Luisa Francesconi completa 25 anos de carreira

Neste ano de 2023, duas das mais preciosas cantoras líricas brasileiras completam 25 anos de carreira: a mezzosoprano Luisa Francesconi e a soprano Gabriella Pace. Os leitores já sabem o entusiasmo com que acompanho o trabalho dessas duas excelentes cantoras. Não poderia, pois, deixar de celebrar esse marco das duas carreiras. Nesse primeiro artigo, falo um pouco sobre Luisa Francesconi, com quem tive o prazer de conversar por mais de uma hora. Em breve, dedicarei outro artigo a Gabriella Pace.

De vida agitada, Luisa consegue manejar o tempo para que caibam pesquisas, estudos, ensaios, óperas, viagens, aulas, projetos que lidera – isso, claro, além da vida familiar, casa, marido e gatos. E não é preciso conhecê-la muito profundamente para saber que é o tipo da pessoa que preza por fazer tudo bem feito, com responsabilidade e, como pude observar quando chegou para o nosso café, com pontualidade.

Minha ideia nunca foi fazer uma entrevista, mas sim propor uma conversa para conhecer melhor a pessoa e a cantora. Ainda bem, porque se meus planos fossem uma entrevista, eu os teria abandonado, tal era o gosto com que ela contava, espontaneamente, suas memórias, seus anos de adolescência, sua descoberta do canto, o início da sua carreira, as cidades por onde passou, seus papéis, os momentos em que foi chamada para cantar de um dia para o outro, as pessoas que passaram por sua vida, seus estudos…

Luisa iniciou sua vida musical na infância: aos cinco anos já começou a aprender piano com a avó. Na Colégio Marista de Brasília, onde estudava, ingressou no coral, e foi aí que começou a florescer como cantora, professora e regente de coral. Como fez questão de frisar, foi por causa desse coro que começou a estudar canto e que fez o seu primeiro solo.

Logo de cara ela me falou que era meio mandona. Ou sabe ter liderança? – perguntei. Ela riu, mas acho que não errei muito: contou que, no coral da escola, notando a dificuldade das contraltos, começo a fazer, por conta própria, ensaios de naipe. Seu talento e sua capacidade de ter esse tipo de iniciativa chamaram a atenção e, com apenas dezesseis anos, já foi convidada para reger o coro e cantar um solo. Séria desde a juventude, concluiu que para cantar um solo precisava estudar canto, e para reger o coral, era necessário ter aulas de regência.

Fez o curso técnico de canto e piano popular na Escola de Música de Brasília (EMB) e, quando se formou, foi logo contratada no Colégio Marista. A morte repentina do diretor do colégio a expôs, pela primeira vez na vida, à perda de uma pessoa próxima. Não bastasse o impacto dessa perda, coube a ela reger o coro e a pequena orquestra que se apresentaram no velório. Contou-me que só depois conseguiu chorar.

Na Universidade de Brasília (UnB), cursou psicologia, mas era conhecida como “aquela que canta” ou “aquela que rege”, pois, durante o curso, regia dois coros e cantava em quatro. É isso mesmo: ela fazia graduação, dava aula, regia dois coros e cantava em quatro!

Uma vez formada em psicologia, já muito envolvida com o canto, achou que era hora de cantar: a psicologia podia ficar para mais tarde – “se eu estudar”, completou, rindo. E, para seguir com a carreira, foi preciso partir de Brasília. Ela lembrou o quão difícil foi se separar desses coros, que ajudaram a moldar a sua carreira e a sua personalidade.

Seus primeiros papéis como cantora profissional, em 1998, foram Flora, em La Traviata, Kate Pinkerton, em Madame Butterfly, e A Mãe, em A Carta, de Elomar, todos quando ela ainda estava em Brasília. Logo voltou a Madame Butterfly, mas como Suzuki, e fez, ainda, o seu primeiro personagem en travesti (tema no qual viria a se especializar): Orfeu, em Orfeu e Eurídice, de Gluck.

Em 2002, estreou no Festival Amazonas de Ópera, em Manaus, cantando, pela primeira vez, em uma ópera alemã: Siegrune, uma das valquírias, em A Valquíria – um papel pequeno, mas um Wagner. No ano seguinte, em 2003, estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro como Maddalena, em Rigoletto, de Verdi. Retornou a Manaus em 2005, mas dessa vez com um importante papel, pelo qual ingressou no território do bel canto: Rosina, em O Barbeiro de Sevilha, de Rossini.

