No Theatro Municipal de São Paulo, gala contou com Maria Pia Piscitelli, Marco Berti e Rodolfo Giugliani.
No último final de semana de outubro, foi oferecido ao público paulistano uma preciosa oportunidade de se desligar, ao menos por duas horas, do clima tenso que caracterizou os dias que antecederam as eleições presidenciais e se deixar levar pelos encantos da ópera italiana. Nos dias 28 e 29, o Theatro Municipal de São Paulo encerrou as suas atividades líricas do ano com uma bela gala dedicada à célebre soprano italiana Renata Tebaldi (1922-2004), cujo centenário ocorreu em 01 de fevereiro.
A homenagem não foi um evento isolado, mas parte do projeto Tebaldi100, encabeçado pela Fundação Renata Tebaldi ou, em bom italiano, Renata Tebaldi Fondazione Museo, com sede em Busseto. A ideia do projeto foi promover atividades didáticas e concertos em torno da figura de Tebaldi neste ano de seu centenário, lembrando a carreira e os sucessos da grande cantora. A iniciativa conquistou o apoio de instituições e teatros pelo mundo, como os teatros La Scala, Regio di Parma, di San Carlo, Maggio Musicale Fiorentino, The Metropolitan Opera e Liceu de Barcelona. No Brasil, aderiram o Consolato Generale d’Italia in San Paolo, Istituto Italiano di Cultura de São Paolo, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Theatro Municipal de São Paulo e a Cia. Ópera São Paulo, que, na figura de seu diretor artístico Paulo Esper, intermediou a inclusão dos teatros brasileiros nesse evento tão caro ao mundo lírico.
Na terça-feira passada, 25 de outubro, dia mundial da ópera, conforme já relatado por Leonardo Marques, ocorreu a gala Tebaldi do Rio de Janeiro, com a apresentação de três sopranos (Ludmilla Bauerfeldt, Marianna Lima e Tatiana Carlos) sob a regência de Priscila Bomfim. Em São Paulo o formato foi um pouco diferente, a gala contou com duas nacionalidades e três tipos de voz: a soprano italiana Maria Pia Piscitelli, o tenor italiano Marco Berti, substituindo Luciano Ganci, e o barítono brasileiro Rodolfo Giugliani, tendo na regência o maestro Roberto Miczuk. No programa paulistano, que contemplou obras de Giuseppe Verdi, Giacomo Puccini, Pietro Mascagni, Francesco Cilea e Umberto Giordano, trechos de óperas que marcaram a trajetória de Renata Tebaldi. Merece especial destaque a parte final do concerto: o Improvviso, La Mamma Morta, Nemico della Patria e Vicino a te, todas da ópera Andrea Chénier, de Giordano, e, como extra, o famoso brindisi, de La Traviata, de Verdi. Foram justamente essas duas óperas, La Traviata e Andrea Chénier, que Tebaldi protagonizou, nesse mesmo palco, durante a gloriosa temporada de 1951, única ocasião em que esteve em São Paulo.
Com voz poderosa, agudos marcantes e muito bem sustentados, o tenor italiano Marco Berti expôs o seu lado verista, e o público vibrou. Faltaram-lhe, porém, as nuances necessárias para transmitir a poesia e o lirismo de árias como Recondita Armonia, de Tosca, de Puccini.
Rodolfo Giugliani, talentoso barítono brasileiro, dono de bela e poderosa voz, protagonizou um dos mais marcantes e aplaudidos números, sobretudo na sexta-feira: o Te Deum, da Tosca. Com a interpretação consistente que brota naturalmente quando se dá o devido peso, a devida entonação a cada palavra, Giugliani fez um forte e expressivo Scarpia. Também foi ótimo o seu desempenho como Michonet em Ecco il monologo, da ópera Adriana Lecouvreur, onde a teatralidade é absolutamente decisiva para o sucesso.
Em uma gala Tebaldi, tributo a uma das maiores sopranos do século XX, o bom desempenho dos dois cantores masculinos teria sido de pouca serventia sem uma grande soprano, uma verdadeira representante da escola italiana, detentora de sólida técnica, com musicalidade, sensibilidade, expressividade… enfim, uma verdadeira artista. E lá estava ela: Maria Pia Piscitelli. Logo de saída, em La vergine degli angeli, de La Forza del Destino, de Verdi, com um belíssimo legato e dinâmica perfeita, a voz de Piscitelli flutuou, delicada e segura, sobre o coro masculino e o acompanhamento orquestral. Mesmo em piano, sua voz preencheu a sala inteira com grande beleza.
A ária seguinte, da mesma ópera, Pace, pace mio Dio, já conta com um ambiente bem diferente. Até a forma como Piscitelli entrou no palco já foi diferente: amante do teatro, sua postura era de uma pessoa oprimida, com os braços cruzados, à frente, prendendo firmemente a echarpe que a envolvia. No ataque da primeira “pace”, a contundente messa di voce seguida de um portamento. Durante a ária, a dramaticidade de uma Leonora desiludida, sem esperanças, suplicante. Controle da respiração, legato, dicção absolutamente perfeita e rica dinâmica são marcas de Maria Pia Piscitelli, que não sonegou um único pianissimo, nem mesmo quando se tratava de um si bemol agudo. Chamou-me a atenção seu “Alvaro, io t’amo”, cantado “con passione”, como indicado na partitura, e com bom gosto, sem exagero.
