TMSP 2024: uma programação lírica a ser decifrada

Entre boas iniciativas e outras nem tão boas assim, próxima temporada de óperas do Municipal paulistano é um enigma em termos qualitativos.

Há pouco mais de três semanas, o Theatro Municipal de São Paulo divulgou a sua programação completa para 2024. Neste artigo, limito-me a comentar apenas a próxima temporada lírica da casa, que contempla seis montagens completas de óperas (o programa duplo, claro, conta como apenas uma montagem), além da apresentação de uma obra em forma de concerto. Ei-las:

  1. Madama Butterfly, de Giacomo Puccini: de 15 a 23 de março (sete récitas);
  2. Carmen, de Georges Bizet: de 03 a 11 de maio (sete récitas);
  3. O Contractador de Diamantes, de Francisco Mignone: de 28 de junho a 02 de julho (quatro récitas);
  4. O Castelo do Barba-Azul, de Béla Bartók, e O Olhar de Judith, de Malin Bång (programa duplo): de 28 a 30 de julho (quatro récitas);
  5. Nabucco, de Giuseppe Verdi: de 27 de setembro a 05 de outubro (sete récitas);
  6. María de Buenos Aires, de Astor Piazzolla: de 21 a 29 de novembro (oito récitas);
  7. La Bohème, de Giacomo Puccini (a única em forma de concerto): nos dias 20 e 22 de dezembro.

Ano Puccini

Em um ano no qual serão lembrados os 100 anos da morte de Puccini (1924), o TMSP programou duas óperas do compositor, e será com o mestre italiano, sucessor natural de Verdi, que a instituição abrirá e fechará o seu ano lírico.

Cena da montagem de Madama Butterfly no Teatro Colón (redes sociais)

A abertura promete ser um dos momentos mais interessantes da temporada, com a montagem de Madama Butterfly que a encenadora Livia Sabag preparou para o Teatro Colón, de Buenos Aires. Ou, pelo menos, essa é a ideia – a julgar pela breve descrição da encenação no caderno de assinaturas. O Municipal paulistano, no entanto, ainda não pode afirmar que a concepção é a mesma de Buenos Aires, porque ainda não há um entendimento formalizado com o seu congênere argentino. Em artigo que publicou quando da estreia da produção na capital da Argentina, Fabiana Crepaldi contou:

“A julgar pela matéria de Cecilia Scalisi no jornal argentino La Nacion, Sabag rejeitou a visão anacrônica, demasiado romântica e estereotipada do drama de Cio-Cio-San, mas também optou por não desconstruir nem propor uma releitura direcionada da obra. O caminho por ela escolhido foi reagir ao Romantismo por meio do Realismo. (…) Ainda segundo Sabag, a produção ressalta o aspecto social, a posição de vulnerabilidade ocupada pela mulher. O cenário é ‘árido e seco, em tons de areia, cinza e terra; nada primaveril, nada romântico nem florido; com uma casinha simples no estilo das casas do povo japonesas, minka, na ladeira de uma montanha rochosa; com uma árvore seca com raízes expostas que é uma metáfora da Butterfly prestes a cair e com figurinos simples (…), não há nada perfeito ou rico nessa produção’”.

Como disse a encenadora, pode até não haver nada rico na produção, mas, a julgar pelas fotos dos cenários do craque Nicolás Boni, há controvérsias sobre não haver nada perfeito.

Já o encerramento do ano, com La Bohème em concerto, será… sabe-se lá como! Mantendo uma péssima tradição, o Municipal de São Paulo cravou a reveladora frase “solistas a serem anunciados” em seu caderno de assinaturas. Reveladora sim, porque demonstra claramente que a casa pensa primeiro nos títulos que deseja apresentar, e somente depois vai buscar os solistas capazes de interpretá-los. Se conseguir encontrá-los disponíveis no mercado para contratação, ótimo; se não conseguir, o público que se vire com os não tão capazes assim, e vida que segue. Para completar, Bohème não é exatamente uma obra das mais indicadas para ser apresentada em concerto.