Luisa Francesconi no papel-título de La Cenerentola (A Cinderela), de Rossini, no Auditorium della Conciliazione, em Roma (2007)

Luisa passou alguns anos na Europa (sem nunca ter deixado de se apresentar no Brasil), durante os quais estudou em Roma e Milão (onde foi aluna da renomada soprano Rita Patanè), e cantou em diversas cidades, dentre elas Lisboa, onde trabalhou no ópera estúdio do teatro São Carlos. Consultando a vasta lista de todos os seus papéis, que me forneceu, notei que, sobretudo nos primeiros anos em que atuou na Europa, predominaram óperas de Mozart e Rossini, dois compositores que, segundo me disse, são muito bons para a sua voz e, sabemos, especialmente importantes para cantores na fase inicial da carreira. Sua estreia internacional, em 2005, no Teatro Argentina, em Roma, foi justamente com Mozart: As Bodas de Fígaro, em que interpretou Cherubino – outro papel en travesti.

Enquanto estava na Europa, estourou a crise de 2008, dificultando a vida dos estrangeiros que estavam por lá. A isso somaram-se questões pessoais, e, tendo que escolher, ainda jovem, entre estar perto dos palcos e dos professores europeus, ou da sua família, acabou ficando com a segunda opção: em 2013 se estabeleceu em São Paulo. 

No Theatro Municipal de São Paulo, estreou em 2007, como Isabella em L’Italiana in Algeri (A Italiana em Argel), de Rossini. No palco do Theatro São Pedro, já havia se apresentado, em 2001, sob a regência do maestro Roberto Duarte, com as Doze Canções Estrangeiras, de Alberto Nepomuceno – que ela disse ter muita vontade de fazer de novo –, mas só veio a integrar o elenco de uma ópera em 2012, quando deu vida a Charlotte, em um memorável Werther, de Massenet, com direção musical de Luiz Fernando Malheiro, e cênica de André Heller-Lopes. Uma estreia e tanto nesse teatro paulistano! Quando perguntei sobre papéis de que gostava, respondeu: “Eu gosto muito da Charlotte!”

Apaixonada pelo repertório francês, especialmente por Hector Berlioz, Luisa soube até escolher a sua canção favorita: Le spectre de la rose, a segunda do ciclo Les Nuits d’Été (As Noites de Verão), do compositor. Contou, feliz da vida, que aprendeu o papel de Didone, em Les Troyens (Os Troianos), em dez dias, chegou a Manaus com o papel de cor, e ainda teve “a sorte de pegar o [maestro] André dos Santos como preparador!”

Gregory Reinhart, Francesconi (Dulcineia) e Eduardo Amir em um inesquecível Dom Quixote, de Massenet (2016), coprodução do Theatro São Pedro e do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com direção musical de Luiz Fernando Malheiro, e encenação de Jorge Takla (Foto: Heloísa Bortz)

Neste mês de julho, no Municipal do Rio de Janeiro, Luisa será a protagonista na ópera Carmen, de Bizet: um papel que estreou, há pouco mais de uma década, no México. Contou que na primeira vez em que foi chamada para cantar o papel da cigana, na Espanha, não tinha nem 30 anos. Como era muito jovem, recusou, ainda mais que Teresa Berganza havia lhe dito: “eu esperei até os 40 anos para cantar Carmen”. Luisa não esperou os 40. Estudou todo o papel, estava com tudo pronto e decorado quando, em 2012, foi chamada para embarcar para o México no dia seguinte, para cantar a parte de Carmen no Teatro Julio Castillo, na capital do país. Era uma produção do diretor cênico argentino Marcelo Lombardero, com quem teve um ótimo entrosamento artístico – ou, como disse, um amor artístico à primeira vista. De sua primeira Carmen, as lembranças não podiam ser melhores: “a Cidade do México é uma cidade linda, muito mágica, as pessoas são maravilhosas, todo mundo me acolheu muito bem… Foi muito legal mesmo!”

A mesma montagem seguiu, em 2013, para o Palácio de Bellas Artes, também na Cidade do México, novamente com Luisa no papel-título. Em 2014, ela foi Carmen no Theatro Municipal de São Paulo, no do Rio de Janeiro e em Montevideo. Nove anos depois, com a voz mais encorpada, artisticamente ainda mais madura e, agora sim, com mais de 40 anos, sua Carmen vai renascer no Rio – e justamente no ano que marca, além dos seus 25 anos de carreira, os 20 da sua estreia no importante teatro carioca. Vale a pena conferir!

