Octavian, um tenor?

Não estava nos meus planos voltar a escrever sobre Der Rosenkavalier em tão pouco tempo: vi-a em julho, no festival de ópera de Munique, uma produção que está entre as mais marcantes da minha vida operística, e escrevi um longo e detalhado texto sobre ela. Desse modo, uma análise da nova produção que esteve em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo entre 5 e 13 de agosto não cabe nem no meu espírito e nem na paciência dos leitores. Além disso, Leonardo Marques já o fez. No entanto, confesso: eu não resisto a um Der Rosenkavalier. A experiência de assistir à primeira (05/08) e à última (13/08) récitas da ópera entre amigos, conversar, ler opiniões e o fato de haver uma cantora brasileira verdadeiramente preparada para enfrentar o enorme desafio proposto por Richard Strauss foram fatores que fizeram despertar em mim o desejo de abordar um ponto específico: o Octavian da excelente mezzosoprano brasileira Luisa Francesconi e o travestimento em Der Rosenkavalier.

“Devia ser um tenor”, disparou, no dia da estreia, uma amiga, após ter visto o “cavaleiro” Octavian entregando a rosa à donzela. Certamente, ela ficou imaginando um heldentenor, um Lohengrin. Talvez até um Tristão.

E ela não foi, ao longo da história, a única a se incomodar com a feminilidade de Octavian, um personagem en travesti. Em se tratando de óperas de Strauss, William Mann é um dos mais importantes autores. Sobre a escolha de uma intérprete feminina para Octavian, ele escreve:

“The musical results are marvelous throughout every scene of the opera; but it seems distasteful that Hofmannsthal should have cast so sexually virile a figure as a female role, particularly in the opening scene which demands overt demonstrations of the most passionate love – it is seldom that the two actresses involved manage to avoid suggesting a repellent sort of Lesbianism as they hug and caress one another, crooning torrid endearments”.

O livro de Mann data de 1964, de modo que não nos causa espanto: era a mentalidade da época. Nesse caso, fica saboroso lembrar que que a ópera desses dois vanguardistas, Strauss e Hofmannsthal, é de 1911(!), mas o resultado musical apontado por Mann é de fundamental importância. Comecemos por ele.

Richard Strauss amava a voz de soprano. Em Der Rosenkavalier, do quarteto principal, três são sopranos: Sophie, Marie Thérèse (a Feldmarschallin) e Octavian. A soprano escolhida por Strauss para interpretar Octavian na estreia foi Eva von der Osten – para termos uma ideia do peso de seu timbre, William Mann informa que, três anos mais tarde, ela fez, no Covent Garden, Ariadne na ópera de Strauss, Isolde, Kundry e Siegnlind nas de Wagner. Lotte Lehmann, grande intérprete de Strauss, começou como Sophie, passou por Marie Thérèse e terminou como Octavian. Hoje em dia, Octavian é geralmente interpretado por mezzosoprano, como é o caso de Luisa Francesconi.

Carla Filipcic (Marie Thérèse) e Luisa Francesconi (Octavian)

A combinação das vozes femininas, como bem observou Mann, cria um resultado musical maravilhoso. No Theatro Municipal de São Paulo, isso aconteceu, sobretudo, no primeiro ato, onde o Octavian de Francesconi contracenou com a Marie Thérèse da competente Carla Filipcic. Embora a boa soprano argentina não tenha mais o brilho e a leveza da voz que demonstrou em 2018, quando encantou o público paulistano – e eu me incluo! –, nela persistiram o domínio do canto e o bom conhecimento do idioma alemão, bem como o envolvimento total com o papel. Sua interpretação é profunda e tocante. Por isso, o primeiro ato foi, sem dúvida, o melhor, o mais consistente, o mais refinado dos três.

Os principais momentos, no entanto, em que esse resultado musical maravilhoso deveria saltar aos ouvidos são a entrega da rosa, no segundo ato, e o trio, no final do terceiro. Sem esses resultados maravilhosos, perde-se um pedaço importante da resposta à pergunta de por que um (mezzo) soprano como Octavian. No TMSP, a tão esperada magia musical da combinação das vozes femininas, infelizmente, não ocorreu. Se tivesse ocorrido, minha amiga não teria, jamais, desejado um Octavian tenor. A Sophie de Lina Mendes teve um desempenho tão bom e gracioso cenicamente quanto problemático vocalmente. Ela fez o que pôde, mas essa jovenzinha straussiana demanda grande maturidade técnica. Ela fez o legato, mas não soube colocar a voz e emitiu um som estridente e impreciso. A culpa não foi dela, mas de quem a escalou.

Não só para essa magia musical, mas também para a fluência do espetáculo, é fundamental um bom desempenho da orquestra. E foi bastante bom, com rico colorido orquestral, o trabalho musical dirigido pelo maestro Roberto Minczuk, sobretudo no dia 13.