Montagens novas para obras apresentadas em anos relativamente recentes

Dois títulos chamam a atenção por terem sido apresentados em anos relativamente recentes no TMSP, mas, desta vez, ganharão novas produções: Carmen foi apresentada na casa em 2014 (dez anos antes – ou oito antes, se descontarmos os dois anos de pandemia), ainda na gestão da OS Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, em uma belíssima versão tradicional. Da mesma forma, Nabucco foi montada em 2017 (sete anos antes – ou cinco, também descontando a pandemia).

Como perguntar não ofende, o que terá acontecido com essas produções? Foram para o lixo, talvez? Como esse é o destino mais provável, nem perdi tempo questionando a gestora do Theatro Municipal (Sustenidos Organização Social) a respeito, e é difícil dizer de quem é a culpa, pois, como as gestões da casa costumam ser passageiras, com OS atrás de OS, o jogo jogado é uma culpar a outra pelo desperdício de dinheiro público.

Curiosamente, María de Buenos Aires, com concepção e direção geral de Kiko Goifman, será o único título a receber uma real remontagem dentre aqueles apresentados em anos relativamente recentes. Não à toa, dos três, é o único que foi concebido já na gestão da Sustenidos. Isso reforça a impressão de que a OS parece entender que só vale a pena remontar o que foi criado sob o seu guarda-chuva. Não me deixam mentir as ““remontagens”” (assim mesmo, bem entre aspas) de Der Rosenkavalier em 2022 – com muita coisa refeita e com diferenças consideráveis em relação à produção original de 2018 (esta da época em que a casa ainda era gerida pelo Instituto Odeon) – e de Ainadamar neste 2023, que sequer teve o nome do encenador original (Caetano Vilela, 2015) citado nas divulgações da casa e para a qual, segundo consta, praticamente tudo precisou ser refeito.

Bem, Carmen ganhará uma versão, digamos, peculiar do encenador Jorge Takla, que ambientará a trama da ópera em um ateliê de alta-costura, com as suas disputas internas. O que sairá daí? Saberemos em maio próximo. Já Nabucco será mostrado na versão que a encenadora brasileira radicada na Europa Christiane Jatahy apresentou este ano no Grand Théâtre, de Genebra. A montagem pode ser encontrada facilmente em vídeo na internet, mas é do tipo que é melhor esperar para ver ao vivo antes de emitir qualquer análise.

Parcerias

Cena de O Contractador de Diamantes no Teatro Amazonas (foto: Thiago Morais e Marcio James)

O Contractador de Diamantes se trata de uma coprodução entre o TMSP e o Festival Amazonas de Ópera (a Fundação Clóvis Salgado, de Belo Horizonte, inicialmente participaria da empreitada, mas não é citada no texto de divulgação) que estreou neste 2023 em Manaus (leia a crítica), com direção de William Pereira. O resgate da obra, a partir da edição revisada da partitura pela Academia Brasileira de Música, e a iniciativa da coprodução merecem elogios, mas o Municipal Paulistano joga contra ao dar à ópera de Mignone menos récitas que as demais (apenas quatro). Parece crer, de antemão, que haverá menos procura por ela.

O mesmo problema (menos récitas) acomete o programa duplo formado pela dobradinha O Castelo do Barba-Azul e O Olhar de Judith, esta última uma obra da compositora sueca Malin Bång sobre libreto de Mara Lee, comissionada por uma parceria entre o Muziektheater Transparant (da Bélgica), a Folkoperan (da Suécia, onde a ópera estreou em 2023) e o TMSP. Ambas receberão encenação do belga Wouter Van Looy.

Segundo o texto do caderno de assinaturas, a ópera de Malin Bång apresenta “a história do ponto de vista da personagem-título. Judith não quer mais abrir as portas do castelo de Barba Azul, quer destrancar as suas próprias. Viajando ao subconsciente (ou ao seu próprio castelo), Judith encontra seus medos e desejos e a ópera revela a subjetividade dessa personagem que viveu à sombra e escuridão do marido”.

