Soprano exibiu uma bela voz, tenor mostrou evolução e consistência, e baixo-barítono se destacou pela visceralidade das suas interpretações.
Dia Mundial da Ópera – Recital de Canto e Piano Carlo Bergonzi 100 anos
25 de outubro de 2024
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Mariana Gomes, soprano
Marianna Lima, soprano
Gabriele de Paula, soprano
Ricardo Gaio, tenor
Fernando Lorenzo, barítono
Licio Bruno, baixo-barítono
Priscila Bomfim, piano
Comemorando o Dia Mundial da Ópera, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro promoveu nos dias 24 e 25 de outubro um recital com seis cantores (quatro integrantes do coro da casa, além de dois convidados). Acompanhados ao piano pela diretora musical da apresentação, a pianista e regente Priscila Bomfim, os cantores interpretaram duas árias cada: uma de Giacomo Puccini na primeira parte do recital, e uma de Giuseppe Verdi na segunda parte. Não houve intervalo e nem bis.
O primeiro destaque da noite foi o fato de o TMRJ não repetir o erro do ano passado, quando, também em comemoração ao Dia Mundial da Ópera, denominou “Gala” um concerto em que cantores, acompanhados de orquestra, interpretavam trechos de óperas. Faltou, naquela ocasião, convidar cantores à altura de uma gala lírica. Neste ano, ao contrário e muito corretamente, a direção da casa não se deixou contagiar novamente por uma marquetagem megalomaníaca: o que foi oferecido ao público foi um recital simples, mas honesto, dedicado aos 100 anos de nascimento do tenor italiano Carlo Bergonzi.
Na apresentação do dia 25, os dois primeiros cantores que subiram ao palco integraram o grupo menos empolgante. O barítono Fernando Lorenzo e a soprano Gabriele de Paula tiveram performances semelhantes: suas vozes, com evidentes limitações técnicas, mostraram-se pouco musicais. Exatamente por isso, ambos foram otimistas demais na escolha das peças que apresentaram.
De Puccini, o barítono cantou Nulla… Silenzio!, solo de Michele em Il Tabarro, e mais adiante, de Verdi, Eri tu, grande ária de Renato em Un Ballo in Maschera, sempre recuando nos principais agudos. A soprano, que tinha como agravante uma dicção muito ruim, foi ainda mais ousada ao escolher peças que lhe eram impossíveis: Vissi d’arte, de Tosca, e Pace, pace, mio Dio, de La Forza del Destino. Parece ter faltado direção aqui, seja dos responsáveis pelo recital, seja dos professores/orientadores dos cantores, que deveriam ter-lhes proposto peças menos exigentes e mais adequadas às condições atuais das suas respectivas vozes. Ao enfrentarem esse repertório, ambos restaram bastante expostos.
A terceira a se apresentar foi a soprano Mariana Gomes, e aí, sim, estávamos todos diante de uma voz! De emissão consistente, equilibrada em todas as regiões e com bom domínio técnico. Se, em Puccini (Donde lieta uscì, ária de Mimì em La Bohème), ainda apareceram algumas frases que demandavam melhor construção e um acabamento mais caprichado, foi na peça de Verdi que a voz de Mariana Gomes se revelou em todo o seu potencial. A soprano abordou a ária Addio del passato, que Violetta entoa no último ato de La Traviata, com extrema segurança, expressividade, trabalhando as cores com inteligência interpretativa. Foi uma bela interpretação de uma grande ária – tão bela que deu até para relevar uma ligeira e quase imperceptível oscilação na última nota; tão bela que me deixou com vontade ter ouvido a segunda parte da peça, que ela, infelizmente, não cantou.
Quarta solista da noite (e terceira soprano!…), Marianna Lima é uma cantora de altos e baixos, e cujos baixos, ironicamente, costumam se encontrar nos agudos, normalmente com afinação imprecisa. Esse histórico se repetiu no dia 25. A ária de Puccini escolhida (Un bel dì vedremo, de Madama Butterfly) recebeu uma interpretação comum e inexpressiva. Já Morrò, ma prima in grazia, ária da personagem Amelia em Un Ballo in Maschera, que a soprano cantou há alguns anos, soou um pouco mais consistente, com belos médios e com expressão, enquanto os agudos insistiam na oscilação habitual.
