Expectativa e realidade

Aida (1871)
Música: Giuseppe Verdi (1813-1901)
Libreto: Antonio Ghislanzoni (1824-1893)
Ópera em quatro e sete cenas

Theatro Municipal de São Paulo, 10 de junho de 2022

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Bia Lessa

Aida: Priscila Olegário, soprano
Amneris: Ana Lucia Benedetti, mezzosoprano
Radamés: Paulo Mandarino, tenor
Amonasro: David Marcondes, barítono
Ramfis/Rei: Savio Sperandio, baixo
Sacerdotisa: Elayne Casar, soprano
Mensageiro: Caio Durán, tenor

Orquestra Sinfônica Municipal
Coro Lírico Municipal / Coral Paulistano

Um triângulo amoroso, temperado por ciúme doentio e em meio à guerra entre o poderoso Egito dos faraós e a Etiópia, é o mote de Aida, obra-prima em quatro atos e sete cenas de Giuseppe Verdi, sobre libreto de Antonio Ghislanzoni, com base num argumento original de François Auguste Mariette Bey.

Encomendada em 1869 pelo governo egípcio, a ópera deveria ter o país como tema. Um famoso egiptólogo francês, François Auguste Mariette (que depois recebeu o título honorífico de Bey, o qual anexou ao seu sobrenome, como era o costume da época), foi quem sugeriu a trama da ópera, escrevendo o libreto em prosa. Depois de adaptada pelo próprio Verdi e por Camille Du Locle (libretista francês que colaborara com o compositor em Don Carlos e estava fazendo a intermediação entre Verdi e Meriette), essa versão em prosa foi confiada ao poeta Antonio Ghislanzoni, que a versificou sob a estreita orientação de Verdi.

Tanta influência o compositor exerceu sobre o libreto, que este lhe proporcionou trabalhar sobre alguns temas que lhe eram muito caros, dentre os quais o nacionalismo e, sobretudo, a oposição entre os interesses individuais (aqueles de Aida, Radamés e Amneris) e os coletivos (aqui representados pelos sacerdotes que buscam manter o status quo; pelo rei etíope que procura defender seu povo; e, especialmente, pela representatividade máxima da coletividade, expressa pelo coro nesta magnífica ópera coral). Além disso, estão lá o característico dueto entre pai e filha, que aparece várias vezes nas óperas de Verdi, e uma crítica ferrenha aos sacerdotes – aqueles que, como Amneris aponta no último ato, “se dizem ministros do céu”.

Verdi musicou o libreto de Ghislanzoni em aproximadamente sete meses (entre julho de 1870 e fevereiro de 1871). Entre o ponto final da partitura e a primeira apresentação europeia no Teatro alla Scala, em fevereiro de 1872, passando pela estreia mundial de 24 de dezembro de 1871, no Cairo, o compositor empreendeu algumas mudanças na obra, dentre as quais a inclusão da segunda ária da protagonista, O patria mia.

Na música de Aida, destacam-se, nos dois primeiros atos, o sublime prelúdio, desenvolvido basicamente sobre dois temas (aquele de Aida e outro atribuído aos sacerdotes); a apaixonante romanza de Radamés, Celeste Aida, cantada logo no começo da representação; a primeira ária da protagonista, Ritorna vincitor; a delicada linha melódica da sacerdotisa, acompanhada pela harpa; as grandes cenas de conjunto, dentre as quais a chamada cena triunfal do segundo ato é insuperável dentre todas as cenas do tipo em todas as óperas, tanto pela sua beleza musical, quanto pela sua eficácia dramática.

O terceiro é um dos atos mais perfeitos da história da ópera. Ambientado às margens do Nilo, começa com uma atmosfera exótica, expressa especialmente pelo solo de flauta.  Depois da segunda ária de Aida, vem o terrível dueto entre a protagonista e seu pai, de enorme efeito – Amonasro tortura psicologicamente a própria filha, culminando com os versos: “Você não é minha filha, é a escrava dos faraós”. Outro dueto se segue, agora entre Aida e Radamés, pontuado por algumas das divinas melodias verdianas. Esse dueto evolui para um terceto com a intervenção de Amonasro, até que, bem à maneira do compositor, uma breve cena encerra o ato: em poucos compassos, a situação dramática é resolvida, com Radamés se entregando a Ramfis, chefe dos sacerdotes, por ter revelado involuntariamente um segredo militar.

