Raina Kabaivanska celebra os seus 90 anos

“O tempo passa, mas é belo vê-lo passar continuando a trabalhar. E se se trabalha cantando, é ainda mais belo”. Foi assim que a grande diva Raina Kabaivanska comentou a chegada, no dia 15 de dezembro, dos seus 90 anos, em uma entrevista concedida a Stefano Marchetti e publicada no jornal italiano Quotidiano Nazionale.

Ao invés de esconder ou disfarçar a idade, Kabaivanska nitidamente sente orgulho de sua longevidade e, claro, de estar lúcida, ativa e altiva — como a grande diva que é. Em uma saborosa entrevista disponível no YouTube do Teatro Comunale di Ravarino, Kabaivanska protesta quando Moreno Gesti inicia a conversa falando sobre a sua trajetória artística da juventude: “É preciso dizer quando eu nasci. Eu nasci em 15 de dezembro de 1934”, informou pausadamente e com um sorriso de vitória.

Kabaivanska nasceu em Burgas, na Bulgária, mas logo se mudou com a família para Sófia. Foi lá que frequentou a escola e se formou em canto e piano no conservatório. Filha de “uma grande professora de física e de astronomia” e de um médico, ela classifica a sua família como “muito séria”, de modo que a sua decisão de frequentar o conservatório foi “quase um trauma” para os pais. “Mas foram muito democráticos e me deixaram escolher”, conta a Gesti.

O que mudou a sua vida, no entanto, foi um rádio clandestino. Kabaivanska nasceu sob um “regime comunista onde não sabíamos nada do mundo, onde nós só sabíamos o que acontecia em Moscou, na União Soviética, porque o meu país era um satélite da União Soviética. E um dia um amigo que estudava engenharia me disse: ‘eu fiz um rádio onde se pode pegar as estações não só russas e búlgaras, mas… segredo! Se você quiser vir ouvir…’. Mas como não?! Eu estou sempre pronta para fazer revoluções!”

Diante do rádio do amigo, Kabaivanska começou a ouvir “línguas estrangeiras”, que não o búlgaro e o russo que conheciam. Passando pelas estações, ela ouviu a ária de I Vespri Siciliani, de Verdi, que estava estudando no conservatório. Outras árias se seguiram, de Bellini a Wagner.

Kabaivanska ficou maravilhada: “Onde se canta assim? Eu quero cantar como essa pessoa”. Segundo ela, logo identificou que a língua que estavam falando entre as árias era italiano e, futuramente, veio a descobrir que a cantora era Maria Callas — mas, na época, ela sequer sabia da existência de Maria Callas.

Quando recebeu uma bolsa para estudar no Teatro Bolshoi, em Moscou, foi falar com o primeiro-ministro e conseguiu autorização para ir à Itália — “porque a Itália é o país do bel canto”. Foi assim que, em 1958, aos 23 anos, Raina Kabaivanska se mudou definitivamente para a Itália.

Em Milão, estudou com a célebre soprano italiana Zita Fumagalli Riva (1893-1994). Em troca das aulas, Kabaivanska acompanhava os outros alunos de Fumagalli ao piano — e a generosa professora ainda a recompensava com um risotto giallo alla milanese.

A carreira brilhante

Quando abriu concurso no Teatro alla Scala, Fumagalli não aprovou a ideia de Kabaivanska de ir fazer audição: sem conhecer alguém lá, seria impossível. Kabaivanska, no entanto, precisava de trabalho e resolveu ir assim mesmo. No site do La Scala, Kabaivanska contou a Daniele Cassandro: “eu cantei a ária da ‘Thaïs’, de Massenet, com aqueles pianíssimos em Si bemol. Eu costumava fazer tudo instintivamente”. Segundo ela (na conversa com Gesti), depois que cantou, o maestro Antonino Votto se levantou e disse: “vou fazer esta garota cantar no La Scala daqui a alguns meses! E assim foi”. Em maio de 1961, Kabaivanska debutou no La Scala como Agnese, em Beatrice di Tenda, de Bellini, ao lado de Joan Sutherland e sob a regência de Votto.

