Enquanto Gabriella Pace interpretava uma excelente Mimì, Giovanni Tristacci ofereceu uma grande récita substituindo tenor estrangeiro em cima da hora.
La Bohème (A Boêmia), 1896
Ópera em quatro atos, apresentada em forma de concerto
Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Luigi Illica (1857-1919) e Giuseppe Giacosa (1847-1906)
Base do libreto: Scènes de la Vie de Bohème (1851), romance de Henri Murger
Theatro Municipal de São Paulo
20 de dezembro de 2024
Direção musical: Roberto Minczuk
Elenco:
Mimì: Gabriella Pace, soprano
Rodolfo: Giovanni Tristacci, tenor
Musetta: Raquel Paulin, soprano
Marcello: Michel de Souza, barítono
Schaunard: Johnny França, barítono
Colline: Andrey Mira, baixo
Benoit / Alcindoro: Sandro Christopher, barítono
Parpignol: Paulo Queiroz, tenor
Guarda aduaneiro: Sérgio Righini, baixo
Coro Lírico Municipal (Érica Hindrikson)
Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música (Regina Kinjo)
Orquestra Sinfônica Municipal
Raramente as temporadas de óperas pelo país avançam tanto no calendário quanto neste ano em São Paulo: o Theatro São Pedro já havia apresentado há poucos dias uma montagem completa de Le Comte Ory, de Rossini. E agora, pertinho do Natal e encerrando de vez o ano lírico, o Theatro Municipal apresenta duas récitas em forma de concerto da ópera La Bohème, de Giacomo Puccini (a segunda é neste domingo, 22/12).
La Bohème dispensa maiores apresentações – sua trama é bem conhecida, e sua música maravilhosa, banhada no mais puro páthos pucciniano, é daquelas que chega ao fim da apresentação rasgando corações. Quarta ópera do compositor (sucedeu a Le Villi, Edgar e Manon Lescaut), alcançou enorme popularidade, tornando-se uma das mais representadas em todos os tempos.
No TMSP, a noite de sexta-feira, 20 de dezembro, começou com a confirmação de uma informação preocupante, que já corria o meio lírico brasileiro algumas horas antes: o tenor norte-americano Matthew White, que deveria interpretar a parte de Rodolfo, havia ficado indisposto por motivo de saúde, e seria substituído pelo colega brasileiro Giovanni Tristacci, que na tarde do mesmo dia havia se apresentado com a OSESP. Tristacci até então nunca havia interpretado o poeta Rodolfo (exceto por alguns trechos da ópera em concertos e recitais), e teve que aprender o papel em pouquíssimas horas, sem ensaio com a orquestra.
Pois bem! Considerando a apresentação anterior com a OSESP, o fato de que deve ter cantado toda (ou quase toda) a parte durante as poucas horas que teve para se preparar, e a apresentação oficial ao público, Giovanni Tristacci enfrentou um verdadeiro e hercúleo tour de force nesta sexta-feira. Tudo era muito arriscado, e o tenor, claro, cantou com a partitura. Mesmo assim, mesmo tendo que ler a música por segurança, a sua performance foi uma aula de profissionalismo, uma demonstração inquestionável das suas qualidades vocais e artísticas.
Tristacci cantou a plena voz, sempre com brilho e expressão, excelente afinação e projeção generosa. A grande ária de Rodolfo, Che gelida manina, soou maravilhosamente bem, assim como o dueto que encerra o primeiro ato, O soave fanciulla. No restante da ópera, as suas contribuições foram essenciais para o sucesso da récita, como nos duetos com a soprano no terceiro ato (Dunque è proprio finita?) e com Marcello no ato final (Oh, Mimì tu più non torni), além das cenas derradeiras. E tudo isso sem descuidar daquela mínima interpretação cênica que os bons cantores sempre oferecem mesmo em apresentações em forma de concerto. Foi uma noite heroica do tenor, que combateu o bom combate com talento, competência e dedicação à sua arte.
