“Madama Butterfly”: uma jornada de comprometimento

Sob a sensível e cuidadosa direção cênica de Livia Sabag, Eiko Senda se transfigura em Cio-Cio-San.

Madama Butterfly (1904)
Ópera em três atos

Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Luigi Illica (1857-1919) e Giuseppe Giacosa (1847-1906)
Base do libreto: Madame Butterfly, tragédia de David Belasco (1853-1931), por sua vez baseado no conto homônimo de John Luther Long (1861-1927).

Theatro Municipal de São Paulo, 16 de março de 2024

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Livia Sabag

Elenco:
Cio-Cio-San/Madama Butterfly: Eiko Senda, soprano
Pinkerton: Enrique Bravo, tenor
Sharpless: Michel de Souza, barítono
Suzuki: Juliana Taino, mezzosoprano
Goro: Jean William, tenor
Tio Bonzo: Andrey Mira, baixo
Kate Pinkerton: Elaine Martorano, mezzosoprano
Príncipe Yamadori: Carlos Eduardo Santos, tenor
Comissário Imperial: Leonardo Pace, baixo

Orquestra Sinfônica Municipal
Coral Paulistano (preparação: Maíra Ferreira)

“Deus a abençoe, jovem, e à criança que está amamentando em seu peito. Permita-me jogar meu fardo aqui, junto a este muro de pedra, à sombra do carvalho, e descansar ao seu lado.”

(J. W. Goethe, Der Wanderer. Tradução livre)

Quando vi, ainda através de fotos, o cenário da produção de Madama Butterfly que estreou no final do ano passado no Teatro Colón, em Buenos Aires, e no dia 15 de março no Theatro Municipal de São Paulo, logo me lembrei das melancólicas imagens do Romantismo alemão do século XIX, retratando o caminhante e a jornada da vida. Os grandes símbolos desse movimento são, na literatura, os poemas de Goethe, e nas artes plásticas, Caspar David Friedrich e o seu quadro Der Wanderer über dem Nebelmeer (Caminhante sobre o mar de névoa), de 1818. No quadro, o caminhante está no cume de uma rocha ou montanha, olhando o mar de neblina que esconde outros picos. Sozinho, confronta-se com o incalculável, com a incerteza inerente à neblina. Em outro quadro de Friedrich, com o qual coincidentemente me deparei na Alte Pinakotheke, em Munique, poucos dias depois de ter visto a ópera em São Paulo, o pintor retrata uma lúgubre paisagem de Riesengebirge, com uma árvore seca, solitária, como no cenário da Butterfly. Deixo aqui a foto que tirei:

A jornada

É dura e solitária a jornada de Cio-Cio-San, a filha de um samurai que conheceu uma vida próspera, mas que, após a restauração do poder do imperador e a consequente queda dos samurais e o suicídio do seu pai, teve que se tornar gueixa para sustentar a família. Tomada por uma ilusão que ela mesma sabia falaciosa, casou-se com um oficial americano. Tratei de toda essa história em um artigo que escrevi recentemente.

A jornada interior da pobre Butterfly é solitária, como a do Wanderer. Ela tem consigo Suzuki, a sua serva amorosa, e o seu filho – que se chama Dor, esse filho que amamentou em seu peito. Chora sozinha, contudo, “sola e rinnegata”.

Carmen Giannattasio e Celso Albelo no cenário de Nicolás Boni (foto: Rafael Salvador)

No belo cenário de Nicolás Boni, no fundo do palco, também há neblina e picos. À frente, à esquerda, uma descida pedregosa e uma árvore seca com as raízes de fora, para a qual não há esperança de vida; à direita, a pequena casa que Pinkerton comprou por 999 anos. A casa fica suspensa sobre estruturas de madeira, na diagonal, e não em um posicionamento artificial e demasiado didático; só vemos parcialmente o seu interior. O terreno é acidentado, tudo é árido, lúgubre, pedregoso, com escadas, instável, literalmente perigoso.

E isso não é sem motivo. No texto que a encenadora Livia Sabag escreveu para o programa de sala, ela ressalta que a produção explora um aspecto que, para ela, é essencial na obra: “a tragédia anunciada”. “Desde o início da ópera percebemos a situação de risco em que se encontra Butterfly, uma situação em que ela é colocada e que, em parte, ela mesma se coloca ao se converter ao cristianismo, ao assumir que o casamento é real e que é amada e respeitada por Pinkerton”, afirmou a diretora.