Don Carlo (La Scala, 1964)

Ela não tardou a assumir um papel de protagonista no mesmo teatro: na temporada seguinte, encarnou os papéis-títulos da Suor Angelica, de Puccini, e da Turandot, de Busoni; na outra temporada, Alice Ford no Falstaff, de Verdi. Começou o ano de 1964 como Elisabetta di Valois no Don Carlo, de Verdi — papel que, com menos de 30 anos, já havia interpretado no Metropolitan no final do ano anterior. Os dois principais papéis da sua carreira, ambos de óperas de Puccini, também passaram pelo palco do La Scala: foi Madama Butterfly por lá, pela primeira vez, em janeiro de 1972, e despediu-se da cena lírica do teatro como Tosca em abril de 1980, ao lado de Luciano Pavarotti, Ingvar Wixell e sob a regência de Seiji Ozawa. Felizmente essa produção foi registrada em vídeo.

A partir do momento em que debutou no La Scala, começaram a chegar convites para se apresentar no Metropolitan, na Royal Opera House e nos outros principais teatros do mundo: óperas de Paris e Viena, Teatro Real de Madri etc.  

Kabaivanska e Pavarotti em Tosca (Viena, 1989)

Kabaivanska debutou no Met em outubro de 1962. Segundo a crítica de Everett Helm para o Musical America, “Em ‘Pagliacci’, de Leoncavallo, as atenções se voltaram para Raina Kabaiwanska, que fez a sua estreia no Met como Nedda. E foi uma estreia muito bem-sucedida. Na faixa dos 20 anos, a soprano búlgara é morena, bonita e de corpo esguio. Ela também sabe atuar. Como Nedda, ela foi sensual e apaixonada; como Colombina, parecia uma boneca. O mais importante de tudo, é claro, é que ela sabe cantar. Sua voz agradável, bem produzida e controlada, é sustentada por excelentes musicalidade e fraseado. Sua voz não é ‘grande’, mas se projeta bem, mesmo nas passagens mais suaves. Apenas ocasionalmente houve um ligeiro desvio da afinação, causado por uma leve oscilação e uma dispersão ocasional nas notas mais altas. Essas pequenas falhas em uma apresentação esplêndida podem ter sido causadas por ‘debutite’. De qualquer forma, a Srta. Kabaiwanska é alguém a ser observada”.

No ano seguinte, voltou ao Met em La Bohème, de Puccini, e em Don Carlo. Seguiram-se Otello, Falstaff e La Forza del Destino, todas de Verdi, e Manon Lescaut, de Puccini, registrada em áudio. Ainda: Andrea Chénier, de Giordano, Faust, de Gounod, A Dama de Espadas e Ievguêni Oniéguin, ambas de Tchaikovsky. Foi com esta última que a soprano búlgara se despediu do Met em dezembro de 1979.

Em abril de 1967, Kabaivanska encarnou a heroína pucciniana que viria a ser, juntamente com Tosca, um de seu cavalos de batalha, e cuja história viveu, no palco, cerca de quatrocentas vezes: Cio-Cio San, a Madama Butterfly.

Madama Butterfly (Verona, 1997)

Em suas entrevistas, Kabaivanska conta que para estrear em Madama Butterfly se preparou com a soprano americana de ascendência italiana Rosa Ponselle (1897-1981) — um dos principais nomes do início do século XX e da história do Met, ou, nas palavras de Kabaivanska, “uma divindade”. Para que Kabaivanska aprendesse o gestual japonês, Ponselle a enviou a uma professora japonesa de teatro Kabuki. Desse modo, Kabaivanska conseguiu atingir uma interpretação impecável, unindo o canto italiano a uma atitude não só japonesa, mas jovial.

É isso que pode ser visto no vídeo gravado em Verona, em 1983, quando Kabaivanska interpretou a Butterfly diante de uma Arena lotada. Ótima atriz, que realmente encarna o papel com o corpo e com a alma, Kabaivanska possui um timbre cristalino cujo colorido parece adaptar-se perfeitamente à personagem. Sua Butterfly é sempre sensível e autêntica, distante de qualquer som ou gesto caricatos. Em resumo, uma Butterfly perfeita.