Luisa Francesconi (Carmen) e Dante Alcalá na ópera Carmen, de Bizet, no Palácio de Bellas Artes, Cidade do México, em 2013 (Foto: Ana Lourdes Herrera)

Voltando a Mozart, uma memória que me vem à mente é a da sua Papagena, em 2017, no Municipal de São Paulo, em A Flauta Mágica: foi a única vez na vida em que a Papagena foi quem mais me chamou a atenção em uma Flauta Mágica. A força dessa personagem, evidentemente, não pode vir só do canto – não há espaço para isso na obra –, é preciso haver uma interpretação cênica marcante. Atriz talentosa, Luisa tem atuações impactantes – para ela, a ópera não pode ser uma coisa engessada. Claro: no início da sua carreira, quando estava no Rio de Janeiro, fez curso de teatro – já sabemos que não estaria de acordo com a sua personalidade atuar sem ter estudado teatro, mas não é só isso:

A construção de personagens é uma das suas paixões. Para ela, esse processo começa no entendimento do contexto histórico e literário (quando uma obra literária deu origem ao libreto). Por exemplo, para construir os personagens de As Bodas de Fígaro e de O Barbeiro de Sevilha, além de Mozart e Rossini, deve-se ter em mente as obras de Beaumarchais e o contexto histórico que levou à Revolução Francesa. Como essa é uma característica que observo muito em cantores, penso que, além desse estudo, para conseguir construir bem um personagem também é preciso ter inteligência, sensibilidade e profundidade, saber extrair significado do texto e da música. Não são todos os cantores que têm essa capacidade, mas apenas os verdadeiros artistas. E Luisa Francesconi pertence a esse seleto grupo.

Carla Cottini, Rodrigo Esteves, Luisa Francesconi (Cherubino) e Homero Velho em As Bodas de Fígaro, de Mozart, no Theatro São Pedro (2014) – encenação de Livia Sabag com regência de Luiz Fernando Malheiro

Foi justamente a construção de personagens o tema do seu mestrado, na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ela contou que, quando estava decidindo qual seria o tema do seu projeto, o diretor cênico André Heller-Lopes a aconselhou a escolher um assunto pelo qual fosse apaixonada. Ela não teve dúvida: era apaixonada pela construção de personagens, mas esse tema era amplo demais. Escolheu, então, trabalhar os papéis en travesti, e por meio deles abordou, também, o gênero na ópera – de como o travestimento pode representar uma “quebra” que mostra que o gênero não é necessariamente binário. Da pesquisa, resultou uma interessante dissertação.

Luisa Francesconi (Neusa Sueli), Homero Velho e Fernando Portari em Navalha na Carne, de Leonardo Martinelli, no Theatro Municipal de São Paulo (2022). Foto: Stig de Lavor – Leia o texto de Leonardo Marques sobre a obra.

O ano passado foi artisticamente fértil para ela: somente em São Paulo teve quatro papéis, dois em cada um dos teatros da cidade. Dentre eles, uma estreia mundial – Neusa Sueli, em Navalha na Carne, de Leonardo Martinelli: um papel composto especialmente para ela e, segundo me contou, muito difícil! – e dois importantes papéis en travesti de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal: Octavian, em O Cavaleiro da Rosa, no Theatro Municipal, e o Compositor, em Ariadne em Naxos, no São Pedro. Por conta das suas excelentes atuações nesses papéis, nós a escolhemos, aqui em Notas Musicais, como a melhor cantora de 2022.

Especialmente nas duas óperas de Strauss, sua dedicação à construção dos personagens foi notória. Como o Compositor, seu desempenho foi marcante, mas não sem primeiro ter passado por um belo susto: pouco antes da estreia, testou positivo para Covid, o que causou o cancelamento das récitas da primeira semana.

Seu Octavian já havia estreado no Municipal em 2018. Ao que tudo indica, foi a primeira – e, por enquanto, a única – cantora brasileira a viver esse papel. Luisa me contou que fez uma pesquisa e não encontrou registro de que, antes dela, outra brasileira tenha cantado Octavian, seja aqui, seja no exterior. Em 2018, quando foi chamada para participar da ópera, foi até Viena para repassar a parte com o coach da Staatsoper de lá, pois as exigências do personagem vão além da sempre complexa escrita straussiana, de cantar em alemão e do travestimento. Durante a ópera, o personagem se disfarça de Mariandel, uma camponesa (ou seja, o travestimento dentro do travestimento), que utiliza um dialeto rural, bem diferente do alemão de Octavian.

