projetam os seus rostos: é tudo distorcido, etéreo, ideal; nada é físico, palpável. Quando Daland chega, a magia se desfaz, eles voltam à Terra, e reaparece a sala onde estavam.

Segundo ato: o coro das fiandeiras, com Regina Mesquita (Mary) ao centro e Carla Filipcic (Senta) à direita

Outros dois momentos merecem destaque. O primeiro deles é quando, no terceiro ato, primeiro canta o coro dos marinheiros “vivos” e, em seguida, o coro da tripulação do Holandês. Os coralistas são os mesmos e, na mesma cena, desempenham dois papéis. Maritano teve uma solução brilhante: quando a tripulação do Holandês começa a cantar, o coro masculino vira-se de costas, como se estivesse olhando para os outros marujos, e fica estática na contraluz. Após a morte de Senta, ela e o Holandês reaparecem, também na contraluz. Ela o segue, encerrando a ópera com uma cena bela e poética. A luz de Aline Santini teve papel fundamental no êxito da produção.  

O terceiro ato, no entanto, pecou por ter encontrado uma solução concreta demais, humana demais, para o confronto entre Erik e Senta e, sobretudo, para a morte dela. Erik a ameaça com uma faca, que acaba ficando no chão para que, mais adiante, possa ser utilizada por Senta para se suicidar e se unir ao Holandês. Se é verdade que esse desfecho mostra que Senta não pode mais viver entre os humanos, que o seu lugar é, definitivamente, no mundo abstrato do Holandês, também é verdade que ele tira a personagem daquele ambiente abstrato, ideal, no qual ela já estava e que até então estava funcionando bem: ela passa a ser retratada como alguém que atenta contra a própria vida por um fanatismo algo doentio – exatamente o que Wagner não queria para a personagem. Essa incongruência ficou mais nítida quando Eiko Senda encarnou Senta: desde o início desse ato, ela já parecia estar em outra dimensão; enquanto Erik cantava, implorava, ela nitidamente não ouvia nada, não estava mais lá, já tinha partido para o mundo sobrenatural.   

Terceiro ato: o final da ópera, com Hernán Iturralde (o Holandês) e Carla Filipcic (Senta)

No fantástico mundo wagneriano

Como dito acima, Senta é o germe da ópera: Wagner começou a composição pela balada. Mais que isso, é a chama cênica da obra, é a jovem idealista e inflamada, que vive em um universo fantástico. O papel foi feito sob medida para a soprano Wilhelmine Schröder-Devrient, cuja Leonore em Fidelio causou forte impacto no então jovem compositor justamente pela sua capacidade de transcender a música com seu talento de atriz. É interessante lembrar que em Tannhäuser, ópera seguinte de Wagner, também há uma mulher redentora – Elisabeth –, mas o papel composto para Schröder-Devrient foi outro: a inflamada e sedutora Vênus. Senta, portanto, é uma espécie de Elisabeth na pele de Vênus: tem o amor puro de Elisabeth e a chama de Vênus. Vocalmente, é um tremendo desafio, com saltos e uma exigente tessitura de duas oitavas, e a intérprete tem que cantar tudo isso atuando e lutando contra uma orquestra forte, densa.

No Municipal de São Paulo, alternaram-se no papel de Senta a já citada Eiko Senda (18/11) e a argentina Carla Filipcic (19/11). A talentosa Filipcic, com o seu belo timbre, legato e lindos pianos, salientou a delicadeza e a ingenuidade da personagem, mas o seu canto foi um tanto suave – talvez até bonito demais – em momentos em que um pouco mais de impulso e contraste seriam desejáveis (como durante a balada), e os seus agudos soaram um tanto ásperos e nem sempre precisos. Já Eiko Senda (que estou me contendo para não chamar de “Eiko Senta”) simplesmente encarnou a personagem, tanto cênica quanto vocalmente. Se acima situei Senta em um mundo ideal, não-terreno, era lá que Senda estava; se classifiquei o canto de Senta como o novo canto wagneriano, foi o que Senda demonstrou: agudos cortantes e assustadoramente precisos, que vieram de uma inflamada tensão musical e cênica; saltos e impulsos de uma personagem alucinada e obstinada; um canto perfeitamente idiomático, onde era possível sentir a força da palavra. O personagem de Senda jamais fez parte totalmente do mundo concreto, mas seu distanciamento foi crescendo ao longo da ópera, até chegar à situação anteriormente descrita, onde era nítido que ela não ouvia mais nada, não estava mais lá. É verdade que não foi um canto tranquilo, desprovido de dificuldade. Ao contrário: às vezes ela parecia estar no limite de suas forças, mas justamente por isso foi arrebatador, incandescente.

