Na reestreia da bela produção de Pedro Salazar, Homero Velho tem a grande atuação da noite
Peter Grimes, 1945
Ópera em prólogo e três atos
Música: Benjamin Britten (1913-1976)
Libreto: Charles Montagu Slater (1902-1956) e outros intervenientes
Base do libreto: The Borough, coleção de poemas de George Crabbe (1754-1832)
Teatro Amazonas
19 de maio 2023
Direção musical: Luiz Fernando Malheiro
Direção cênica: Pedro Salazar
Elenco:
Peter Grimes: Fernando Portari, tenor
Ellen Orford: Daniella Carvalho, soprano
Balstrode: Homero Velho, barítono
Sra. (Nabob) Sedley: Carla Rizzi, mezzosoprano
Ned Keenes: Vinicius Atique, barítono
Bob Boles: Daniel Umbelino, tenor
Swallow: Sávio Sperandio, baixo
Auntie (a tia): Thalita Azevedo, contralto
Sobrinha 1: Maria Sole Gallevi, soprano
Sobrinha 2: Dhijana Nobre, soprano
Hobson: Emanuel Conde, baixo
Reverendo Horace Adams: Wilken Silveira, tenor
John: Rhuann Gabriel, ator
Dr. Crabbe: Robson Ney, ator
Coral do Amazonas
Amazonas Filarmônica
Peter Grimes, ópera em prólogo e três atos de Benjamin Britten, estreou no Festival Amazonas de Ópera no ano passado, mas somente agora, com a sua remontagem na 25ª edição do FAO, pude conferi-la presencialmente.
Britten decidiu compor a ópera depois de ler, em 1941, a coleção de poemas The Borough, de George Crabbe. Nele, o autor narra a vida em uma vila de pescadores e a trágica história de um dos seus habitantes. Tanto o compositor quanto o autor do poema, ambos ingleses, tinham raízes em lugares semelhantes à referida vila, e o mar sempre atraiu Britten, que o incluiu em mais duas óperas: Billy Budd (1951), estreada seis anos depois de Peter Grimes (1945), e Morte em Veneza, de 1973.
Grimes é uma obra-prima que aborda diversos temas da vida em sociedade, assim como as tenções que a relação entre a sociedade e o indivíduo podem causar. E, nessa pequena vila em que todos se conhecem, a fofoca, a mesquinharia, a intromissão na vida alheia, as pequenas e as grandes hipocrisias se fazem presentes.
A senhora que defende a moral é a mesma viciada em sedativos; o respeitado advogado que conduz o julgamento de Peter Grimes no prólogo é o mesmo que, no último ato, se diverte no bordel da localidade; o pregador metodista que denuncia os “pecados” dos habitantes é o mesmo que, quando bebe, tenta avançar sobre uma das “sobrinhas” do bordel, transbordando luxúria. A propósito, é exatamente no bordel em que toda a vila encontra abrigo (inclusive as senhoras “direitas”) quando irrompe uma terrível tempestade na segunda parte do primeiro ato.
No caso específico do personagem-título, mesmo absolvido por falta de provas no referido julgamento, ele passa toda a ópera “condenado” pela desconfiança generalizada da população em relação à sua maneira de “cuidar” dos seus jovens aprendizes. Peter Grimes sonha em ganhar muito dinheiro com o seu trabalho, pois somente assim, acredita, aquela sociedade passaria a respeitá-lo. Ele, porém, demonstra não ter forças para superar os seus traumas e desejos reprimidos, e chega ao fim da ópera aparentando ter atingido condições mentais duvidosas.
Embora o libreto de Montagu Slater (que contou com a colaboração de outros intervenientes, inclusive do próprio Britten) apenas insinue isso nas entrelinhas, é evidente que uma das principais intenções do compositor era abordar o tema da homossexualidade – e, especialmente, discutir as terríveis consequências psicológicas que um indivíduo pode sofrer diante do que hoje chamamos claramente de homofobia. Nunca é demais lembrar que, até 1967, manter relações homossexuais era considerado crime na Inglaterra.
Esses são apenas alguns poucos exemplos dos vários temas que essa obra tão rica apresenta. Na última sexta-feira, 19 de maio, o Teatro Amazonas voltou a receber a bela produção do diretor colombiano Pedro Salazar, que capricha na direção de atores e extrai ótimas performances cênicas de praticamente todo o elenco.
Em uma frutífera parceria com os intérpretes, o encenador constrói o personagem-título, os outros dois que procuram prestar-lhe apoio (Ellen e Balstrode) e o jovem aprendiz (John) de maneira mais dramática, enquanto aos demais é reservado um tom levemente caricato que reforça as hipocrisias e mesquinharias existentes nesse “mundinho” no qual todos estão inseridos.
Em sua concepção, Salazar buscou inspiração em ambientes pesqueiros da América Latina atual, com a presença de casas construídas sobre palafitas no belo e funcional cenário de Julián Hoyos. A luz inspirada de Fábio Retti valoriza ainda mais a ambientação e cria momentos de grande beleza poética, enquanto os figurinos de Olga Maslova vestem solistas e coro com simplicidade e eficiência.
