Festival Amazonas de Ópera resgata obra de Francisco Mignone

“O Contractador dos Diamantes” abriu quatro dias de ópera durante o 25º FAO.

O Contractador dos Diamantes (1921)
Ópera em três atos
Música: Francisco Mignone
Libreto: Gerolamo Bottoni
Teatro Amazonas, 18 de maio de 2023
Direção musical: Luiz Fernando Malheiro
Direção cênica: William Pereira
Don Filiberto Caldeira: Carlos Arambula, barítono
Cotinha Caldeira: Fernanda Allende, soprano
Camacho: Giovanni Tristacci, tenor
Donna Bianca Caldeira: Juliana Taino, mezzosoprano
Magistrado: Douglas Hahn, barítono
Maestro Vincenzo: Geilson Santos, tenor
Taverneiro e Sampaio: Joubert Júnior, barítono
Don Cambraia e chefe dos mineiros: Luís Carlos Lopes, barítono
Simone da Cunha: Josenor Rocha, barítono
Amazonas Filarmônica
Coral do Amazonas
Corpo de Dança do Amazonas

Entre os dias 18 e 21 de maio, quando foi realizado em Manaus o encontro anual da Ópera Latinoamérica (OLA), o 25º Festival Amazonas de Ópera (FAO) encarou um verdadeiro desafio: apresentou quatro óperas em quatro dias consecutivos, com os mesmos coro e orquestra. Dentre esses quatro títulos, dois importantes resgates: Anna Bolena, de Donizetti, em sua versão original e sem cortes, ausente dos palcos brasileiros desde a década de 1840, que já foi objeto de outro artigo, e O Contractador dos Diamantes, tratada neste texto, ópera da juventude do compositor brasileiro Francisco Mignone, escrita em 1921 e que, em setembro de 1924, estreou quase ao mesmo tempo nos teatros municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Antes de comentar sobre a apresentação da ópera no Teatro Amazonas, ocorrida praticamente um século após a estreia, convido o leitor a conhecer um pouco sobre as origens da ópera, com libreto em italiano de Gerolamo Bottoni a partir da peça homônima de Afonso Arinos. Danielle Carvalho, que é especialista nesse período histórico, nos explica tudo no ensaio abaixo. Em seguida, voltaremos à produção amazonense.

O contractador dos diamantes: da peça de Afonso Arinos à ópera de Francisco Mignone

Danielle Crepaldi Carvalho

Um torvelinho agitava o eixo Rio-São Paulo na virada da década de 1910 para a de 1920, com a aproximação do Centenário da Independência do Brasil. A efeméride era propagandeada assim mesmo, em maiúsculas, indicando o esforço de organização de um conjunto de festejos cujo intuito era celebrar de forma altissonante o 7 de setembro de 1922. Tais celebrações procuravam erigir símbolos que costurassem o ideário de uma nação independente.

Para tanto, observa-se um esforço de monumentalização dos próceres da pátria. O tipo heroico por excelência torna-se o bandeirante, que nos séculos XVII-XVIII adentrara o sertão profundo do país, desvendando-o. Passa-se ao largo da violência das bandeiras, da exploração desenfreada de pedras preciosas e da escravização e do assassinato indígena que elas fomentaram. Se há consideráveis pontos que afastam a Exposição Internacional do Centenário da Independência, ocorrida no centro do Rio de Janeiro a partir de 7 de setembro de 1922, e a Semana de Arte Moderna de São Paulo, ocorrida no Theatro Municipal da cidade em fevereiro daquele ano, um ponto destacável de contato entre os dois eventos foi a eleição do bandeirante como herói nacional.

Tal escolha, e o esforço de se mergulhar nos rincões do país, no intuito de fazer emergir dali a brasilidade, ocorre desde o princípio do século XX. Se, concomitantemente à Exposição do Centenário, um dramaturgo como Viriato Correa (autor, em 1919, da “peça de costumes sertanejos em 3 atos Jurity”) se unia aos Turunas Pernambucanos e a Vicente Celestino na organização da “3ª Tarde Regional Nortista”, ocorrida no Theatro Trianon, já sentimos o cheiro da epopeia sertaneja em 1904, quando Afonso Arinos realiza a leitura de sua peça O Contractador dos Diamantes para os medalhões da Academia Brasileira de Letras numa das salas do Gabinete Português, no Rio de Janeiro.