A primeira cena do quarto ato é dominada por Amneris, e a mezzosoprano tem o seu maior momento na ópera. Vale dizer que a princesa egípcia era uma personagem tão cara ao compositor quanto a protagonista. Aqui, podemos perceber o quanto ela realmente ama Radamés, mesmo que o ciúme ainda a corroa. A escrita de Verdi para a solista é bastante sofisticada, e, na voz de uma intérprete à altura, pode alcançar um elevado nível artístico. Na cena derradeira, Verdi incluiu um dueto doce, um “adeus à vida”, de atmosfera “vaporosa”, como ele mesmo se referiu à peça (O terra, addio). A maneira como o compositor conjuga esse dueto com as intervenções de Amneris e a litania dos sacerdotes é de uma beleza insuperável.

Crônica de um desastre

Ainda sob gestão do nada saudoso Instituto Odeon, o Theatro Municipal de São Paulo anunciou que uma nova produção de Aida integraria a sua temporada lírica de 2020. Praticamente junto à notícia, chegou também um questionamento óbvio: por que a casa não remontava a bela produção da ópera de 2013 (realizada quando o TMSP era gerido pela organização social que precedera o Odeon)? Até hoje não se sabe ao certo por que isso não foi feito, quase ninguém mais fala a respeito, e a imprensa cultural, que só questiona alguma coisa quando lhe interessa, parece ter achado por bem deixar isso para lá.

Essa nova montagem de Aida estava prestes a estrear em março de 2020 quando a pandemia de Covid-19 parou o mundo. O meio musical brasileiro, inclusive, perdeu para a doença Naomi Munakata, então regente do Coral Paulistano que contraiu Covid durante o período dos ensaios. Praticamente dois anos depois, a nova gestora do Municipal paulistano – a organização social Sustenidos – reagendou a montagem para a presente temporada. Agora há (ou pelo menos parecia haver até outro dia) condições mínimas de retorno à normalidade.

O fantasma da Covid, porém, atacou novamente: durante os ensaios, muitas contaminações atingiram parte significativa do coro e da orquestra, além de pelo menos um solista. Músicos foram substituídos, mas o coro acabou cantando a ópera bem desfalcado. Depois da estreia, novos ajustes precisaram ser feitos na produção e pelo menos mais dois solistas testaram positivo, como se verá abaixo.

Na récita do dia 10 de junho, uma situação constrangedora parece ter sido o pior momento dessa jornada desde a estreia. O tenor canadense David Pomeroy, intérprete de Radamés no elenco principal, precisou ser substituído pelo seu par do elenco alternativo, Paulo Mandarino. E, em cima da hora, o baixo Orlando Marcos, intérprete do Rei em todas as apresentações, também testou positivo. Não havia substituto, e a récita atrasou alguns minutos.

Ora, como assim não havia substituto? Com tudo o que vinha ocorrendo desde os ensaios, será possível que nenhuma das mentes “brilhantes” que comandam atualmente o Theatro Municipal de São Paulo tenha considerado conveniente preparar possíveis substitutos, especialmente para as partes em que sequer estavam previstos revezamentos? É simplesmente assustador o nível de amadorismo com o qual o Theatro Municipal de São Paulo vem sendo administrado há uns cinco ou seis anos. Sai uma organização social, entra outra, e tudo continua a mesma coisa.

A solução oferecida ao público no dia 10? O baixo Savio Sperandio, intérprete do sumo-sacerdote Ramfis, cantaria também a parte do Rei. E, como os dois personagens devem estar juntos em cena em dois momentos, o jeito foi colocar também um figurante nos trajes do faraó.

Um dos cantores brasileiros mais reconhecidos pelo público e pela crítica, Sperandio precisou se virar, mas, parecendo que lia alguma coisa escondida nas mãos durante a cena do anúncio do comandante das tropas egípcias (Su! del Nilo), errou feio o texto do Rei, a ponto de pronunciar palavras inexistentes e inventadas na hora, pouco antes de revelar o nome de Radamés. Claro, a maior parte do público sequer deve ter percebido isso, mas quem conhece a obra e entende italiano presenciou um fato extremamente embaraçoso, pelo qual o artista não deveria ser obrigado a passar. Quando precisou novamente cantar versos do Rei na centra triunfal do segundo ato, o baixo, prudentemente, fez uso da partitura.

Com a palavra, os “gênios” que, diante dos riscos de contaminação enfrentados desde os ensaios, não tiveram a capacidade de prever que esse tipo de coisa poderia ocorrer.

Detalhe da encenação dentro da encenação durante a cena triunfal

Teoria e prática

A diretora Bia Lessa escolheu como mote para a sua encenação uma abordagem crítica da guerra – na ópera, vale lembrar, os egípcios e os etíopes estão em guerra. A ideia era boa e bastante atual, mas a sua realização no palco se mostrou muito rasa. A cena triunfal (segundo ato, segunda cena) acabou sendo o único momento em toda a montagem em que o referido mote foi apresentado de forma satisfatória, através de algumas imagens fortes apresentadas durante o que deveria ser o balé, mas que, nessa produção, acabou sendo mais uma encenação dentro da encenação, e menos um momento específico de dança.

