No Cultura Artística, um “Messiah” autêntico e refinado

No último domingo, 27 de outubro, a sofisticada temporada de concertos internacionais da Cultura Artística trouxe ao público de São Paulo um espetáculo daqueles que só são vistos nas melhores e mais importantes salas de concerto do mundo. Sob a regência de Hans-Christoph Rademann, a orquestra Internationale Bachakademie Stuttgart, o coro Gaechin Kantorey e um ótimo quarteto de solistas apresentaram o Messiah (O Messias), de Georg Friedrich Händel (1685-1759), na versão mais próxima possível daquela a que o público de Dublin assistiu quando a obra estreou em 13 abril de 1742.

Após trinta anos compondo mais de quarenta óperas italianas em Londres, a partir de 1738 as circunstâncias levaram Händel a se dedicar ao oratório. Afinal de contas, os oratórios não eram encenados, o que os tornava mais baratos e fáceis de produzir do que as óperas, e podiam ser interpretados por cantores locais, o que dispensava a necessidade de importar divas e divos caros e temperamentais.

Em 1741, o compositor foi convidado a fazer duas séries de concertos beneficentes em Dublin entre o final do mesmo ano e o início do ano seguinte. Nesses concertos, esgotados e disputados, além de obras que já haviam estreado em Londres, Händel apresentou um oratório inédito: o Messiah.

A obra estreou na recém-inaugurada Great Music Hall, mesmo local em que Händel havia apresentado os outros concertos. Em seu excelente livro First Nights: Five Musical Premiers, Thomas Forrest Kelly mostra a única imagem existente do interior da sala, lamentavelmente posterior a uma restauração substancial ocorrida em 1791. Pela imagem e por documentos da época, contudo, sabe-se que era uma sala com dois andares e com capacidade para 600 pessoas – apertando bem, como foi feito nas récitas do Messiah, era possível acomodar 700 pessoas. A sala, portanto, era apenas um pouco menor que a bela sala de concertos do Teatro Cultura Artística.

Händel compôs o Messiah em Londres, em 1741 – antes, pois, de conhecer os solistas de Dublin. Desse modo, durante o processo de ensaio, ele foi obrigado a fazer algumas modificações em função dos cantores de que dispunha, boa parte experientes coralistas, não solistas. É provável que parte do público de São Paulo tenha sentido falta da linda ária But who may abide, quando ouviu as suas palavras cantadas pelo baixo em um recitativo. Também Thou art gone up on high e Thou shalt break them foram convertidos em recitativos em Dublin – pelo menos é assim que aparecem em uma cópia do programa que foi preservada. Em São Paulo, porém, Thou art gone up on high continuou como uma ária do baixo. Como nas apresentações futuras, em Londres, Händel nunca mais tornou a substituir essas árias por recitativos, supõe-se que as limitações dos cantores irlandeses o tenham levado a tomar essa decisão.

Em São Paulo contamos com um quarteto de solistas, como normalmente acontece em todas as apresentações modernas, mais o contratenor Tobias Knaus, integrante do coro no naipe dos contraltos, que participou do dueto de contraltos, How beautiful are the feet. Na estreia, em Dublin, havia dois solistas para as partes de baixo e três para as de contralto – dois contratenores, como era comum na época, e Susana Maria Cibber, uma famosa atriz, cujo poder de expressão, segundo testemunhas, prevalecia sobre o canto, para quem Händel transpôs duas canções (He shall feed his flock e If God be for us). O libreto de Charles Jennens para o Messiah não conta uma história, não está organizado de modo que cada solista tenha um papel ou personagem definido. A obra, construída a partir de textos bíblicos extraídos da King James Bible e do Book of Commom Prayer – portanto, textos com os quais o público protestante da cidade estava familiarizado –, propõe, antes de tudo, uma contemplação da história da salvação. Não há um narrador, não há personagens.

Na frente do palco: Veronica Cangemi, Marie Henriette Reinhold, Hans-Christoph Rademann, Benedikt Kristjánsson e Tobias Berndt (foto: a autora)

Tivesse Händel solistas do nível dos que se apresentaram em São Paulo, o público de Dublin (e, consequentemente, quase três séculos mais tarde, o de São Paulo) teria se deleitado com todas as árias. Mesmo a soprano Veronica Cangemi, que demonstrou alguma dificuldade com as notas agudas, teve, de modo geral, um bom desempenho. A mezzosoprano Marie Henriette Reinhold, que cantou, segundo a nomenclatura utilizada na época, a parte do contralto, permite que um pouco de ar escape junto com a sua voz, mas a uniformidade do seu timbre, a precisão do seu canto e da sua dicção, e a expressividade com que enuncia os recitativos prevaleceram e garantiram uma excelente apresentação.

O tenor Benedikt Kristjánsson e o barítono Tobias Berndt foram, dentre os solistas, as grandes estrelas do concerto. Logo em seu primeiro recitativo acompanhado, Kristjánsson já exibiu não só o seu belo e claro timbre, mas um legato perfeito e uma dinâmica rica, bem trabalhada, da qual merece destaque a messa di voce no “com” de Comfort ye my people – ou seja, ele atacou a nota em pianíssimo, foi crescendo e depois decrescendo até retornar ao pianíssimo. É uma pena que, provavelmente por culpa do Mr. James Bailey, o tenor da estreia, a parte do tenor tenha sido reduzida. Berndt, cuja parte é consideravelmente maior, destacou-se pelo seu timbre imponente e pelo seu canto incisivo e preciso.