Outro personagem que pertence ao mundo das abstrações e ao nascimento do canto wagneriano é o papel-título, o Holandês, um personagem tão abstrato que nem nome possui. Como apontou Jean-François Candoni, o Holandês simboliza a humanidade moderna buscando libertar-se “dos entraves impostos pela visão de mundo cristã tradicional para tentar se tornar mestre da natureza e do mundo, mas que parece ter perdido o rumo. O desespero do capitão amaldiçoado, expresso no monólogo de abertura, constitui ao mesmo tempo uma rejeição da perspectiva de salvação e uma forma paroxística de orgulho (…)”.

Com o Holandês, pela primeira vez foi exigido que um cantor sustentasse com vigor, com violência até, contra o mar sonoro produzido pela orquestra, tanto as notas graves de um baixo quanto as agudas de um barítono. Essa figura do baixo-barítono foi criada por Johann Michael Wächter, cuja voz falhou na estreia. Às críticas de Wagner, respondeu atacando o ineditismo da escrita do papel: “Nenhuma voz no mundo foi feita para o cantar!” Além da dificuldade vocal, o Holandês exige um temperamento ao mesmo tempo explosivo, heroico, e melancólico, enigmático.

Alternaram-se no papel o brasileiro Rodrigo Esteves (18/11) e o argentino Hernán Iturralde (19/11). Como no caso de Senta, os dois intérpretes se complementaram – mais que isso: não poderíamos ter dois mais diferentes. A primeira cena do Holandês é um grande solilóquio que pode ser dividido em um recitativo – constituído por passagens contrastantes, nas quais é evidenciado o caráter enigmático do Holandês e são descritos os seus sofrimentos – e uma ária, que começa com o tema da errância pelo mar (já ouvido na orquestra) e que conta com três partes bem-marcadas.

Rodrigo Esteves parece ter realmente incorporado o Holandês durante essa primeira cena, que tem o seu ápice em “Vã esperança! Terrível ilusão!”. Conforme o prescrito por Wagner, o Holandês de Esteves deu vazão a “toda a força de seu desespero”. As energias do cantor, contudo, parecem ter se exaurido aí: o restante de sua apresentação, embora ele não tenha padecido do mal do criador do papel, ficou aquém, tanto cênica quanto (e sobretudo) vocalmente, dessa cena inicial. Já Iturralde achou uma boa medida para alcançar um bom desempenho do início ao fim da ópera: foi mais econômico na cena inicial e salientou tanto o aspecto fantasmagórico do personagem quanto o sofisticado estilo de canto que se aproxima do Lied: Liedersänger.    

Erik: entre os dois mundos

Erik – uma criação de Wagner que não está na obra de Heine – é o personagem que faz a ligação entre o mundo abstrato e o real, entre o canto wagneriano e o tradicional; que tenta, em vão, trazer Senta para a realidade. Ele não é um pescador como todos os outros: é um caçador, o que já o torna um personagem à parte. Tem momentos de tenor lírico, como sua cavatina, mas outros de tenor heroico, como em seus momentos de desespero, nos quais tem que se confrontar com uma orquestra bastante volumosa.

Terceiro ato: Carla Filipcic (Senta) e Kristian Benedikt (Erik)

No sábado (18), tivemos a preciosa oportunidade de ver no papel o tenor brasileiro Ewandro Stenzowski, que faz uma importante carreira na Europa, mas que, até onde sei, nunca havia cantado por aqui. Antes de vir a São Paulo, Stenzowski havia interpretado o mesmo papel em Erfurt, na Alemanha. É bem verdade que a sua voz demonstra algum desgaste, mas isso não o impediu de entregar um Erik de alto nível, com fraseado elegante e sem exageros. É louvável que o TMSP tenha dado ao público a oportunidade de conhecer esse cantor brasileiro. No caminho oposto, Kristian Benedikt, o tenor do domingo (19), tem belo timbre e uma voz volumosa, que se impõe, mas pôs-se a berrar sem fazer a menor cerimônia – e a palavra é realmente essa: ele berrou, foi algo bem diferente daquele som meio gritado que sai quando o cantor tem dificuldade com o agudo. Uma pena, porque a voz de Benedikt tem volume de sobra para vencer a orquestra wagneriana sem precisar desse tipo de recurso. Eu já havia visto Benedikt em uma montagem de Sanson et Dalila no Metropolitan, em 2018, e lá o tenor já havia apresentado um belo timbre nos médios e problemas nos agudos.