De resto, a encenação não trouxe mais nada que reforçasse a crítica à guerra. Os pequenos pedaços de papel caindo com a palavra “sofrimento” impressa foi um recurso muito clichê. E os membros do coro balançando ridiculamente para um lado e para o outro durante a cena triunfal lembrou bastante outra “coreografia” imposta a um coro em outra produção de Bia Lessa: Il Trovatore, realizada em 2010 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Curiosamente, a cena final da ópera preparada pela encenadora lembrou demais aquela da já referida produção de 2013, dirigida pelo italiano Marco Gandini e preterida agora pelo Municipal. Eu poderia jurar que até o elevador do palco foi o mesmíssimo utilizado nove anos atrás.

O cenário da ópera, assinado pela própria Bia Lessa, é um caso à parte. Não cronometrei, mas, quando o regente assumiu o pódio para o que deveria ser o início do espetáculo, o público foi obrigado durante pelo menos dois minutos, talvez mais, a ver as partes desarrumadas propositalmente do cenário serem rearranjadas no palco, inclusive com a presença de gente da produção: fato desnecessário e desprovido de sentido. Somente depois de tudo arrumado a música começa.

Formados por cubos de papelão, o cenário deixava o palco todo vazado. Era possível enxergar as coxias do teatro, e até mesmo a parede do fundo do palco. Esse tipo de “ambientação” sempre prejudica a projeção das vozes dos solistas, mas, geralmente, quando o/a responsável pela encenação é oriundo/a do teatro de prosa, não costuma estar nem aí para isso: problema dos cantores, ora!

Nos três intervalos entre os atos, com o palco aberto, era possível ver os técnicos fazendo várias modificações no cenário para que, no ato seguinte, ele ficasse muito parecido com o anterior…

Os figurinos de Sylvie Leblanc e Maira Himmelstein ficaram em algum lugar incerto entre o tradicional (o do Rei, por exemplo) e o atemporal (como aqueles dos sacerdotes). O iluminador Paulo Pederneiras até tentou, mas não conseguiu fazer milagres. E as coreografias de Liliane de Grammont se alternaram entre momentos mais e menos inspirados.

Ana Lucia Benedetti

Mezzosoprano rouba a cena

Na récita de 10 de junho, a ópera só alçou algum voo musical na primeira parte do quarto ato, quando a intérprete de Amneris roubou a cena. Ana Lucia Benedetti não tem exatamente a voz necessária para interpretar a princesa egípcia, mas é uma cantora dotada de técnica apurada, e constrói a personagem com inteligência, dosando as forças até a sua explosão de sentimentos no último ato.

Savio Sperandio interpretou Ramfis com a segurança e a qualidade vocal que lhe são características. As derrapadas na parte do Rei, resultado do improviso imposto pela ausência de um substituto para o cantor adoentado, não devem, em meu entendimento, ser cobradas do artista.

David Marcondes viveu Amonasro com ferocidade cênica e algum desequilíbrio técnico, mas no geral deu boa conta do rei guerreiro etíope. Elayne Caser (Sacerdotisa) e Caio Durán (Mensageiro) cumpriram bem as suas respectivas partes.

O casal protagonista, no entanto, deixou a desejar. Talvez ainda afetado pelos efeitos da Covid, Paulo Mandarino cantou toda a récita com uma voz que careceu do peso necessário para enfrentar a parte de Radamés, e que não brilhou em momento algum. Já Priscila Olegário demonstrou ter um material vocal muito interessante e um bonito timbre, mas ainda lhe falta apuro técnico e experiência para poder cantar a personagem-título de Aida. A falta de refinamento em certas passagens, alguma oscilação na qualidade da emissão e o agudo desafinado quase no fim da ária O patria mia não me deixam mentir. (Leia mais sobre a soprano abaixo)

Mesmo unindo forças, o Coro Lírico Municipal (preparado por Mário Zaccaro) e o Coral Paulistano (Maíra Ferreira) estavam nitidamente bastante desfalcados para uma ópera que exige grande massa coral. Ainda que sem o volume necessário, apresentaram-se vocalmente bem.

Por sua vez, Roberto Minczuk voltou a apresentar os seus velhos problemas à frente de uma ópera: conduzindo a Orquestra Sinfônica Municipal, o regente ralentou alguns trechos, acelerou outros, permitiu os desencontros de quase sempre sob a sua condução e, para fechar o caixão, empregou no finalzinho da cena triunfal uma dinâmica de indefensável mau gosto.