Na teoria, a ideia parece bem interessante, ousada e dialoga com demandas do nosso tempo. A ver se, no palco, funcionará bem a apresentação dessas duas óperas em sequência – sobretudo quando consideramos que a de Bartók é uma obra-prima inquestionável e será sucedida pela de Bång.

Solistas estrangeiros

Referindo-me àqueles que já foram divulgados oficialmente até este momento, os solistas brasileiros que participarão da temporada 2024 do TMSP estão bem escalados em sua maioria, ainda que se possa discutir uma ou outra inadequação, ou questionar certas ausências injustificáveis. Já dentre os solistas estrangeiros, há algumas curiosidades. Vejamos:

Para a ópera Madama Butterfly, o TMSP escalou para o elenco principal a italiana Carmen Giannattasio, relegando a japonesa Eiko Senda ao elenco alternativo. Isso demonstra o quanto um certo discurso político que vigora na casa carece de bases sólidas. O mesmo teatro que fez questão de incluir verdadeiros indígenas brasileiros na recente encenação de Il Guarany optou por nativos americanos caricaturados em La Fanciulla del West. A mesma gestão que fez questão de escalar cantoras negras para interpretar a personagem-título de Aida não acha necessário que o elenco principal da Butterfly conte com uma artista japonesa, ou, ao menos, de origem oriental.

Particularmente, não vejo problema algum nisso. Para mim, um cantor branco pode muito bem interpretar Otello, da mesma forma que uma cantora negra pode assumir a parte de Violetta (La Traviata) ou de Brünnhilde (A Valquíria), pois entendo que o que realmente interessa é a qualidade artística (e, especialmente, a qualidade vocal) que será oferecida. O que se pode questionar, no entanto, é o discurso raso do TMSP, que vale para algumas óperas, mas não para outras; que é destacado quando interessa, e esquecido quando não tem muita chance de causar repercussão.

Do elenco principal de Carmen, a mezzosoprano italiana Annalisa Stroppa já cantou algumas vezes a parte da cigana, ainda que em teatros menores, enquanto o tenor Angelo Villari, também italiano, tem uma carreira que, nos últimos tempos, vem se restringindo praticamente aos pequenos e médios teatros do seu país. Do elenco alternativo, a jovem mezzosoprano Lilia Istratii, natural da Moldávia, tem uma carreira praticamente restrita à Romênia, enquanto o barítono sul-africano Bongani Justice Kubh praticamente não tem apresentações recentes divulgadas no site inglês Operabase.

Para a dobradinha O Castelo do Barba-Azul / O Olhar de Judith, há divergência entre o que consta do caderno de assinaturas e as informações disponíveis no site do TMSP. No caderno, é informado que a parte de Judith será interpretada pela mezzo brasileira Denise de Freitas na ópera de Bartók, e pela soprano sueca Alexandra Büchel na obra de Bång; já no site da instituição, consta que todos os solistas ainda serão anunciados. Qual das duas informações é a correta?

Maria José Siri como Abigaille, em produção de Nabucco na Ópera de Viena (foto: Michael Pöhn)

Por fim, Nabucco: no elenco principal o personagem-título será interpretado pelo canastrão italiano Alberto Gazale, que andou cantando no próprio Theatro Municipal paulistano durante a gestão do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural. Recentemente, em seu próprio país, ele só tem cantado em teatros de segundo ou terceiro nível. Já a soprano uruguaia Maria José Siri, que também cantou em São Paulo na mesma época de Gazale, promete bem mais como Abigaille, personagem que já interpretou várias vezes.

No elenco alternativo, Nabucco e Abigaille serão confiados aos norte-americanos Brian Major e Marsha Thompson: o barítono tem concentrado a sua carreira nos Estados Unidos, enquanto a soprano parece estar com o currículo bem desatualizado no Operabase, se é que está cantando. Vale lembrar que ela chegou a ser escalada duas vezes em São Paulo, mas não cantou em nenhuma delas: em Aida (2020), produção que acabou adiada em virtude da pandemia; e em La Fanciulla del West (2023), quando sequer apareceu por aqui. O TMSP resolveu insistir em convidá-la uma vez mais.