No cenário, não há lugar para flores coloridas ou qualquer tentativa de amenizar o drama, de esquecer a pobreza, de tornar menos sombria ou menos nebulosa a jornada de Butterfly. Sabag se preocupou em retratar a realidade do Japão da segunda metade do século XIX e a decadência social da família de Cio-Cio-San. Tudo sem estereótipos.

Durante o intermezzo, é projetada uma cena do filme Oharu – A Vida de uma Cortesã (1952), do cineasta japonês Kenji Mizoguchi. Segundo Sabag, o espetáculo inteiro dialoga com o filme. “Quase toda a sua obra [de Mizoguchi] é marcada por um episódio traumático de sua vida – a irmã do cineasta foi vendida por seu pai para resolver problemas financeiros da família”, explica a diretora. “As trajetórias das personagens Oharu e Butterfly têm diversos pontos em comum, e tanto o filme quanto a ópera, a meu ver, denunciam acima de tudo a brutalidade da desigualdade”.

Enquanto vemos a projeção do filme, no palco é representado o final no qual Cio-Cio-San tenta acreditar – um final que ela apresenta a Suzuki em sua ária, Un bel dì vedremo.

O espetáculo teve um cenário único, que só foi alterado pela delicada luz de Caetano Vilela, que mudava de intensidade e de temperatura em função do horário, da estação do ano, do humor da cena e de uma visível degradação que a casa sofreu entre o primeiro e o segundo atos. Essa degradação, além de explicitar a situação de Cio-Cio-San após o abandono de Pinkerton, nos lembra da real precariedade, da efemeridade dessa casa comprada por 999 anos.

Juliana Taino e Eiko Senda

Também nos figurinos de Sofia di Nunzio não há luxo. Todos são austeros, revelando a pobreza da família de Cio-Cio-San. O curioso é que os americanos também estão vestidos de forma simples. Esse é o caso tanto do uniforme de Pinkerton quanto do vestido de Kate Pinkerton. Assim, por mais que o oficial exiba ar de superioridade, por mais que tenha desprezado aquele povo, também ele era, na produção de Sabag, um oficial sem grande pompa e sem grande importância.

A direção cênica de Livia Sabag foi, como sempre, sensível, cuidadosa e atenta a detalhes. Logo que chega, Pinkerton joga o cigarro no chão (já meio sujo) de “sua” casa, essa casa pela qual não demonstra o mínimo respeito – e Goro chuta o toco de cigarro. Quando, no segundo ato, o Cônsul entra em sua casa, Butterfly lhe diz que está em uma casa americana (é a casa de Pinkerton) e, ao mesmo tempo, como que se contradizendo, estende duas almofadas e uma bandeja de chá, no melhor estilo japonês. Quando Butterfly acaba de cantar Che tua madre, o menino vai correndo e a abraça, em uma cena comovente que arranca suspiros do público. Isso para citar apenas três exemplos.

Comprometimento

O “cenário” musical ficou por conta do maestro Roberto Minczuk, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal. O problema foi que esse “cenário” já começou tão degradado quanto a casa de Cio-Cio-San ficou após o abandono de Pinkerton. Na obra de Giacomo Puccini, enquanto Pinkerton e Goro, ou Pinkerton e Sharpless, ou Pinkerton e Cio-Cio-San conversam, os instrumentos da orquestra também conversam – e nos falam muito! Como em uma boa conversa, deve haver entonação, dinâmica, todo um colorido. E tempos precisos. A essas partes, as mais interessantes e mais complexas de se executar da obra, faltou essa dinâmica, os tempos não foram justos, faltou leveza, faltou sutileza, cuidado, faltou um trabalho atento do regente com a orquestra. Além disso, ao longo da ópera, por muitas vezes a orquestra estava forte demais (entendo, é mais fácil tocar assim!).

Minczuk rege quase todas as óperas do Theatro Municipal de São Paulo desde 2017; questões contratuais praticamente impedem que outro maestro pegue a batuta por aqui. Por outro lado, Minczuk rege ópera única e exclusivamente no TMSP. Caso alguém tenha dúvida, o Opera Base está aí para comprovar. Se a orquestra não é exposta a outros regentes, e se o regente não é exposto a outras orquestras de ópera, não há chance de as coisas melhorarem. Esse isolacionismo não é saudável. É verdade: Minczuk é titular de uma outra orquestra (não de ópera), a Filarmônica do Novo México. Seria uma boa notícia se ele não permitisse que os seus ensaios e concertos por lá coincidissem com os ensaios finais e até récitas por aqui – como ocorreu na Butterfly.