Priscila Olegário (em destaque)

Entre a expectativa e a realidade

Fala-se nos bastidores que os atuais gestores do Theatro Municipal de São Paulo queriam que uma cantora brasileira negra interpretasse a personagem-título de Aida. Até aí, nenhum problema, uma vez que a personagem, evidentemente, é negra. A questão é que uma cantora com os predicados vocais necessários para interpretar a princesa etíope não dá em árvore, não está disponível a qualquer momento em uma prateleira. São necessários anos e anos de estudo e aprimoramento, além de um caminho natural por personagens menores e outras protagonistas menos exigentes, até que chegue o momento de uma artista estar preparada para enfrentar a difícil parte de Aida.

Pois bem, o Municipal paulistano divulgou aos quatro ventos que a soprano Priscila Olegário “está em ascensão nos palcos da Europa, tendo recentemente interpretado a mesma Aida no Teatro di San Carlo, de Nápoles”. Fazer esse tipo de marquetagem gera ainda mais expectativa e coloca uma responsabilidade muito grande nos ombros da cantora.

Uma rápida pesquisa na internet pode facilmente desmentir a marquetagem:

1- As últimas produções de Aida em Nápoles tiveram como protagonistas Anna Netrebko e Liudmyla Monastyrska (versão completa, encenada, 2022), e Anna Pirozzi (versão em concerto, 2020);

2- Priscila Olegário cantou realmente a parte de Aida em um espetáculo no teatro napolitano, mas não foi em uma temporada regular, e sim em uma versão para crianças e jovens, na qual dividiu as récitas com mais três sopranos, todas ilustres desconhecidas;

3- Isso não ocorreu recentemente, mas entre maio e junho de 2018 (há quatro anos, portanto); e

4- A próxima apresentação da artista em uma produção de ópera na Europa está prevista para março de 2023, em Hamburgo, na qual ela interpretará uma personagem secundária de Suor Angelica, de Puccini – fato esse que não corrobora o termo “ascensão” utilizado na marquetagem.

Não creio que toda essa bobagem forçada tenha partido da soprano, até porque ela própria publicou em uma das suas redes sociais, não faz muito tempo, uma foto do cartaz da produção voltada para jovens da qual participou. Isso tem mais jeito de blefe de empresário, ou talvez seja uma tentativa do TMSP de justificar a escalação de uma cantora brasileira até então desconhecida por aqui como protagonista de uma ópera do porte de Aida.

Aida é dessas óperas que sempre geram grandes expectativas quando são anunciadas. É preciso, portanto, cuidado para que essa expectativa não resulte em decepção, e é preciso ainda mais cuidado para não queimar uma cantora que tem condições de crescer bastante.

Não faz tanto tempo, Marly Montoni, a soprano que interpreta Aida no elenco alternativo, quase foi queimada por uma má escalação para a parte de Abigaille em Nabucco, uma das personagens mais insanas (em termos de dificuldade vocal) do repertório verdiano, no mesmíssimo Theatro Municipal de São Paulo. Por sorte, poucos meses depois, a artista teve a chance de se destacar como a Bess de Gershwin em uma produção mineira.

Para encerrar, ainda falando sobre escalação de elencos, não pude ouvir agora o tenor canadense David Pomeroy, intérprete de Radamés no elenco principal, devido à sua substituição por motivo de Covid. Eu já o tinha ouvido, no entanto, no fim de 2018, quando ele participou como Calaf da produção de Turandot no mesmo TMSP. Exatamente por isso, não preciso ouvi-lo como Radamés para ter a mais absoluta certeza de que ele não tem a menor condição vocal para cantar esse personagem.

Entra ano, sai ano; sai organização social, entra outra no lugar, e o Municipal paulistano continua enfrentando problemas de escalação de elencos.

Fotos – Stig de Lavor.

2 comentários

  1. Excelente análise, Leonardo.

    O problema da escalação no Theatro Municipal é crônico e incompreensível.

    Não é segredo Aída (mais do que outras óperas) exige vozes com atributos muito específicos e que não abundam no Brasil. O Municipal teve meses para escalar o elenco necessário e, ainda assim, a temporada foi lançada no começo do ano sem definição dos principais protagonistas.

    Chamou-me a atenção a justificativa usada pelo Theatro Municipal para contratar David Pomeroy: “[David] foi indicado para o papel por se tratar de um dos melhores tenores da atualidade, com voz adequada para o papel e que há muitos anos não se apresenta no Theatro Municipal de São Paulo. Sua escolha foi aprovada pela direção musical e cênica da montagem de 2022”.

    Essa justificativa é a percepção sincera da direção artística do Municipal sobre as competências do tenor ou apenas um remendo para acobertar a falta de opções diante da falta de planejamento prévio? Não sei qual alternativa é pior.

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