Quanto à personalidade de Octavian, há algo de romanesco na “tradição” inventada da entrega da rosa de prata, e Octavian pode até ser chamado de cavaleiro, mas não um cavaleiro no sentido de membro da cavalaria ou com conotação heroica. Ele é um cavaleiro tanto no sentido de cavalheiro (o derivado mais usado na linguagem corrente) como no sentido de nobre – na verdade, Octavian é Conde.

Octavian não foi resgatar Sophie, não foi como herói, como um Lohengrin. Ele é tão infantil quanto ela, foi entregar a rosa, como bom menino, porque assim determinou a Feldmarschallin. Não podia ser um tenor maduro. Ele foi como o representante de uma nobreza decadente.

Em sua interpretação, Francesconi não perdeu a fragilidade do adolescente, mesmo no momento da entrega da rosa. Quando estava com a espada na mão, diante de Ochs, não cedeu à tentação de assumir uma postura heroica, viril: continuou como o jovem frágil, indeciso.

Tampouco Sophie é a donzela romântica: ela é uma garota burguesa, em cuja cabeça já passa a possibilidade de desobedecer ao pai, por mais temerário e difícil que isso possa parecer. Ela vai amadurecendo ao longo da ópera, vai saindo do mundo de ilusão, no qual a nobreza era um reino de fantasia, e encarando a realidade – inclusive em relação a Octavian.

Octavian também não é um Tristão, embora haja clara referência à ópera de Wagner. Como em Tristan und Isolde, no primeiro ato Octavian lamenta a chegada do dia – “Não quero o dia!”, reclama o jovem enquanto a ópera de Wagner é explicitamente citada pela orquestra, pois aí todos terão a Marechala, e ele terá que encarar a realidade. O desejo do jovem é que se façam novamente as trevas, mas aqui o gosto pelas trevas vem de um jovem impulsivo, imaturo e com os hormônios à flor da pele – como fica claro na música de Strauss. É uma provocação explícita de Hofmannsthal. Em Munique, sob as brilhantes direções cênica, de Barrie Kosky, e musical, de Wladimir Jurowski, chamou-me a atenção o fato de que a ótima mezzosoprano Samantha Hankey deixou clara a brincadeira em sua interpretação.

Octavian é um jovem de 17 anos cuja personalidade vai se formando diante de nossos olhos, ao longo dos três atos da ópera, e não um homem feito. Ele é um chevalier como o personagem-título de Les Amours du Chevalier de Faublas, de Jean-Baptiste Louvet de Couvray, no qual o personagem foi inspirado: um jovem nobre, conquistador (um cavalheiro), libertino, que se instala em Paris, que possui uma beleza andrógina, se disfarça de mulher, é amante de uma Marquesa mais velha (que virou a Feldmarschallin) e se apaixona por uma jovem Sophie.

A escolha do Chevalier de Faublas como fonte de inspiração para Octavian não foi sem motivo. Reza a lenda que, após a estreia de Elektra, Strauss teria declarado que da próxima vez iria fazer uma comédia mozartiana. O personagem de Octavian é um evidente eco de Le Nozze di Figaro, de Mozart, um herdeiro direto de Cherubino (outro forte eco é a Feldmarschallin, que pode ser facilmente associada à condessa Rosina Almaviva – Dove sono i bei momenti / di dolcezza e di piacer?).

Tanto Cherubino quanto Octavian são garotos com os hormônios transbordando e que devem ser interpretados por uma mulher travestida; ambos estão descobrindo sua sexualidade, buscam mulheres mais velhas, casadas, mas acabam, no fim, com as suas jovens amadas; ambos se disfarçam e se fazem passar por mulheres: tanto no primeiro ato quanto no terceiro, Octavian se veste de camareira, criando o personagem Mariandel. Há, portanto, em Der Rosenkavalier e em Le Nozze, um duplo travestimento, e à intérprete feminina que se disfarça de homem cabe o desafio de representar um homem disfarçado de mulher.

Em Strauss, há, ainda, um elemento a mais: Mariandel é uma suposta camareira, uma humilde jovem do campo, enquanto Octavian é um nobre. Eles não falam, pois, o mesmo alemão, Mariandel fala um dialeto rústico, e isso não significa que a intérprete deva cantar um alemão errado qualquer. Ao contrário: ela precisa aprender essa outra língua, essa outra pronúncia.