O jornal O Paiz publica uma nota módica a respeito da leitura que teria ocorrido em 8 de setembro de 1904 – data, não por acaso, próxima da efeméride pátria. O cronista, teatrólogo e medalhão Arthur Azevedo é mais generoso em informações. Em sua seção “Palestra”, publicada no mesmo jornal em 13 de setembro, ele informa que já conhecia os dois primeiros atos do “drama em 4 atos” de Afonso Arinos, a partir de uma leitura realizada por seu próprio autor antes de ele se embrenhar nos recônditos mineiros para encontrar a inspiração que lhe permitisse concluir a porção final da obra. Depois de uma descrição detalhada dos quatro atos do drama, Arthur Azevedo lamenta a demora na construção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, asseverando que provavelmente Arinos não desejaria esperar a inauguração do prédio para ver a sua obra vir à luz.

Quereriam as dobras insondáveis do destino que Affonso Arinos jamais visse a estreia dessa sua obra, que sobe à cena como “peça em 3 atos” (pelo que pude apurar, os atos 3 e 4 foram fundidos), em 12 e 14 de maio de 1919, no Theatro Municipal de São Paulo, com o arcaizante título de “O Contractador dos Diamantes” (em um momento em que a última reforma ortográfica já havia derrubado o “c” mudo). Encenada pela élite quatrocentona da cidade, sob os auspícios da nossa conhecida Sociedade de Cultura Artística (já então uma garbosa menininha), a obra contou com duas orquestras: uma que fazia parte do espetáculo altamente musical, e a outra que executava a ambiência sonora da ação (esta foi regida por Francisco Braga, compositor do espetáculo).

Naquele ano de 1919 houve, entre os artistas amadores da alta goma paulistana, um esforço importante de reconstituição histórica, que o brilhante historiador Nicolau Sevcenko narra de forma colorida em sua obra-prima Orfeu Extático na Metrópole: para além dos figurinos fiéis à época, realizados às expensas do próprio grupo, as pratarias e louças coloniais utilizadas no espetáculo eram oriundas de heranças de famílias. Encarnar o ilustre contratador de diamantes Felisberto Caldeira Brandt e o seu séquito (saídos da poeira do século XVII) caberia à elite que lhe descendera de mais ou menos perto, e se colocava, às portas do centenário da Independência do Brasil, como a sua simbólica descendente espiritual.

O sucesso das récitas explicita a emergência desse ideário ao qual me referi acima. Não por acaso, já em 1920 a imprensa paulistana registra o interesse de Francisco Mignone por esta obra de Afonso Arinos. Em sua edição n° 147, o semanário ilustrado paulistano A Cigarra noticia a contratação, por Mignone, de Girolano Bottoni para escrever o libreto da ópera que ele comporia sobre O Contractador de Diamantes, a qual deveria estar pronta para estrear em dois anos – portanto, infere-se que para os festejos do Centenário. Efetivamente, em 1922, porém já no final do ano, cabe novamente à Cigarra (em sua edição n° 192) informar aos seus leitores que ouviu, “numa reunião íntima há poucos dias realizada”, a dita ópera, apresentada pelo próprio compositor quando de sua estada em São Paulo (Mignone vivia então na Itália, onde estudava música devido ao Pensionato Artístico oferecido pelo Estado).

A versão operística de O Contractador de Diamantes estrearia apenas em 1924, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. É preciso destacar que, então, as temporadas de ópera cariocas e paulistanas eram realizadas por companhias estrangeiras. Walter Mocchi era o responsável por empresariar a trupe tanto neste ano quanto em 1922. Observa-se, em ambos os anos, algo comum: duas óperas escritas por compositores brasileiros receberam libretos em italiano. Além de O Contractador de Diamantes, em 1924, Don Casmurro, em 1922 (composta por João Gomes Júnior com libreto do Sr. Piccarolo).

A extração operística de O Contractador de Diamantes saída das penas de Mignone e Bottoni segue de perto a versão da peça de Arinos que chegou aos nossos dias. Faz uma bem delineada pintura de época, tendo como fio condutor o personagem de Felisberto Caldeira Brandt, aristocrata a quem a coroa portuguesa dera o direito de explorar diamantes na região hoje conhecida como Diamantina, e que então se chamava Tijuco.

O primeiro ato ocorre no decurso de um baile realizado nos suntuosos salões de Caldeira Brandt, que procuram reproduzir com fidelidade os hábitos da corte portuguesa. São ali apresentados, além do protagonista, as personagens da jovem casadoira Cotinha, de seu apaixonado Camacho (português recém-chegado na colônia), de sua esposa D. Branca de Almeida Lara, de alguns acólitos seus e do ouvidor José Pinto Moraes Bacellar – os nomes rebarbativos do grupo denunciam que o drama é baseado em fatos reais, embora, como a historiografia demonstraria depois, o Caldeira Brandt histórico é moralmente bastante mais questionável do que a sua extração teatral e operística.