Ausência de regentes convidados

Desde 2017, o maestro Roberto Minczuk concentra a regência de praticamente todas as óperas da temporada lírica oficial do Theatro Municipal de São Paulo. Nas raríssimas vezes em que não regeu, a função foi ocupada pelo seu regente assistente, Alessandro Sangiorgi, ou por regentes de menor expressão. Ao mesmo tempo, e curiosamente, Minczuk rege óperas exclusivamente no TMSP.

Questionado formalmente sobre por que, na temporada de concertos, trabalha com regentes convidados, mas não o faz na temporada lírica, o Theatro Municipal respondeu: “O EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO nº 01/FTMSP/2021, pelo qual foi gerado o Contrato de Gestão vigente, estipula o cumprimento de diversas metas, dentre elas, de participação do regente titular da OSM nos programas sinfônicos e temporada de óperas. Nas óperas, a porcentagem anual de participação do titular é muito elevada, motivo pelo qual há pouco espaço para conduções que não sejam do maestro Roberto Minczuk”.

A informação oficial procede, conforme consta do quadro de metas do contrato celebrado em maio de 2021 entre a Fundação Theatro Municipal e a Sustenidos (veja aqui, a partir da página 133). Originalmente, tal contrato estipulava que o regente titular deveria reger 75% das récitas de óperas e 60% dos concertos. Depois, no 2º aditamento ao contrato original, celebrado em setembro de 2022, a meta de regência de concertos foi elevada para 68%.

Os percentuais são elevados, mas condizentes com a remuneração do regente. Seu contrato atual encerra-se neste mês de dezembro, como pode ser observado em um documento público constante do site do TMSP (veja aqui, na página 7).

E, se a renovação do contrato é por agora, esta seria uma excelente oportunidade para a Sustenidos renegociar junto à Fundação Theatro Municipal o referido percentual elevado de participação do regente titular nas óperas, com o consequente ajuste proporcional em sua remuneração.

Sim, pois, do jeito que está hoje, essa meta de participação do regente titular cria uma anomalia: a casa de ópera mais abastada do país não consegue trabalhar em sua temporada lírica com regentes convidados. A anomalia é ainda mais absurda quando observamos, por exemplo, o caso do Theatro Municipal do Rio de Janeiro: a casa carioca, que tem sérios problemas orçamentários, consegue trabalhar normalmente com regentes convidados!

Se houvesse a redução da meta, ganhariam todos: seria oferecida ao público uma maior variedade de regentes na temporada lírica do TMSP; e o próprio regente titular teria mais tempo livre para atuar como convidado em outras orquestras. No Brasil, no entanto, o que é bom para todos nem sempre é o que prevalece.

Uma temporada a ser decifrada

Em resumo, o fator mais positivo da programação de óperas do Theatro Municipal de São Paulo para 2024 é de ordem quantitativa: afinal, seis montagens completas e mais um título apresentado em forma de concerto representam uma quantidade bem razoável para o padrão nacional e que dificilmente será igualada por qualquer outro teatro.

Por outro lado, entre montagens que prometem mais e outras que certamente causarão discussões, com solistas estrangeiros convidados que – em sua maioria e em tese – não têm muita expressão internacional, com personagens importantes que ainda não possuem intérpretes escalados, e com o mesmo regente de sempre, a próxima temporada lírica do TMSP é um enigma que ainda será decifrado.

–**–

Foto principal: Rafael Salvador.

Um comentário

  1. […] O Theatro Municipal de São Paulo, em tese, teria tudo para ser o teatro de ópera mais importante do país, pelo simples fato de que é o mais abastado, aquele que tem o maior orçamento para desenvolver a sua temporada artística. Teria, reitero. O problema é que a casa não sabe muito bem o que fazer com o orçamento que tem. Para 2024, por exemplo, resolveu preparar montagens novas para óperas que apresentou em anos relativamente recentes. Com tantos títulos no vasto repertório lírico que não são apresentados ali há décadas – fora os que nunca foram apresentados –, o TMSP resolve fazer de novo, mais uma vez, novamente Carmen e Nabucco, como conto neste artigo. […]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *