Obra inédita de André Mehmari, “O Machete” teve a sua estreia mundial em São Paulo, no Theatro São Pedro.
O Machete, 2023
Ópera em ato único, três quadros e epílogo
Música e libreto: André Mehmari (1977-)
Theatro São Pedro-SP
23 de junho de 2023
Direção musical: Maíra Ferreira
Direção cênica: Julianna Santos
Elenco:
Inácio: Wagner Platero, tenor
Carlota: Alessandra Wingter, soprano
Barbosa: Robert Willian, barítono
Mãe: Maria Thereza, mezzosoprano
Pai: Ádamo, baixo*
Amaral/Professor: Gustavo Lassen, baixo*
Preta: Juliana Taino, mezzosoprano*
Amigos: Isabelle Dumalakas, Débora Neves e David Medrado
Rafael Cesário, violoncelo
* Solistas convidados
Academia de Ópera do Theatro São Pedro
Orquestra Jovem do Theatro São Pedro
Com récitas entre quinta-feira e este domingo, passou em estreia mundial pelo Theatro São Pedro, em São Paulo, a ópera O Machete, de André Mehmari, na programação da Academia de Ópera da casa. Em ato único, mas dividida em três quadros e um epílogo, a obra adapta para o teatro lírico o conto homônimo de Machado de Assis.
Na trama original, Machado conta a história de Inácio Ramos, um músico de família simples, que mora em local afastado e vive de tocar a rabeca, mas que é apaixonado mesmo pelo violoncelo, instrumento que toca somente na intimidade da sua casa. Já tendo perdido o pai, quando a mãe morre Inácio se casa com Carlotinha, uma jovem faceira de 17 anos, dona de “olhos negros e travessos”. Embora ela tente demonstrar admiração pela música do marido, esta não lhe toca verdadeiramente a alma.
A vida segue, Carlotinha engravida, e dois amigos, Amaral e Barbosa, passam a frequentar a casa da família. Amaral ama a arte e admira as qualidades artísticas de Inácio; enquanto Barbosa toca machete, uma espécie de ancestral do cavaquinho: um instrumento mais voltado para a música popular, portanto. Carlotinha mostra-se verdadeiramente entusiasmada pela música de Barbosa. A história avança até que a esposa abandona Inácio para fugir com Barbosa, deixando o filho com o pai. Inácio, por fim, enlouquece.
Por trás dessa trama aparentemente simples, apresentada com a sua habitual e fina ironia, Machado de Assis nos revela aquele momento histórico, pouco mais de 20 anos antes da virada do século XIX para o XX e no qual a música popular começava a ganhar força e grande atratividade. Nas palavras de João Marcos Coelho no programa de sala, ao contrapor a “grande música clássica de concerto europeia e a florescente música popular no Brasil imperial”, Machado “define os termos de uma equação que até hoje permanece atualíssima, sobretudo nos países não europeus”.
Em sua adaptação para o palco lírico, André Mehmari, autor não apenas da música, mas também do libreto, buscou inspiração em artistas do passado, e utiliza trechos de obras de autores como Olavo Bilac e Gregório de Matos. O autor presta homenagem ainda a grandes compositores, como Bach, citado no começo da apresentação por meio de “tintas” barrocas e pela menção à sua Missa em Si menor. Beethoven aparece mais de uma vez em algumas transições rítmicas. O maxixe Corta-Jaca e a canção Lua Branca, de Chiquinha Gonzaga, também estão lá, assim como Ernesto Nazareth. E a ópera também é citada, com a breve menção à L’Incoronazione di Poppea, de Claudio Monteverdi, e, quase no fim de apresentação, a bela evocação da Habanera, da Carmen, de Bizet – certamente não por acaso confiada à mezzosoprano, e menos por acaso ainda em alusão ao pássaro (Carlotinha) que, livre e rebelde, voou para longe.
Encenação simples, mas bem realizada
Comandando uma equipe de criação totalmente formada por mulheres, a diretora Julianna Santos concebeu uma encenação, ao mesmo tempo, simples e correta, com boa realização geral. A diretora extraiu boas performances cênicas do elenco, alternando alguns momentos bem divertidos com outros mais dramáticos. O bom e funcional cenário de Giorgia Massetani ambienta bem a movimentação no palco, contando ainda com a boa iluminação de Kuka Batista. Já os figurinos de Juliana Bertolini são bastante adequados e remetem ao período do conto machadiano.
Na récita de 23 de junho, a Orquestra Jovem do Theatro São Pedro, depois de um comecinho um tanto inseguro, logo se ajeitou para oferecer uma boa performance sob a condução firme de Maíra Ferreira, que se mostrou uma regente atenta e inspirada. Assim como a regente, o conjunto se mostrou bastante versátil ao abordar a música eclética de Mehmari. O próprio compositor apresentou-se ao cravo.
Merece uma menção especialíssima a participação de Rafael Cesario como solista ao violoncelo – o instrumento “do coração” do protagonista: o músico interpretou as suas partes com grande expressividade e amplo domínio técnico. Não seria nenhum exagero afirmar que, em termos de interpretação, Cesario foi o grande nome da noite.
Os solistas, em geral, apresentaram desempenho irregular. O baixo Ádamo (assim mesmo, com nome único), que interpretou o Pai do protagonista e demonstrou possuir uma voz razoável, cantou somente no primeiro quadro da obra. Já o barítono Robert Willian (Barbosa), apesar da sua boa atuação cênica, exibiu uma performance vocal não mais que burocrática.
O mesmo se pode dizer do casal protagonista. O tenor Wagner Platero deu vida a Inácio com inteligência cênica, mas com uma voz sem maior brilho, enquanto a soprano Alessandra Wingter foi uma Carlota desenvolta, mas que enfrentou problemas de afinação em algumas passagens.
Dentre os alunos da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, a melhor performance vocal foi a da mezzosoprano Maria Thereza, que, como a Mãe de Inácio, exibiu um belíssimo timbre e uma voz bastante segura e homogênea: certamente um talento a se acompanhar. Completaram o elenco da Academia: Isabelle Dumalakas, Débora Neves e David Medrado.
Dois cantores profissionais atuaram como convidados. O baixo Gustavo Lassen cantou as partes do Professor alemão de violoncelo e do amigo Amaral, saindo-se melhor como este último. E a mezzosoprano Juliana Taino interpretou a personagem Preta, que só aparece quase no final da encenação, com as qualidades vocais que lhe são peculiares: belo timbre, voz impecável e ótima presença. Esteve sob a sua responsabilidade o trecho que evoca a ópera Carmen, de Bizet.
E assim foi a récita a que pude assistir de O Machete: uma bela e interessante obra contemporânea que dialoga com o passado; que alude a grandes mestres da música, da ópera, da literatura e do cancioneiro popular; que foi encenada com correção e que foi bem defendida musicalmente, mesmo considerando que algumas vozes ainda têm um longo caminho evolutivo a percorrer.
Fotos: Heloísa Bortz (as fotos disponibilizadas pelo Theatro São Pedro referem-se ao elenco que atuou no dia 22/06, quando os personagens Inácio, Carlota e Mãe foram interpretados, respectivamente, por Willian Manoel, Alessandra Carvalho e Marcela Bueno).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
[…] Pedro, com participação da Orquestra Jovem da casa, apresentou duas montagens ao longo do ano: O Machete, de André Mehmari, com base em Machado de Assis, em junho; e Os Conspiradores, de Franz Schubert, […]