Um grupo variado de matronas, mocinhas e políticos ainda compõe os convivas da festa. Deles todos, Mignone aproveita sobretudo o Mestre Vicente, que abre a ópera de forma bem-humorada, dando às moças uma receita de tônico facial depreendida de Ovídio. Toda uma discussão sobre música, que calava fundo nos corações dos interessados no tema nos princípios do século XX, e que Arinos alinhava na peça, é eliminada da ópera (a lascívia e o deleite da valsa, o encantamento da seguidilla, a emergência da modinha, etc.). Repercute em cena um minueto, que quebra a tensão do drama grave que se engendra: Caldeira Brandt está prestes a ser autuado por desejar a liberdade do Brasil. Enquanto na peça o drama é desenvolvido com vagar (o que Caldeira Brandt fizera foi relaxar a fiscalização sobre mineradores, permitindo que eles guardassem para si parte dos lucros que deveriam ser destinados à coroa), na ópera o dístico da Independência preside o debate, assinalando o momento histórico em que ela foi escrita, às portas do centenário.

O segundo ato da peça passa-se no adro da igreja de Santo Antônio num sábado de Aleluia. Nele, Arinos situa o elemento de maior interesse da ação: enquanto a aristocracia celebra no interior da igreja (fora de cena), uma congada acontece em cena. Sevcenko alude ao impacto que a presença negra, ao longo desta dança dramática que representa a coroação de reis do Congo, gerara no pomposo Theatro Municipal de São Paulo. Na ópera de Mignone, tal presença é diluída. Sua congada tem mais pontos de contato com a obra Batuque, de Alberto Nepomuceno, estreada em 1888, que com este gênero de música africana: daí a plangência dos metais ganhar destaque em ambas, em detrimento dos instrumentos percussivos. Na ópera de Mignone – ao menos se considerarmos a sua encenação em Manaus –, é um coro lírico que entoa os versos, os quais, embora cantados em português, estão mais próximos do estilo da ópera italiana contemporânea ao compositor que da música de matrizes africanas.

Outra diferença destacável entre a peça e a ópera diz respeito à personagem do Ouvidor. Considerando-se a economia cênica do gênero operístico, todas as personagens negativas da peça teatral são congregadas neste personagem, que se torna o “Magistrado”, uma espécie de Conde de Luna (personagem da ópera O Trovador, de Giuseppe Verdi) cuja maldade se soma ao lirismo passional. A mais bela ária da ópera é sua – e ele a dedica à Cotinha. E é o repúdio da jovem que o faz colocar em movimento a punição contra Caldeira Brandt, que ganha aqui fortes tintas pessoais, como ocorre nos mais candentes enredos de Verdi.

O terceiro ato da peça é o que mais se transforma em sua versão operística. Toda a árida discussão sobre o contrato da exploração de diamantes, os laivos inconfidentes do grupo e a exploração colonial são deixados de lado por Mignone, que encena o ato em um dramático tableau que metaforiza o desterro de Caldeira Brandt. A ópera, então, ganha em força dramática quando comparada à peça. Na noite fria, o contratador para em uma estalagem de beira de estrada. Ao fundo, os acordes da modinha Gavião de Penacho, de Francisco Braga, cantada em português, bailam nos lábios do grupo de espoliados que acompanha o contratador. Seu clamor pela independência do Brasil, que é a tônica da ópera, é secundado pelo amplo coro que se aproxima dele no desfecho, o qual inexiste na peça. A ópera termina, portanto, e apesar de tudo, em diapasão heroico.

As intenções de brasilidade da extração de O Contractador de Diamantes escrita por Francisco Mignone ganham como enquadramento, como se vê, a grande ópera italiana. Isso, no entanto, ironicamente a faz ser um bocado cativante e bela, já que instiga a nossa memória afetiva, tão atravessada por esses cânones musicais.

A ópera de Mignone no Teatro Amazonas

Fabiana Crepaldi

O Contractador dos Diamantes foi a ópera escolhida para abrir os quatro dias consecutivos de apresentações no FAO. Foi um bom começo: ótimo elenco, produção e música belas.

