Danielle Crepaldi Carvalho teve a oportunidade de assistir aos ensaios da ópera de Francisco Mignone, O Contractador dos Diamantes, a ser encenada no Theatro Municipal de São Paulo nos dias 28, 29 e 30 de junho e 02 de julho de 2024. Neste artigo, ela resume a experiência.
Numa ensolarada e fria manhã de princípio de junho, um burburinho tomava conta da sala de ensaios situada na Praça das Artes, pertencente ao complexo do Theatro Municipal de São Paulo – amplo e bem aparatado espaço que acabara de ser inaugurado, voltado aos ensaios dos corpos artísticos e das óperas exibidas no Theatro.
Solistas, membros do coro, maestro, pianista e equipes artística e técnica incumbidos da encenação da ópera em três atos O Contractador dos Diamantes, de Francisco Mignone – cerca de 150 pessoas – encontravam-se para o segundo dia de uma sequência de três semanas de ensaios da obra que estreará nesta sexta-feira no palco principal do Theatro Municipal. Este artigo procura comentar este percurso fascinante que vai dos ensaios à estreia de um espetáculo operístico.
Participei como observadora dos ensaios graças ao gentilíssimo convite do diretor cênico William Pereira, depois de conversarmos sobre um artigo acadêmico que estou escrevendo juntamente com um colega sobre esta ópera, trabalho relacionado ao projeto de pesquisa que desenvolvi recentemente na Fundação Biblioteca Nacional (PNAP-2021), a respeito da Exposição Internacional do Centenário, inaugurada no Rio de Janeiro em 07 de setembro de 1922.
Embora tenha estreado em 1924, no Municipal do Rio de Janeiro, e pouco tempo depois no de São Paulo, a obra de Mignone dialoga diretamente com a Exposição, no que diz respeito à construção de símbolos que marcassem o primeiro centenário do Brasil independente. O libreto, de autoria de Gerolamo Bottoni, é oriundo da peça teatral de Affonso Arinos, escrita no princípio do século XX, que fazia parte do intuito de se encontrar as raízes do Brasil.
O sertão deslindado por Arinos é a região de Diamantina em meados do século XVIII. O homem que ele deseja heroicizar é Felisberto Caldeira Brandt, transformado pela coroa portuguesa em contratador de diamantes, a quem cabia explorar aquelas terras e os seus habitantes – formados sobretudo por um rol de escravizados – em prol da fazenda real. O mito que a obra de Arinos ajuda a consolidar, e que a ópera de Mignone endossa, é bastante diferente do homem. O Caldeira Brandt histórico é preso pela coroa acusado de leniência no que dizia respeito ao contrabando de diamantes. Enquanto isso, a figura mítica criada por esses artistas é considerada uma espécie de inconfidente, homem desejoso de livrar o seu povo do jugo da coroa e de sonhar com um Brasil livre.
Escrevi um texto mais alentado a respeito da peça teatral de Arinos, em comparativa com a ópera, quando ocorreu a sua encenação em Manaus no ano passado (o leitor interessado o encontrará aqui) – um evento histórico, que só foi possível graças ao esforço de recuperação da partitura levado a cabo pela Academia Brasileira de Música.
Apresentei acima as linhas gerais da história porque esta vista d’olhos aos bastidores da encenação de O Contractador dos Diamantes procurará também comentar sobre a proposta de encenação de William Pereira.
As primeiras duas semanas de ensaios aconteceram na sala de ensaios situada na Praça das Artes. O espaço e os níveis da cena, bem como a localização dos itens cenográficos, são marcados no chão à fita. À direita do espaço, Anderson Brenner interpreta ao piano a redução da partitura – a orquestra começaria a ensaiar dias mais tarde, separadamente, e se encontraria com os demais integrantes do espetáculo apenas na última semana de ensaios, no palco do Theatro Municipal.
O espaço de uma semana e meia é voltado, sobretudo, ao ensaio dos conjuntos. Neste momento, Pereira apresenta com detalhamento aos atores-cantores o que objetiva com cada gesto, com cada cena. Quem os conduz é Ana Vanessa, que neste espetáculo atua como assistente de direção e diretora de palco, e parece ter com o encenador uma relação simbiótica, muitas vezes antecipando as suas intenções.
As duas mesas diante desse palco arranjado são ocupadas pela equipe artística da produção, a exemplo de Ligiana Costa, que nesta montagem desempenha variadas funções. Como orientadora dos bolsistas de dramaturgismo do TMSP, tem por objetivo conduzi-los (o trabalho do grupo pode ser apreciado aqui) pelos meandros das encenações das óperas da casa ao longo da temporada, dos ensaios às entrevistas com o elenco e a equipe criativa, e à criação de podcasts.
À essa função acrescenta-se, neste espetáculo, outra, pois a ela coube a tradução do libreto da ópera ao português – decisão que, segundo ela, apenas foi tomada depois de conversar com membros da academia voltados a pesquisas sobre o canto em português, a história da música e Francisco Mignone, que era nacionalista. O libreto, após a tradução, ganha organicidade, considerando-se que Bottoni já havia inserido em seu texto vários trechos neste idioma, a exemplo da canção Gavião de Penacho. Ligiana destacou igualmente que a tradução encontrou respaldo de Rosana Lamosa e Licio Bruno, ambos professores e partidários do canto em português, que na ópera desempenham os papéis de Cotinha, a sobrinha de Felisberto Caldeira Brandt – o contratador dos diamantes –, e do próprio contratador.
