“Le Villi” no TMRJ: bela encenação e vozes que não convencem

Equipe de criação é o grande destaque do título de Puccini que conclui o “II Festival Oficina da Ópera”.

II Festival Oficina da Ópera

19 setembro de 2024

Theatro Municipal do Rio de Janeiro


Le Villi (As Willis), 1884
Ópera em dois atos

Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Ferdinando Fontana (1850-1919)

Direção musical: Felipe Prazeres
Direção cênica: Bruno Fernandes e Mateus Dutra
Cenografia: Fael di Roca
Figurinos:
Renan Garcia
Iluminação: Isabella Castro e Jonas Bastos

Elenco:
Anna: Marly Montoni, soprano
Roberto: Lazlo Bonilla, tenor
Guglielmo: Santiago Villalba, barítono
Rainha das Willis: Claudia Mota, bailarina
Narrador: Nicola Siri, ator

Coro do Theatro Municipal (Regente: Cyrano Sales)
Bailarinos(as) contratados(as) e também do Ballet do Theatro Municipal
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal

Depois de Candinho e de La Serva Padrona, o último título a estrear no II Festival Oficina da Ópera do Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi justamente o primeiro composto por um certo Giacomo Puccini, que lá pelos idos de 1884 começava a chamar a atenção para a qualidade da sua música: Le Villi (As Willis – por vezes chamada também de As Fadas em tradução livre), ópera sobre libreto de Ferdinando Fontana que bebeu da mesma fonte que inspirou o balé Giselle, – a lenda das willis, virgens que morrem de amor depois de serem traídas pelos seus amados, e que se tornam espíritos vingativos, atraindo homens infiéis à floresta para uma dança mortal.

Na trama da ópera, Anna e Roberto estão noivos, mas ele precisa realizar uma viagem com a intenção de receber uma herança. Longe, Roberto se deixa seduzir por outra mulher, trai o amor de Anna e se esquece dela, não retornando mais à aldeia. Anna adoece de amor e morre. Tempos depois, abandonado pela amante e cheio de remorsos, Roberto finalmente retorna à sua aldeia, mas o espírito de Anna está à sua espera. Com o auxílio das suas irmãs willis, ela o atrai para o sabá no qual ele será obrigado a dançar até a morte. Roberto pede piedade à Anna, mas ela é implacável (“Você é meu!”).

Lazlo Bonilla (Roberto) e Marly Montoni (Anna)

Para ilustrar esse enredo relativamente simples, resolvido em cerca de 70 minutos, o jovem Puccini, então com 26 anos incompletos, cria uma música que já permite vislumbrar os primeiros traços do gênio, do homem que vai dominar a ópera italiana pelas próximas quatro décadas. Melodias cativantes, domínio da orquestração, construção dramática inteligente, todas essas características que passariam por constante evolução ao longo da carreira do mestre, já estavam presentes ali, ainda que de forma embrionária.

Em meio aos dois atos da ópera, Puccini escreveu um intermezzo em dois tempos: a primeira parte (L’Abbandono / O Abandono), em tempo relativamente lento, descreve o falecimento da protagonista; e a segunda parte (La Tregenda / O Sabá), em tempo bem mais animado, antecipa o desfecho da ópera ao já apresentar a dança macabra – e ao mesmo tempo irresistível – das willis.

Roberto (o tenor Lazlo Bonilla) e a tentação que lhe afastou de Anna (bailarina de vermelho)

No TMRJ, coube à dupla Bruno Fernandes e Mateus Dutra – integrantes do Ballet da casa e que ali já vêm atuando em produções de óperas como diretores de movimento – criar a encenação de Le Villi. Guardadas as proporções de um Festival destinado a revelar talentos, pode-se dizer que o que se vê em cena é uma montagem caprichada, concebida com inteligência e muita criatividade, além de visualmente atraente.