O coro da estreia – sempre segundo Kelly – era constituído por coralistas das duas igrejas (protestantes) da cidade, as catedrais de Saint Patrick e da Igreja de Cristo. A primeira tinha, em 1742, um coro com treze homens e oito meninos, enquanto o coro da segunda contava com doze homens e também oito meninos. As duas catedrais dividiam o mesmo regente do coro, e alguns cantores participavam dos dois coros. Estima-se que o coro combinado devia ter por volta de dezesseis homens para os naipes de contralto, tenor e baixo, e oito meninos. Evidentemente, não sabemos se todos participaram da estreia do Messiah e não podemos nos esquecer de que alguns deles também atuaram como solistas.

O Gaechin Kantorey se apresentou, em São Paulo, com vinte membros – cinco por naipe. Um coro coeso, expressivo, com cantores timbrando perfeitamente. Um coro com uma qualidade que chamou a atenção do público – na saída, era comum ouvir pessoas comentando a respeito do coro.

Segundo Kelly, para alguns pesquisadores a orquestra usada por Händel em Dublin contava apenas com cordas, trompetes e o tímpano – além, claro, do cravo, provavelmente tocado pelo próprio compositor, e do órgão portátil, instrumentos responsáveis pelo baixo-contínuo. Outros, contudo, acreditam que na orquestra também havia oboés, fagotes e talvez até trompas. Kelly explica que era usual que as partes dos instrumentos de sopro (ausentes na partitura) fossem obtidas a partir das partes das cordas. Aos fagotes caberia o baixo-contínuo. No caso dos oboés, contudo, não era tão simples: havia várias possibilidades, e a mais comum era que, na maior parte do tempo, dobrassem as sopranos do coro. Esses instrumentos não tocam na pifa – a sinfonia pastoral.

Hans-Christoph Rademann (foto: Cauê Diniz)

Nas apresentações em São Paulo, a Internationale Bachakademie Stuttgart contou com as cordas – oito violinos, três violas, dois violoncelos, um contrabaixo – além de um fagote, dois oboés, dois trompetes, um tímpano e o órgão portátil. Todos, claro, instrumentos de época. Não havia cravo. Sob a regência de Hans-Christoph Rademann, atual diretor artístico do grupo, a orquestra apresentou aquele som transparente e brilhante, característico das melhores orquestras barrocas.

Essa interpretação quase camerística do Messiah, que uniu instrumentistas do mais alto nível com o melhor do canto barroco, mostrou que a grandeza da obra está em suas qualidades musicais, na composição límpida de Händel. Foi um concerto memorável, um concerto construído a partir de um conceito histórico para fazer história.

Essa versão de Dublin que nos foi apresentada é a “melhor” versão, a versão definitiva do Messiah? Qual era a versão definitiva da obra? Sabemos que Händel desfez, nas apresentações de Londres, algumas alterações que havia feito em Dublin. Sabemos, ainda, que a cada apresentação ele fazia adaptações para que a obra se adequasse melhor aos cantores. Desse modo, a resposta óbvia é a de que não há uma versão definitiva do Messiah, mas várias possíveis, e são as circunstâncias que devem guiar a escolha.

“Händel costumava compor sua música com os solistas específicos em mente; ele não se incomodava em rearranjar, transpor, ou até tornar a compor árias solos para que se adequassem à extensão vocal e às habilidades técnicas de determinados intérpretes”, explica Kelly. “As muitas versões alternativas do ‘Messiah’ feitas posteriormente e de muitas outras obras de Händel deixam clara essa flexibilidade. Händel era um homem do teatro: ele queria que sua música fosse eficaz e que que seus cantores brilhassem”.

Com um concerto da categoria desse Messiah e com uma temporada que já teve atrações como dois recitais do barítono Matthias Goerne e ainda receberá nomes como o do violinista Joshua Bell, passados apenas pouco mais de dois meses da sua tão aguardada reinauguração, o Teatro Cultura Artística vai se firmando como uma das principais salas de concerto não só do Brasil, mas da América Latina. Não bastasse a temporada internacional, a sala tem aberto as suas portas para parceiros e artistas locais. Recentemente, abrigou o ótimo festival do São Paulo Chamber Soloists e passou a receber parte da temporada de concertos beneficentes da TUCCA, para o tratamento de crianças com câncer. Isso tudo sem nunca deixar de investir em jovens talentos e de incentivar a sua formação artística.


Foto principal: Cauê Diniz.

5 comentários

  1. Adoentada não pude assistir a obra de Handel .
    Meus aplausos para Fabiana Crepaldi. Jovem estudiosa da arte operística.
    Parabéns Fabiana

  2. Concisa e boa avaliação, como sempre. Elucidou diversas dúvidas com que fiquei na apresentação de segunda feira ( 28/10). Por exemplo, não sabia da constante apresentação de contra-tenores nos oratórios de Händel. É uma dúvida que persiste sempre que ouço peças barrocas: a voz de contratenor é sempre cantada em falsete. Vozes como a do sopranista Bruno de Sá são muito raras.
    Mas isso é apenas um ponto, a avaliação vai muito além. Para quem ouviu ou não este lindo oratório, que a história consagrou como o melhor do compositor anglo-alemão ( acho que é o inverso).

  3. Parabéns Fabiana Crepaldi por tua excelente crítica sobre este maravilhoso oratório chamado O Messias de Haendel. Poderia nos informar onde poderíamos assistir a sua gravação?

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