Esse tema é historicamente debatido e ainda segue candente. Vários esforços foram feitos voltados ao canto lírico em português ao longo do século XIX, época em que o idioma dessa sorte de obras era quase sempre o italiano – um desses esforços, que originou óperas como Artemis (libreto de Coelho Netto e música de Alberto Nepomuceno, de 1898), eu estudei em minha dissertação de mestrado. A questão será discutida no evento Ópera Presente | Futuro: O Cantar Brasileiro, que acontecerá no teatro neste sábado.
É importante que se levante esta discussão num momento em que a teoria se confronta com a prática. Os primeiros dias de ensaios também foram voltados à adaptação de certos versos, tendo-se em vista a embocadura específica do português, transformando-se aquele espaço num ambiente salutar de produção coletiva. Dois dos solistas participaram da montagem em Manaus no ano passado – Giovanni Tristacci (Camacho, apaixonado por Cotinha) e Douglas Hahn (o Magistrado responsável por denunciar o contratador) –, sentindo na pele a troca de idiomas. No que diz respeito ao seu trabalho, Hahn relatou-me que precisou encontrar uma articulação para cantar em português, procurando primar pela compreensibilidade do que diz o seu personagem.
Uma semana e meia após o início dos ensaios, todos os cantores citados acima, assim como os dançarinos incumbidos das sequências do minueto e da congada, e ainda o fotógrafo do Theatro se juntam naquele mesmo espaço para o primeiro ensaio da ópera in totum.
Neste momento, emerge com força a proposta cênica de William Pereira, cuja encenação busca olhar criticamente para as intenções patrióticas do libreto. Para isso, têm papel fundamental tanto as intervenções do personagem interpretado por Mar Oliveira – Mestre Vicente, figura aristocrática a quem também cabem, nesta montagem da ópera, dois prólogos que procuram situar historicamente a obra de Mignone e esta sua encenação 100 anos mais tarde – quanto os dançarinos responsáveis pelos dois números de dança da ópera.
As referidas passagens ficam a cargo da Ayodele Cia de Dança, uma companhia negra tradicional de São Paulo, e são coreografadas pelo pernambucano Angelo Madureira. Angelo afirmou-me que o seu objetivo com este trabalho é fazer um resgate histórico da ancestralidade do povo negro. Símbolos da ancestralidade negra, portanto, são apresentados em cena nos dois números, num esforço de reparação histórica – o primeiro desses números é um desconstruído minueto, e o segundo, a congada, manifestação cultural afro-brasileira que recria, por meio de canto e dança, a coroação da realeza do Congo, e que na ópera é encenada diante do adro da igreja do Tijuco (hoje Diamantina), durante os festejos da Semana Santa. Por exemplo, a dançarina que bate repetidas vezes no chão, dando início à congada, remete a uma entidade importante do candomblé, enquanto vários outros movimentos dos bailarinos remetem a símbolos, sejam históricos, sejam recentes, como o símbolo de Zumbi dos Palmares e o de resistência.
Neste primeiro ensaio da totalidade do espetáculo, William Pereira conduzia o conjunto ao lado do regente da ópera, Alessandro Sangiorgi. Orquestrando o trabalho de todos, dividindo-se entre a partitura e o palco, estava Ana Vanessa, cujo trabalho na “orquestração” do conjunto é imprescindível. Piauiense, cursou na Universidade Federal do Rio de Janeiro Artes Cênicas voltadas à Direção de Palco. Com a invejável segurança conquistada por seus 15 anos de experiência, seja como assistente, seja como encenadora, ela encenará neste ano a sua primeira ópera com orquestra, La Serva Patrona, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, além de tomar parte do paulistano Ateliê de Óperas do Theatro São Pedro.
No final da segunda semana de ensaios, o espetáculo migra para o palco da sala de espetáculos do Theatro Municipal, para ajustes finais com acompanhamento agora da orquestra. É o momento, por exemplo, de se ajustarem as luzes, bem como detalhes da movimentação cênica. Poucos dias depois, na semana de estreia, nos últimos ensaios antes da “geral” e da primeira récita do Contractador dos Diamantes, o espetáculo já se revela em sua completude, dando mostras da engrenagem bem azeitada existente no Theatro Municipal, do âmbito técnico ao artístico.
Pesquisadora acadêmica e amante apaixonada de ópera que sou, sempre que trato do assunto me pego num entrelugar, dividida entre a análise racional e o encantamento. Aliás, talvez este seja o lugar mais cabível para se estar ao se analisar o percurso de produção de um espetáculo operístico, cujo trabalho árduo caminha par a par com a magia que emerge de forma insuspeitada, numa nota, num gesto, num jogo de luz. Minha eterna gratidão a William Pereira por me proporcionar este presente.
Fotos: a autora, com autorização de William Pereira (encenador do espetáculo).
Foto principal: ensaio do 3º ato da ópera, com o maestro Alessandro Sangiorgi (de costas) em primeiro plano.
Pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP; graduada, mestre e doutora em Letras pela UNICAMP. Tem artigos e livros publicados nos âmbitos da literatura, do cinema e do teatro, seus três campos de interesse, procurando refletir sobre a sua interrelação.