Soprano croata mostrou ser dona de uma voz altamente qualificada: na ópera, são os cantores e a música que apaixonam os seus aficionados.
Nabucco (1842)
Ópera em quatro atos e sete quadros
Música: Giuseppe Verdi (1813-1901)
Enxerto musical: Interlúdio Final, de Antonino Fogliani (1976-)
Libreto: Temistocle Solera (1815-1878)
Bases do libreto: Antigo Testamento e Nabuchodonosor, drama de Auguste Anicet-Bourgeois (1806-1871) e Francis Cornu (1798-1848)
Theatro Municipal de São Paulo *
04 de outubro de 2024
Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Christiane Jatahy
Cenografia: Thomas Walgrave, Marcelo Lipiani e Christiane Jatahy
Figurinos: An D’Huys
Iluminação: Thomas Walgrave
Vídeo: Batman Zavareze
Elenco:
Nabucco: Brian Major, barítono
Abigaille: Marigona Qerkezi, soprano
Zaccaria: Matheus França, baixo
Fenena: Juliana Taino, mezzosoprano
Ismaele: Marcello Vannucci, tenor
Grão Sacerdote de Baal: Rafael Thomas, baixo
Anna: Lorena Pires, soprano
Abdallo: Eduardo Góes, tenor
Coro Lírico Municipal (Érica Hindrikson)
Orquestra Sinfônica Municipal
* Produção original do Grand Théâtre de Genève
Nunca ouvi falar de alguém que tenha se apaixonado pela ópera por causa de algum encenador ou de alguma encenação, por melhores que sejam os encenadores e as encenações. O que faz alguém se apaixonar pela ópera são a música e os cantores. Os grandes compositores da História e os grandes cantores do passado e do presente, via de regra, são idolatrados. Os encenadores – os grandes, inclusive – são, no máximo, admirados e respeitados.
A ópera pode ser apresentada em forma de concerto, sem encenação. Pode ser apresentada até sem orquestra, acompanhada ao piano por exemplo. Não é a mesma coisa, é verdade, mas pode. Pode também ser apreciada em casa por meio de uma gravação de áudio, sem vídeo.
Levante a mão agora quem já viu uma encenação de ópera ao vivo, no teatro, sem música, ou sem cantores! Pode levantar a mão também quem já colocou um vídeo de ópera em casa e tirou o som, apenas para apreciar as imagens. Alguém? Vamos, gente, alguém? Ninguém??? Foi o que pensei. Na ópera, o que importa em primeiríssimo lugar, praticamente empatados, são a qualidade da música e a qualidade do canto. O resto vem depois. Isso, claro, não quer dizer que também não sejam importantes a regência, a orquestra e a encenação como um todo (incluindo a atuação cênica dos cantores). Claro que são importantes, mas a primazia é da música e do canto. Sem encenação, sem orquestra e até sem regente, pode haver ópera; sem música e sem canto, a ópera é impossível, pois ou não acontece, ou se tornaria apenas uma peça de teatro de prosa.
E o libreto? O libreto é importantíssimo também. Inclusive algumas das melhores óperas dos melhores compositores são exatamente aquelas que eles criaram tendo à disposição excelentes libretos. Por outro lado, há óperas muito bem avaliadas com libretos não lá muito bons, exatamente porque foram “salvas” pela música. O contrário, ou seja, uma ópera com música ruim que é bem quista em virtude do seu libreto ainda é algo a ser descoberto.
De todo modo, estamos falando de paixão pela ópera, e libretos, por melhores que sejam, não têm a potência sedutora, hipnotizante, apaixonante, que a música possui naturalmente. Assim, no princípio era a música, criada pelos grandes compositores, mas que somente chega até nós, os amantes da ópera, por meio, principalmente, dos cantores.
Soprano me fez retornar ao TMSP
Depois de ter assistido à estreia de Nabucco em 27/09 (crítica aqui), eu não pretendia voltar ao Theatro Municipal de São Paulo. Era o suficiente para mim ter visto apenas uma vez uma encenação de oportunidades perdidas. Diante da insistência de amigos para que eu fosse conferir a performance da soprano que estava interpretando a personagem Abigaille no outro elenco da produção, no entanto, acabei me animando e voltei a São Paulo na sexta-feira, 04 de outubro.