Quando compôs a ópera, em 1921, o jovem compositor, então com 24 anos, estudava em Milão. Evidentemente, estava exposto a todo o repertório operístico italiano do fim do século XIX e do início do XX. Se o estilo do libreto e a música do início lembram Adriana Lecouvreur, de Cilea, logo percebemos a forte influência de Puccini: em um momento, o tenor parece se transformar em Cavaradossi, de Tosca; mais adiante, o barítono parece entoar Addio fiorito asil, de Madamma Butterfly, e por aí vai. Embora seja sentida a falta da construção de uma dramaticidade no ambiente musical, trata-se de uma música bela e envolvente.

A produção de William Pereira ambienta a cena no Teatro Municipal de Ouro Preto, a antiga Casa da Ópera de Vila Rica, inaugurado em 1770, no auge e na cidade símbolo do barroco mineiro. O belo cenário de Giorgia Massetani reproduz o ambiente desse inconfundível teatro, que Felisberto Caldeira Brant, o terceiro contratador de diamantes de Diamantina, morto em 1756, não chegou a conhecer. Caldeira Brant arrematou o contrato para a extração de diamantes na cidade entre 1749 e 1752. Ele não era tão rigoroso com os garimpeiros quanto os contratadores anteriores, o que permitiu que eles fizessem algum contrabando e enriquecessem. A qualidade de vida em Diamantina começou a crescer a olhos vistos – e em pleno período barroco, quando se valorizava a opulência. Os ótimos figurinos de Olintho Malaquias refletem com precisão não somente os trajes, mas o espírito da época. Esse enriquecimento nada disfarçado chamou a atenção do governador, e, aí, começaram os problemas do contratador e o enredo da ópera.

Giovanni Tristacci e Fernanda Allende

O ótimo barítono mexicano Carlos Arambula, vencedor da edição 2022 do Concurso de Canto ‘Maria Callas’, emprestou a sua poderosa voz a Don Filiberto Caldeira – nome que Caldeira Brant ganha na ópera. Sua atuação foi brilhante, mas ofuscada pelo casal de protagonistas: Cotinha, filha de Caldeira, vivida pela excelente soprano mexicana Fernanda Allende, também vencedora, na categoria feminina, da mesma edição do Concurso ‘Maria Callas’, e Camacho, seu pretendente, interpretado pelo tenor Giovanni Tristacci, um orgulho nacional. Não poderia deixar de destacar a beleza do timbre de Allende e a riqueza do seu fraseado, a beleza de cada piano e de cada filato com que nos brindou.

Carlos Arambula e Douglas Hahn

Rodeando esse ótimo trio, o bom elenco de apoio, enumerado no início desse artigo, garantiu um resultado lírico de qualidade, sem pontos fracos. Merecem especial destaque a Donna Bianca da promissora mezzosoprano Juliana Taino e o Magistrado do barítono Douglas Hahn.

Sob a regência de Luiz Fernando Malheiro, a Amazonas Filarmônica iniciou bem a sua verdadeira maratona operística. Do conjunto brotou, com sonoridade homogênea e dinâmica rica, todo o romantismo tardio da escrita de Mignone. Também o versátil Coral do Amazonas esteve em grande forma – aliás, não apenas no Contractador, mas em todas as três óperas de que participou.

Encerro com a ótima notícia de que, desta vez, não se tratou de um resgate feito para ser apresentado em uma única oportunidade e descartado novamente em seguida. No ano passado, foi firmada uma parceria entre o Festival Amazonas e outros dois teatros: o Municipal de São Paulo e o Palácio das Artes de Belo Horizonte. Desse modo, a ópera será apresentada no ano que vem em São Paulo, marcando um século da estreia no mesmo teatro, e esperamos que, apesar da troca de direção artística, os mineiros também mantenham o compromisso – afinal de contas, além das razões óbvias para se honrar um compromisso, é lá, em Minas Gerais, que se passa toda a trama da ópera.

Fotos: Thiago Morais e Marcio James.

Referências

Alberto Nepomuceno: Batuque. Disponível em: https://musicabrasilis.org.br/partituras/alberto-nepomuceno-danca-de-negros. Acesso em: 25 mai. 2023.

Arthur Azevedo. Palestra. O Paiz, p. 1, 15 set. 1904.

Avulsos: A Academia de Letras reuniu-se ontem… O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 9 set. 1904.

Francisco Mignone. A Cigarra, São Paulo, ed. 147, 1920.

Nicolau Nazo. Uma ópera Nacional: “O Contractador dos Diamantes” do compositor paulista Francisco Mignone”. A Cigarra, São Paulo, ed. 192, 1922.

Nicolau Sevcenko. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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