Citei apenas alguns papéis que Luisa levou aos palcos, mas, ao todo, durante esses 25 anos ela deu vida a 58 personagens em quase 90 produções. Isso, claro, sem contar inúmeros concertos e três gravações, duas das quais participou com a Osesp: a Nona Sinfonia, de Beethoven, em 2005, com regência de Roberto Minczuk, e o Requiem Ebraico, de Erich Zeisl, em 2007, sob a regência de John Neschling. O outro CD, lançado em 2015, junto com Gabriella Pace e tendo Priscila Bomfim ao piano, foi dedicado à obra de João Guilherme Ripper: Ciclo Portinari e Outras Telas Sonoras. Quando perguntei sobre papéis que tem vontade de fazer, citou Donna Elvira, em Don Giovanni, de Mozart, e Adalgisa, em Norma, de Bellini.

Luisa Francesconi como Giovanna Seymour, na produção de André Heller-Lopes de Anna Bolena, de Donizetti, no Festival Amazonas de Ópera (Manaus), em 2023 (Foto: Márcio James)

Contou que muitas vezes foi convidada para participar de uma produção, em outras vezes fez audições, ou, ainda, foi chamada de última hora. Para ela, isso pouco importa: se for chamada de cara, ótimo, se não, faz audição. Também não pisca quando é contatada na véspera para substituir alguém: se estiver preparada, aceita e faz dar certo. Como aliadas tem uma boa formação, inteligência para saber construir um personagem, e conta sempre com a sua ótima memória.

Já estou me alongando, mas não posso deixar de mencionar o importante trabalho desempenhado por Luisa no campo da educação. Além de aulas particulares, presenciais e online, e das aulas teóricas – dentre as quais um curso de pedagogia vocal e o curso em que aborda a construção de personagens que já levou ao palco (que tive a oportunidade de assistir quando, durante o confinamento de 2020, foi oferecido pela Revista Concerto) –, ela também foi a idealizadora da Associação Brasileira de Professores de Canto, a PROCANTO.

Quando perguntei sobre a PROCANTO, Luisa me contou que muito se discutia sobre ética no ensino de canto no Brasil. Quando fez o curso de Somatic Voicework, o método da professora de canto americana Jeanie LoVetri, passou a participar de um grupo de discussão sobre pedagogia vocal, criado em função do curso. Foi a partir da experiência desse grupo que propôs a criação, aqui no Brasil, de um grupo de professores de canto para discutir ética e formação. Aos poucos surgiu um código de ética e, a partir daí, a Associação para aplicar esse código. Foi assim que nasceu a PROCANTO, que engloba todos os estilos de canto.

A profissão de professor de canto, explicou-me, não é regulamentada. Em outras palavras, qualquer pessoa pode dar aula de canto – o que, obviamente, pode colocar em risco a saúde vocal do aluno. Daí vem a importância do código de ética e da recomendação para que uma pessoa, antes de ensinar canto, leia esse código, que é baseado na National Association of Teachers of Singing. Como ela bem lembrou, ensinar canto exige uma gama de conhecimentos muito maior que apenas saber música e saber cantar, e entre os objetivos da PROCANTO está justamente fomentar essa formação, por meio de congressos e grupos de trabalhos, além de tentar fazer com que haja uma unificação no ensino de canto no Brasil. Nas palavras de uma professora de canto com quem conversei, a associação representa “uma virada de página na história da pedagogia vocal no Brasil”. Não é à toa o entusiasmo com que Luisa fala desse trabalho — e isso confirma o que escrevi lá no início: ela sabe ter liderança.

Luisa, rindo, me chamou de cética. Não nego, sou mesmo, mas não a ponto deixar de notar uma interessante coincidência, a presença de uma rosa que perpassa os seus papéis: as rosas que Suzuki colheu no jardim de Cio-Cio-San, a rosa que Carmen atirou, a rosa que Octavian entregou e o espectro da rosa que a donzela usou no baile, em sua canção favorita de Berlioz.

Luisa no Cavaleiro da Rosa (TMSP 2018, Foto: Stig de Lavor)


“(…) toute les nuits mon spectre rose
A ton chevet viendra danser.
Mais ne crains rein, (…)
Ce léger parfum est mon âme,
Et j’arrive du paradis.”

Uma rosa de prata para Luisa Francesconi!

2 comentários

  1. A voz e o trabalho da Luisa são fantásticos! Conheci essa profissional extraordinária quando foi ensaiadora em um coral no qual eu cantava, em Brasília, o Coro Sinfônico Comunitário da UnB. Ela estava apenas iniciando a carreira, mas já era visível que seu futuro, nas artes, seria brilhante. Parabéns, Luisa!

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