O tenor Ricardo Gaio, que já havia se apresentado no TMRJ nas óperas Piedade, de João Guilherme Ripper, e La Traviata, de Verdi, adentou o palco para interpretar Firenze è come un albero fiorito, de Gianni Schicchi, de Puccini: cantou bem, com desenvoltura, ainda que algumas frases necessitassem de maior atenção. Mais adiante, quando retornou para nos oferecer um Verdi (De’ miei bollenti spiriti, da mesma Traviata que ele já havia cantado completa), sua voz se revelou segura, bela, dotada de brilho e de expressão, e ainda com agudos precisos e generosos. É um cantor em franca evolução.
Por fim, Licio Bruno. Mais experiente do sexteto vocal, o baixo-barítono foi o último a se apresentar nas duas partes do recital. De Puccini, o artista abordou o monólogo de Gianni Schicchi na ópera homônima, Era eguale la voce?, e de Verdi, o grande Credo de Iago em Otello. Exímio ator, Licio Bruno dominou o palco não somente cantando os trechos selecionados para a apresentação, mas literalmente interpretando os personagens para os quais tais passagens foram criadas. O baixo-barítono buscou transmitir, de maneira visceral, a natureza desses personagens. Essa característica, em alguns poucos momentos, afetou de alguma maneira a qualidade vocal, sem, no entanto, prejudicar o resultado final.
Em um recital no qual as peças vocais de Verdi soaram mais bem trabalhadas que aquelas de Puccini, o melhor Puccini acabou vindo de Priscila Bomfim, que, além de acompanhar os cantores com correção, ainda interpretou sozinha, com domínio e expressividade, o Intermezzo da ópera Manon Lescaut. Bomfim poderia, apenas, ter evitado o ato de falar desnecessariamente com o público no final – o que acabou resultando em uma situação um tanto constrangedora, por ela não lembrar o nome completo do tenor que havia acabado de acompanhar.
Em linhas gerais, o recital promovido neste ano pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro em homenagem ao Dia Mundial da Ópera foi bem melhor que o concerto do ano anterior. Se, em 2023, apenas um cantor salvou a noite, desta vez três cantores se destacaram. Há evolução, portanto. Quem sabe em 2025 tal homenagem não será ainda melhor?
Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, de vestido vermelho, a soprano Mariana Gomes).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
A gestão de Herrero só acerta quando erra. Sabe-se que o previsto era concerto com orquestra convidada… ou seja, não a da casa… dentro da temporada. Deslize que o próprio havia cometido previamente no projeto original de Candinho, uma parceria com a OSUFRJ. Vale citar também a saída de Priscila Bomfim do TMRJ após esse recital – e questionar quem irá, com qualidades devidas, a substituir. Uma vez que ela estava na função de maestra preparadora de elenco nas óperas – salvando por muitas vezes também a carência notória de pianistas dentro do Municipal. E uma dúvida: por onde andou Homero Velho na temporada carioca?
Maçar cantores como o soprano Marianna Lima, que cantou bravamente a ária “Morrò, ma prima in grazia”. da ópera “Un ballo in maschera” (da personagem Amelia); é algo destrutivo, considerando-se o empenho e a musicalidade desta artista do Theatro Municipal. Tenho acompanhado a sua carreira desde a sua intervenção na ópera “The Tales of Hoffmann”, de Jacques Offenbach, a qual sempre assinalou bom desempenho, apurada musicalidade em papéis certeiros. Valorizemos os cantores da casa e que contribuem de maneira positiva e assertiva. Só assim, poderemos obter o crescimento destes artistas líricos: o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, aliás celeiro de grandes nomes patrícios que por aqui desfilaram com acerto e êxito.