Na concepção da dupla, a figura do Narrador é Conrad, o irmão de Anna na obra original na qual a ópera se baseou (As Willis, de Jean-Baptiste Alphonse Karr), e ele de certa forma conduz a ação, lendo o livro no qual guardou as suas memórias. Os diretores também se inspiram na obra original para destacar o personagem de Roberto como um caçador, que dá à Anna um cervo morto como presente de noivado. Mais adiante, as willis usarão máscaras de cervo (criadas por Penha Maria de Lima).

O bom cenário de Fael di Roca funciona bem nos dois atos, mas especialmente na segunda parte, a partir do intermezzo, quando é enriquecido pela excelente iluminação de Isabella Castro e Jonas Soares. Os corretos figurinos de Renan Garcia também têm especial destaque na segunda parte, quando as vestes brancas das willis, contrastando com os trajes escuros do coro, ganham a devida impressão fantasmagórica, mais uma vez com o auxílio do caprichado trabalho de iluminação do espetáculo.

Marly Montoni (voltada para trás) e Claudia Mota

Para completar a encenação, funciona muito bem a inspirada coreografia dos próprios diretores, Fernandes e Dutra, bem defendida por bailarinos da casa e contratados. Merece menção especial a atuação imponente da primeira bailarina, Claudia Mota, como a Rainha das willis. Não foi por acaso que, dentre os aplausos do público no meio da récita do dia 19, a ovação claramente mais extensa aconteceu exatamente no final do segundo tempo do intermezzo (O Sabá), no qual o desempenho dos bailarinos e o ritmo galopante da música de Puccini entusiasmaram a plateia.

O ator Nicola Siri interpretou muito bem o Narrador/Conrad. O Coro do Theatro Municipal, preparado por Cyrano Sales, ofereceu uma boa récita, enquanto a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, conduzida pelo seu titular, Felipe Prazeres, alternou-se entre momentos mais e menos satisfatórios. A sonoridade do conjunto oscilou bastante ao longo da apresentação, enquanto Prazeres procurava trabalhar bem a dinâmica.

Santiago Villalba (Guglielmo)

É uma pena que, em uma encenação tão bem realizada, as vozes não tenham sido também um ponto alto. O barítono Santiago Villalba, que havia interpretado um ótimo Belcore na ópera O Elixir do Amor, apresentada em abril passado, desta vez foi um Guglielmo apenas discreto, melhorando um pouco no segundo ato. Na oração Angiol di Dio, sua voz não se mostrou muito confortável na região mais grave. Já na romanza Anima santa della figlia mia, destacou-se dramaticamente.

Faltou pasta ao tenor Lazlo Bonilla, que foi um Roberto de voz audível, mas sem o peso necessário. Sua cena e romanza do segundo ato, Ecco la casa… / Torna ai felici dì, restou bem aquém do esperado. Foi a primeira vez que o ouvi, e fiquei com a sensação de que, talvez, ele possa render mais em outro tipo de repertório.

A soprano Marly Montoni deu vida à protagonista, Anna, com boa atuação cênica (e aqui foi nítida a qualidade da direção de cena), mas também deixou a desejar vocalmente. Sua ária do primeiro ato, Se come voi piccina, passou reta, sem colorido, sem refinamento. O dueto com o tenor, Non esser, Anna mia, mesta sì tanto / Tu dell’infanzia mia, seguiu pela mesma linha. No segundo ato, Montoni mostrou-se intensa na cena final, na versão willi da personagem, mas sua voz teimava em não convencer.

Roberto (Lazlo Bonilla), já sob o domínio das willis

E assim, com Le Villi, que tem récitas até o sábado, 21/09, conclui-se a segunda edição desta belíssima iniciativa que é o Festival Oficina da Ópera. Se a qualidade musical desta última produção tem as suas questões, o objetivo principal do evento foi alcançado com louvor: revelar novos profissionais para as equipes de criação, que elaboraram três encenações de qualidade, com destaque especial para a equipe desta ópera de Puccini, no ano em que é lembrado o centenário de morte do compositor.


Leia também a crítica de Candinho e de La Serva Padrona.


Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, as willis).

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