Luisa Francesconi (Mariandel), Hernán Iturralde (Ochs) e Carla Filipcic (Marie Thérèse)

Desde a produção de 2018 de Der Rosenkavalier, no mesmo teatro, a excelente Mariandel de Francesconi chama a atenção e ganha destaque. Cantora séria, Francesconi estudou, buscou bom treinamento, aprendeu o dialeto utilizado por Mariandel e o executou com maestria. Na récita do dia 13, a última dessa temporada do Rosenkavalier, tive a sorte de ver a ópera com uma falante nativa de alemão. Na saída, ela estava admirada com a perfeição com que Francesconi fez o dialeto, algo que não é simples. Além do aspecto linguístico, a forma de cantar também é caricata, o que não significa desafinada ou de qualquer jeito, com a voz jogada em qualquer lugar. Para quem a ouve, isso até pode parecer fácil, mas é um perigo, requer grande controle, ainda mais em se tratando de uma partitura com tamanha complexidade. Francesconi fez muitíssimo bem, mantendo pleno controle de sua linha. Claro que pouco teriam servido a pronúncia e o canto perfeitos sem a brilhante desenvoltura cênica, engraçada e de bom gosto, com a qual, sob a direção cênica de Pablo Maritano, ela nos brindou.

Especialista em personagens en travesti em ópera, assunto que foi inclusive tema de sua dissertação de mestrado, Francesconi se preocupa em ter um comportamento masculino como Octavian, em andar como homem, sentar-se como homem. Também na cor de seu canto há um forte componente masculino. Como Mariandel, é uma mulher um pouco desengonçada, realmente como um adolescente travestido, mas sem cair em caricatura de mau gosto. Foram bastante boas as cenas entre a Mariandel de Francesconi e o Barão Ochs de Hernán Iturralde, que é ótimo como ator e como cantor – fosse ele um baixo e tivesse as notas graves existentes na partitura, estaria próximo de um Ochs ideal.

É rica a evolução do personagem Octavian. Começa despreocupado, ingênuo, duvidando das mudanças trazidas pelo tempo, jurando amor eterno, querendo ser o centro das atenções de Marie Thérèse. Escolhido como o nobre emissário da rosa de prata, apaixona-se à primeira vista por Sophie. No final, resolvido o problema do indesejado casamento, diante de Sophie e da Feldmarschallin, Octavian fica confuso, sério, aprende a calar, a esperar, a observar. Torna-se homem e, segundo a Feldmarschalling, um homem igual a todos os homens.

É de Octavian o título da ópera. É dele o primeiro tema que soa, nas trompas, logo no prelúdio, e esse tema dá início à agitação frenética de uma noite de amor que se espalha por toda a orquestra. Também é de Octavian a primeira linha de canto: “Wie du warst! Wie du bist!”. E Luisa Francesconi o faz apropriadamente, deixando as frases no ar, como quem está despertando. No final do primeiro ato, quando retorna ao quarto de Marie Thérèse, é com ar de vitória, como bom adolescente que gosta de se dar importância, que Francesconi canta “Confesse: você ficou com medo, minha doce amada, por minha causa!” (em tradução de Irineu Franco Perpetuo). Ainda no mesmo ato, após Marie Thérèse falar sobre o passar do tempo, Francesconi faz um belíssimo piano em traurig, quando Octavian pergunta à Feldmarschallin se ela queria deixá-lo triste. No segundo ato, quando começa toda a confusão envolvendo Ochs, o Octavian de Fracesconi fica olhando, meio assustado, tentando processar tudo o que estava acontecendo. No segundo e no terceiro atos, nos momentos em que Octavian está passando pelas experiências que o transformam, Francesconi faz um jovem introspectivo.

Em resumo, o que Francesconi apresentou na última récita, dia 13, foi um Octavian de grande qualidade vocal, do grave ao agudo, e dramática. A única coisa que faltou a seu Octavian foi o que ela entregou de sobra como Mariandel: um maior cuidado com a dicção do alemão.

Em entrevista à edição de julho de 2018 da revista Opera News, a grande soprano Anja Harteros afirmou que para ela Strauss é sempre um desafio, pois está repleto de pequenas armadilhas (o termo em inglês usado pela revista foi “small tricky”) que o público não nota, e o desafio é justamente fazer com que tudo pareça simples. Ela mesmo pondera que, como falante nativa de alemão, as coisas ficam mais fáceis – e na verdade, não só por isso, mas porque ela é uma soprano refinadíssima e com uma técnica perfeita. Desse modo, retomo uma das minhas motivações a escrever esse artigo: o Brasil tem, em Luisa Francesconi, uma mezzosoprano em plenas condições de encarar os desafios musicais propostos por Strauss e de interpretar o complexo personagem criado pela dupla Strauss-Hofmannsthal, e precisamos valorizar isso. Felizmente, neste mesmo semestre, teremos a oportunidade de vê-la, no Theatro São Pedro, interpretando o outro personagem en travesti de Richard Strauss: o Compositor, em Ariadne auf Naxos.

Quanto ao outro ponto, o fato de Octavian ser um personagem en travesti, se alguém ainda estiver desejando um tenor, só há um remédio: ouvir e ver Der Rosenkavalier mais e mais vezes!

Fotos: Stig de Lavor.

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