No mês de novembro, Maria Pia Piscitelli permanecerá na América do Sul: ela encabeçará o primeiro elenco da tão badalada Tosca do Teatro Colón, de Buenos Aires. Por isso, seu Vissi d’arte era bastante aguardado. Mesmo já em uma fase da vida em que a voz nem sempre responde da mesma forma aos mesmos comandos, Piscitelli não deixou de atacar a ária em piano – coisa que, geralmente, cantoras jovens e populares, mas tecnicamente deficientes, não arriscam fazer – e “dolcissimo con grande sentimento”, como indicou Puccini na partitura. Foi um momento de extrema beleza e comunhão com o público. Exalando a paixão e a dramaticidade indispensáveis à personagem-título, Piscitelli promete dar vida a uma grande Tosca no Colón, o que animou algumas pessoas que, com passagem e ingresso já comprados, foram conferir o ‘aperitivo’ em São Paulo.
Após passar com maestria por Io son l’umile ancella (Adriana Lecouvreur, de Cilea), Piscitelli deu uma lição de canto e interpretação em La mamma morta, da ópera Andrea Chénier. E com Vicino a Te, o belo dueto da mesma ópera, Berti e Piscitelli encerraram o concerto sob os fortes aplausos do público.
O concerto contou com a participação do Coro Lírico Municipal e da Orquestra Sinfônica Municipal. Como sempre, o coro brilhou e teve, finalmente, a oportunidade de executar, com sua formação completa, a cena da Marcha Triunfal da ópera Aida, já que quando a ópera esteve em cartaz, em junho deste ano, a grupo estava desfalcado em função de uma forte onda de Covid. Também a orquestra demonstrou coesão e precisão. Sob a regência de Roberto Minczuk, seu maestro titular, o grupo teve momentos de bela sonoridade, mas outros um tanto agressivos, até rudes. A abertura de La Forza del Destino, primeira peça da noite, foi um exemplo de sonoridade que foi além do vigor, o que me fez temer pelo restante do concerto – temor que, felizmente, de uma maneira geral não se confirmou. No Te Deum, sobretudo no sábado, a orquestra estava alta demais, estridente demais, encobrindo o Giugliani, apesar de sua poderosa voz. Felizmente o mesmo não ocorreu com as árias interpretadas por Piscitelli, que contaram que uma sonoridade bem mais refinada. Quanto ao andamento, em alguns momentos, sobretudo em La Mamma Morta, foi possível sentir Piscitelli tentando acelerar, mas o maestro parece não ter percebido: durante as duas récitas, não olhou uma única vez para nenhum dos solistas.
Faço essas observações não para dizer que tenha havido algum grave problema. Ao contrário, nada comprometeu o brilho da noite nem a qualidade do resultado artístico. O que se pode tirar dessas observações é a importância da realização de concertos como este: para que maestro, orquestra e cantores nacionais atinjam grau de excelência no repertório lírico, como é o esperado de um teatro que já recebeu não só Renata Tebaldi, mas também Maria Callas, a exposição a bons e experientes cantores é indispensável. Além disso, quando diante de um cantor com a vivência e a qualidade de Maria Pia Piscitelli, é preciso que o maestro olhe para ele(a), lhe dê ouvidos, deixe-se levar por ele(a). É comum cantores comentarem, em entrevistas, a diferença que faz quando sentem que o maestro está com eles, a tranquilidade que isso traz, o bom resultado. E quando isso ocorre, o público percebe na hora. Recentemente, vi isso acontecer durante o Rigoletto do Teatro alla Scala, que teve como regente Michele Gamba. A regência foi, em geral, bruta. Porém, quando Nadine Sierra, no papel de Gilda, cantou “Tutte le feste al tempio”, para surpresa geral, o maestro estava com ela, permitiu que ela acelerasse, ralentasse, sustentasse seus belos pianíssimos… Foi um momento mágico, que só foi possível porque aquele maestro, naquele momento, deixou-se levar pela excelente solista.
Para finalizar, é preciso dizer que o que vimos no último final de semana foi uma gala lírica como há muitos anos não se via no TMSP: grandes vozes, interpretações requintadas e bom desempenho dos corpos estáveis da casa. Foi bom e saudável para todos: o público vibrou; jovens cantores observavam, atentos, e tentavam assimilar algumas lições; o teatro recebeu um espetáculo lírico de nível internacional. Por isso, além dos artistas, também a Sustenidos, organização social que gere o teatro, merece os aplausos pela acertada decisão de ter aderido à celebração internacional do centenário de Renata Tebaldi. E deixo aqui a sugestão de que sejam realizadas galas líricas com alguma frequência.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
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