Sem dúvida, esse problema dificultou um tanto a vida dos cantores, sobretudo daqueles que, pouco ou nada familiarizados com a obra, precisavam de um trabalho musical mais preciso, de uma orquestra mais justa. Mesmo assim, saíram-se bem Jean William (como Goro – sobretudo cenicamente), Juliana Taino (como Suzuki – descontadas algumas notas um pouco baixas) e, principalmente, Michel de Souza no papel de Sharpless. Os comprimários, citados no início deste artigo, tiveram um desempenho apenas aceitável.

Como Pinkerton, Enrique Bravo demonstrou musicalidade e um bom envolvimento com a cena, mas as suas passagens para o agudo deixaram um pouco a desejar. Bravo retratou um Pinkerton natural, sem o estereótipo do galã mau caráter. Em outras palavras, seu Pinkerton foi uma pessoa comum que, sob a proteção de uma bandeira imperialista, pratica um crime socialmente aceito.

A abertura da temporada lírica contou com a participação do Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira, uma vez que o Coro Lírico está ensaiando para a próxima ópera, Carmen. Sorte do Lírico que ele é o coro do TMSP, e não da Opéra de Paris ou do Met, senão teria que aprender a cantar uma ópera enquanto ensaia outra. Sem problema, no entanto: o Paulistano desempenhou  muito bem esse papel de coro lírico!

Não pense o leitor, com base no que foi exposto acima, que a produção de Livia Sabag não prevê colorido algum. Prevê sim — e como! Só que esse colorido não está no cenário, está na interpretação da soprano responsável pelo papel-título – afinal de contas, é a sua jornada pelo árido caminho da vida que estamos vendo; é ela que, como a árvore (para a qual não há esperança), está à beira do precipício. E é em seu muro que nós, também caminhantes, jogamos os nossos fardos, despejamos as nossas lágrimas.

Michel de Souza e Eiko Senda

Felizmente, colorido foi o que não faltou, no dia 16 de março, quando a experiente soprano Eiko Senda encarnou Cio-Cio-San. Foi impressionante a gama de cores que brotou da sua voz. Senda expôs, com o seu canto, mas também com a sua primorosa teatralidade, as diferentes facetas de Butterfly. Através dela, vimos a menina, até um tanto ingênua, que se apresentou a Pinkerton e a Sharpless; vimos, no segundo ato, a mesma menina, só que agora não mais tão ingênua, falando sobre a lei americana; vimos a triste e jovem mãe apresentando o seu filho e assumindo as suas responsabilidades.

Durante o dueto que encerra o primeiro ato, Senda salientou o sobressalto de Butterfly ao ouvir o tema da maldição do seu tio Bonzo, e perguntou com dramática premonição sobre a prática ocidental de prender uma borboleta com um alfinete no peito. A agilidade com que ela saltitava pelas escadas, entrava e saía da casa, mesmo em um dia de calor fortíssimo, foi impressionante. Seu gestual foi marcante. A soprano estava totalmente à vontade no palco, a produção parecia feita para ela. Sua entrega foi total, e a impressão que dava, após a récita, era a de que ela havia se exaurido.

Eiko Senda não sonegou uma nuance sequer em Un bel dì. No final, ao se despedir do filho, ela canta a sua trágica Tu? Tu? como quem está, realmente, falando com uma criança pequena. Não me lembro de outra intérprete que tenha tido esse cuidado. Em resumo, Eiko Senda demonstrou, no palco, aquilo que me afirmou ser a grande chave para interpretar Cio-Cio-San: comprometimento. Comprometimento e doação. Entregou-se de corpo e alma naquele palco, demonstrou não só todo o amor que tem por “sua” Cio-Cio-San, mas também a imensa artista que é.


Fotos: Larissa Paz (exceto aquela indicada como de Rafael Salvador).

Um comentário

  1. Grande Fabiana. Admiro seus conhecimentos e brilhantes comentários. Continue assim e deixemos de lado aqueles sem ética e com dor de cotovelo

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