Não esteve atrás a Mimì da soprano Gabriella Pace. A artista não desperdiçou a oportunidade de exibir as suas grandes qualidades, como os agudos perfeitos, o fraseado refinado e uma interpretação sempre rica, com sentido dramático muito bem definido. Suas duas árias, Sì, mi chiamano Mimì e D’onde lieta uscì, foram muito bem cantadas: a primeira, expressando a simplicidade da bordadeira que se apaixona à primeira vista; a segunda, mesclando belamente os sentimentos que tomam conta da personagem naquele momento, como o amor sincero por Rodolfo e a dor da separação próxima. Nas cenas derradeiras, a Pace deu uma aula de expressividade, demonstrando o seu entendimento imaculado da ópera italiana, ao exprimir uma combinação perfeita entre a ternura da personagem e o sofrimento causado pela sua doença terminal.
O pintor Marcello foi bem defendido pelo barítono Michel de Souza, que apresentou uma voz sempre segura e bem afinada. O artista ofereceu boa contribuição nas suas passagens principais: no segundo ato, após a entrada de Musetta; no terceiro ato, nas cenas com Mimì e depois com Rodolfo; e no já citado dueto com o tenor no último ato. Já a soprano Raquel Paulin foi uma Musetta também bem afinada e de boa presença, mas cuja voz careceu de maior volume. Essa ausência de um volume generoso pode não prejudicar a performance em um teatro como o São Pedro, na Barra Funda, mas faz diferença no TMSP, ainda mais com uma personagem importante. Assim, a chamada “Valsa de Musetta” (Quando men vo) soou bem, mas com brilho aquém do ideal.
O barítono Johnny França foi mais um artista que ofereceu uma ótima presença como o músico Schaunard. Sua voz, sempre bem projetada, precisa de atenção à afinação, especialmente nos agudos. O filósofo Colline do baixo Andrey Mira foi razoável, ora correto, ora oscilando na afinação, como na interpretação da sua ária, Vecchia Zimarra, senti.
Como foi bom ver e ouvir o barítono Sandro Christopher cantando bem! Em participação especial como os personagens Benoit (o senhorio dos boêmios) e Alcindoro (amante de Musetta), o artista pôde exibir, sobretudo, as suas qualidades interpretativas. Paulo Queiroz e Sérgio Righini cumpriram bem as pequenas partes de Parpignol e do guarda aduaneiro. O Coro Lírico Municipal, preparado por Érica Hindrikson, e o Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música, preparado por Regina Kinjo, apresentaram-se bem.
Em uma noite na qual o onipresente regente Roberto Minczuk não esteve em seus piores dias, a Orquestra Sinfônica Municipal apresentou um bom trabalho, especialmente em termos de sonoridade. O regente, inclusive, contrariando o seu estilo habitual, cuidou bem para que o conjunto não encobrisse os cantores, segurando o volume em alguns momentos. Por outro lado, alguns andamentos empregados soaram estranhos, ora lentos demais, ora acelerados.
E, por fim, o fato de a ópera ter sido apresentada em forma de concerto permitiu a observação de um fato curioso: houve algumas passagens em que se pôde perceber a orquestra acompanhando mais os cantores que o regente, quando gestos de Minczuk simplesmente não eram seguidos pelos músicos imediatamente, para evitar desencontros com os solistas. Isso ficou bem evidente em uma fermata durante a primeira ária de Mimì, por exemplo.
Na conta final, La Bohème foi um bom fecho para o ano lírico do Theatro Municipal de São Paulo, e, dentre aquelas que eu pude presenciar, foi a segunda melhor performance musical de ópera na casa durante a temporada (somando solistas e orquestra), ficando atrás apenas de O Castelo de Barba-Azul.
Foto principal: Larissa Paz.
Nota do editor: até o momento da publicação desta resenha, o TMSP não disponibilizou fotos do concerto. Tão logo as fotos sejam disponibilizadas, a publicação será atualizada.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
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