No mundo real e materialista

Daland, o pai de Senta, não é um personagem encarado com simpatia pelo público – afinal de contas, ele literalmente vende a filha a um desconhecido. Se o encararmos, no entanto, sem julgamentos, veremos que esse comportamento tem a função de acentuar a diferença entre os dois mundos, o ideal e o material, comercial. Ele crê que está fazendo o melhor para a filha e para a família – não poderia achar um genro melhor, ele diz. Baixo cantante, é um tradicional pai de família, que merece um canto elegante, sóbrio, como o que o brasileiro Luiz-Ottavio Faria ofereceu nos dois dias.

Primeiro ato: Giovanni Tristacci (Timoneiro) e Luiz-Ottavio Faria (Daland)

O Timoneiro, que canta o seu belo Lied logo na primeira cena, é basicamente um típico tenor rossiniano ou mozartiano, mas, aqui, para usar a ótima expressão de Jean-Jacques Groleau: “o tenor que antes era chamado de ‘tenor da graça’ agora se torna um tenor da melancolia”. No TMSP, o papel coube a Giovanni Tristacci, que cantou com jovialidade e cuja voz volumosa venceu com brilho a orquestra – que não oferece ao Timoneiro uma barreira tão pesada quanto a Senta ou ao Holandês.

Mary, a ama de Senta, coube à mezzosoprano Regina Elena Mesquita, a quem o Theatro Municipal quis prestar uma homenagem.

Foi bastante boa a participação do coro masculino, que constituiu o grupo de marinheiros. Um ou outro desencontro e algumas consoantes voando perdidas pela sala foram detalhes que tornaram mais naturais as canções dos marinheiros – um coro muito rígido teria soado por demais artificial. Quanto ao coro feminino, a ele Wagner propôs alguns desafios, como o canto agudo e em piano, um dos claros ecos da Nona Sinfonia de Beethoven. Foi o momento em que o coro apresentou maior dificuldade e alguns problemas de afinação. Mesmo assim, ambos os grupos, pertencentes ao Coro Lírico Municipal e preparados por Mário Zaccaro, tiveram um bom desempenho.

A Orquestra

Sob a regência de Roberto Minczuk, o regente titular que detém o monopólio absoluto da direção das óperas do Municipal de São Paulo desde o dia em que assumiu o posto, a Orquestra Sinfônica Municipal teve, de modo geral, um bom desempenho, produzindo uma sonoridade envolvente, com andamento e dinâmica bastante adequados e boas ideias, como a disposição das trompas que fazem o eco uma de cada lado do palco. O repertório germânico é um dos pontos fortes de Minczuk, mas o diabo mora nos detalhes. As trompas e trompetes apresentaram alguns problemas no sábado, e esses problemas se agravaram muito, tornando-se recorrentes no domingo. Além disso, no domingo as madeiras tiveram problemas de articulação na abertura, comendo uma nota, salvo engano no tema da redenção – e uma nota é o suficiente para mudar um tema. De sábado para domingo, as nuances diminuíram, a orquestra ficou mais barulhenta, e os cantores, às vezes encobertos, sentiram-se tentados a gritar.

Considerações finais

Como tem sido o caso há anos em todos os teatros do mundo, em São Paulo foi feita a versão contínua, sem intervalos, o que possibilita maior imersão e fluência do drama. Se o público se agitou, falou, passeou pelo teatro, é sinal de que precisamos de mais espetáculos assim, e não de mais intervalos e falação.

Com O Navio Fantasma, o Theatro Municipal de São Paulo encerra uma temporada irregular, que contou com espetáculos de alto nível, como este Navio, a Tosca em forma de concerto e La Fanciulla del West, com direito à estreia da grande diva Martina Serafin na casa, mas que, por outro lado, teve espetáculos mal resolvidos, como Così fan Tutte, e simplesmente constrangedores e inaceitáveis como Isolda/Tristão. A julgar pelo que foi divulgado, a temporada 2024 seguirá a mesma toada: deve começar bem, com a Madama Butterfly dirigida por Livia Sabag, mas estará sujeita a altos e baixos.

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Fotos: Stig de Lavor / TMSP (até o momento, o TMSP não disponibilizou nenhuma foto de cena do elenco do dia 18/11. Caso sejam fornecidas novas imagens, as desse artigo serão atualizadas).

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