A música de Britten é brilhante, e pontua emoções e situações, ora reforçando o que se vê em cena, ora sugerindo o que não é dito, ora “cantando” por si mesma, como ocorre nos célebres seis interlúdios da ópera – quatro dos quais foram reunidos em uma suíte (Op. 33a), intitulada Quatro Interlúdios Marinhos, que rapidamente passou a integrar o repertório internacional de concertos.
Na récita da reestreia, a Amazonas Filarmônica, apesar de algumas pequenas imprecisões aqui ou ali, geralmente em passagens solistas, ofereceu uma grande performance, conduzida pela mão de mestre de Luiz Fernando Malheiro. O regente seguiu o manual com excelência: cuidou do volume e da dinâmica, criou climas, valorizou os contrastes, extraiu expressividade dos seus músicos durante toda a récita e ofereceu todas as condições para que os cantores pudessem fazer muito bem o seu trabalho.
O Coral do Amazonas, preparado por Otávio Simões, exibiu boa sonoridade nesta obra em que a população da pequena vila tem função importante. Os atores Robson Ney (Dr. Crabbe) e, especialmente, Rhuann Gabriel (John, o jovem aprendiz de Grimes) cumpriram bem as suas partes. O nome do personagem do médico, aliás, parece uma pequena homenagem ao autor do poema que serviu de inspiração para a criação da ópera.
Dentre os solistas, três personagens receberam interpretações vocais vacilantes. Apesar da sua boa performance cênica, o tenor Fernando Portari cantou o pescador Peter Grimes com afinação imprecisa e exibindo um desgaste preocupante do seu instrumento. Na volta do intervalo, foi informado pelo sistema de som que o artista estaria enfrentando uma virose, mas a impressão por ele deixada foi a de que há ali um problema sério que merece grande atenção. Pela sua importante contribuição para o meio lírico brasileiro nas últimas décadas, Portari não deveria merecer se expor e ser exposto dessa forma.
Da mesma maneira, a soprano Daniella Carvalho cantou a parte da viúva e professora Ellen Orford com problemas na afinação e na qualidade geral da sua voz, que também se apresentou bastante desgastada. Não muito diferente foi a Auntie (“Tia”) da contralto Thalita Azevedo, que possui evidentes problemas técnicos.
Para a sorte do público – e para usar uma metáfora futebolística –, o restante do elenco matou no peito e levou a ópera com firmeza e competência até o final. As sopranos Dhijana Nobre e Maria Sole Gallevi interpretaram as “sobrinhas” com grande desenvoltura cênica e vocal. O baixo Emanuel Conde viveu o carreteiro Hobson com a mesma segurança que o tenor Wilken Silveira empregou ao reverendo Horace Adams.
O baixo Sávio Sperandio ofereceu ao advogado e prefeito Swallow uma bela interpretação vocal, enriquecida por uma dose controlada de ironia. Já o tenor Daniel Umbelino interpretou à perfeição o pescador e pregador metodista Bob Boles, com voz impecável e com expressões corporais e faciais que lembraram muito falsos pastores do tempo presente.
O barítono Vinícius Atique deu vida ao farmacêutico e charlatão Ned Keene com a voz bem ajustada e um certo cinismo que caiu como uma luva ao personagem. A viúva rentista – e fofoqueira de plantão – Sra. (Nabob) Sedley recebeu da mezzosoprano Carla Rizzi a melhor performance da sua carreira que pude conferir: vocalmente segura e cenicamente impecável.
E, se os dois protagonistas deixaram a bola quicando, o barítono Homero Velho chutou direto para o gol, de primeira, acertou o ângulo e roubou a cena. Com uma interpretação impecável e profunda de Balstrode, um capitão mercante aposentado que se apieda da situação de Grimes, o artista demonstrou toda a maturidade alcançada pela sua porção ator, com perfeito domínio do palco e presença cativante. E, além disso, o estilo da música de Britten “casa” muito bem com a vocalidade de Velho. Se, em muitas ocasiões anteriores, a performance vocal foi o ponto fraco do seu trabalho, aqui não foi o caso, pois a sua voz correu perfeitamente pelas dificuldades impostas pela música, sempre segura, potente, bem projetada e expressiva. Um belíssimo trabalho.
Por fim, uma obviedade que no Brasil é sempre necessário reiterar: pela raridade desse título para os padrões nacionais e pela beleza e eficiência da montagem, esta produção de Peter Grimes merece – e muito – ser levada a outros teatros brasileiros. De preferência, com alguns pequenos ajustes no elenco.
Quatro óperas em quatro dias
A 25ª edição do Festival Amazonas de Ópera experimentou este ano um fim de semana prolongado, com a apresentação de quatro óperas em quatro dias (O Contratador de Diamantes na quinta-feira; Peter Grimes na sexta; Ana Bolena no sábado; e Piedade no domingo). Pude ver as duas intermediárias, e, sobre Bolena, Fabiana Crepaldi publicará em breve a sua análise.
Em tempos recentes, não se tem notícia de que algo do tipo tenha acontecido em qualquer teatro brasileiro. Isso representa um desafio logístico em vários aspectos e, para a orquestra, um desafio estilístico, já que os músicos precisam transitar entre um estilo e outro em pouquíssimo tempo. Já para o turista, facilita muito a vida, pois ele pode assistir a vários espetáculos em apenas uma viagem. A ver se a boa experiência se tornará fixa nas próximas edições.
Fotos: Saleyna Borges.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
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