Cantores têm esse poder. Ouvi dizer por gente em cujos ouvidos confio que a cantora era ótima, e pronto! Lá fui eu, curioso, ouvi-la. Minutos antes de a récita começar, porém, chegou-me a informação de que alguns dos cantores da noite tinham sido acometidos por algum resfriado ou virose, incluindo a referida soprano. Preocupei-me. O TMSP, no entanto, não emitiu nenhum aviso a respeito naqueles anúncios intermináveis antes do espetáculo.
Já na primeira parte da récita (que inclui os dois primeiros atos da ópera), a croata Marigona Qerkezi mostrou-se muito mais preparada para interpretar Abigaille que a sua colega do elenco de estreia. Dona de uma voz potente, que ela sabe controlar por meio de um domínio técnico bem ajustado, Qerkezi explorou com cuidado e inteligência dramática a sua grande cena do segundo ato, que inclui a ária Anch’io dischiuso un giorno e a cabaletta acompanhada pelo coro Salgo già del trono aurato. Se fiquei com a impressão de que ela poderia ter rendido ainda mais (talvez em virtude daquela tal enfermidade que teria atingido parte do elenco), naquele momento já estava bastante evidente para mim que tinha valido a pena encarar aquela encenação novamente, mesmo com todos os seus defeitos.
A volta do intervalo revelaria, enfim, todo o potencial da soprano. No dueto com o barítono (Donna, chi sei?), que devido a cortes inexplicáveis abria o terceiro ato da ópera na montagem apresentada no TMSP, Qerkezi ofereceu uma atuação eletrizante, com total domínio de palco e vocalidade exuberante. Sua voz densa, mas ao mesmo tempo maleável – que resulta em uma mistura luminosa de “peso” e agilidade – revelava todas as cores e todas as nuances desta terrível personagem que é Abigaille. Uma excelente performance vocal e uma atuação cênica corretíssima, de acordo com o que lhe foi demandado pela encenação. A soprano croata estava ali para nos lembrar de um dos principais motivos pelos quais gostamos tanto assim de ópera: a sensação causada no ouvinte quando a grande música encontra um(a) grande intérprete.
Do restante do elenco que cantou na sexta-feira, merece destaque também a ótima Fenena da mezzosoprano Juliana Taino, sempre segura, musical, expressiva. O baixo Matheus França interpretou uma razoável Zaccaria, de boa presença cênica, mas à sua voz, que oscila entre momentos mais e menos satisfatórios, falta consistência técnica. O tenor Marcello Vannucci, que teria sido o artista mais afetado pelo tal resfriado ou virose, apresentou-se vocalmente irreconhecível como Ismaele. E o barítono norte-americano Brian Major de bom tinha apenas o timbre, pois, de resto, foi um Nabucco de evidentes limitações técnicas, além de uma presença cênica ora insossa, ora exagerada.
Mantenho as observações da resenha original a respeito da encenação (de Christiane Jatahy), da OSM, do Coro Lírico e do regente (Roberto Minczuk).
Saí do Municipal com uma pergunta na cabeça: por que Marigona Querkezi não cantou no elenco de estreia? Essa e outras perguntas semelhantes foram feitas ao longo de 2024 pelo público instruído que frequenta a casa. Eu não vi, mas conheço quem jure que o barítono Bongani J Kubheka, que interpretou Escamillo em Carmen, também deveria ter integrado o elenco de estreia da produção apresentada em maio.
Já passou da hora de o Theatro Municipal de São Paulo parar de errar nas escalações de elenco. Já está se tornando constrangedor para a casa sempre divulgar a sua programação com elenco “a definir”: tal prática dá a entender que os cantores, tão importantes para a ópera, são apenas “um detalhe” para o TMSP.
Fotos: redes sociais de Marigona Qerkezi.
Nota do editor: o TMSP disponibilizou fotos oficiais apenas do elenco de estreia da montagem. Por e-mail, a assessoria de imprensa da casa informou não possuir imagens dos solistas do outro elenco da produção.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.