No final dos anos 80 e início dos 90, Kabaivanska rodou a Europa como Tosca. Como no La Scala, Luciano Pavarotti e Ingvar Wixell dividiram com ela boa parte das récitas. A batuta ficou com Daniel Oren. Para nossa sorte, alguns teatros filmaram as récitas — seria desejável, apenas, que esses vídeos fossem reeditados em melhor qualidade. No YouTube, podem ser vistas as Toscas de Viena, Nápoles e um dos melhores e mais impressionantes registros de Vissi d’arte disponíveis, com um filato inigualável, gravado em Roma em 1990:

Quando fala a respeito dos maestros com quem trabalhou, Kabaivanska não tem a menor dificuldade em eleger seu favorito: Herbert von Karajan. “Era mágico (…). Quando eu cantava com ele, se criava um clima de magia”, disse a Gesti.

O primeiro contato com Karajan, no entanto, não foi dos melhores. Segundo narrou a Cassandro, em 1968 Karajan a escalou como Nedda, em Pagliacci. “O maestro me disse: ‘Você é muito bonita de perfil, sempre fique assim’. Meu problema era que eu não o via de perfil (…). Ele disse: ‘Isso não importa’. E então, segundo ele, eu estava me mexendo demais, ele disse que eu deveria ficar parada, até que eu disse a ele: ‘Nedda, é assim que eu faço, se você não gostar, eu vou embora’. Saí, peguei o bonde e voltei para minha pequena casa na Viale Piave. (…) Quando cheguei em casa, o telefone não parava de tocar. Era o superintendente Ghiringhelli para me dizer: ‘Você está louca? Você sabe quem é o maestro Karajan?’. No final, arrependida, voltei ao teatro”.

Kabaivanska e Plácido Domingo em Il Trovatore, em Viena, 1978 (©ORF/TDK)

Dessa “revolução” Kabaivanska se arrepende. Karajan só voltou a chamá-la em 1978 — passados, pois, exatos dez anos — para o sensacional Il Trovatore na Staatsoper de Viena, ao lado de Plácido Domingo, Fiorenza Cossotto e Piero Cappuccilli. Faz muitos anos que assisti ao vídeo dessa produção pela primeira vez e, ainda hoje, me lembro perfeitamente do forte impacto que me causou, especialmente por conta da interpretação de Kabaivanska.

“Quando eu fazia as minhas árias, ele não regia, ele largava a batuta, cruzava os braços para trás, fechava os olhos, se apoiava no púlpito e me escutava. E eu cantava sozinha com a orquestra, sem a sua mãozinha divina”, lembrou Kabaivanska no vídeo, ao falar do Trovatore com Karajan.

Uma professora generosa e atenciosa

Ainda haveria muito a ser dito sobre Kabaivanska como intérprete, mas é preciso passar para outro aspecto da carreira e da vida da soprano: o ensino. Comecei este artigo com Kabaivanska comemorando o fato de ainda trabalhar. Atualmente, seu trabalho é transmitir a sua arte para as novas gerações. É essa a revolução que, atualmente, está sempre pronta para fazer. E é com um sorriso orgulhoso que, nas entrevistas, começa a falar o nome dos seus alunos e elencar os seus sucessos.

Além de lecionar no Instituto Musical Vecchi-Tonelli, em Módena, onde reside, Kabaivanska também ensina na Accademia Chigiana de Siena e na Nova Universidade Búlgara, em Sófia. Além disso, por meio do Fundo Raina Kabaivanska, são oferecidas bolsas de estudo. “Tive uma professora muito generosa, Zita Fumagalli, e gostaria de fazer pelos jovens o que ela fez por mim… Quero retribuir um pouco dessa generosidade”, explica Kabaivanska em seu site.

A mezzosoprano brasileira Victória Pitts — que há mais de uma década vive na Itália, onde estudou e está iniciando uma promissora carreira — foi aluna de Kabaivanska entre 2017 e 2021. Sob os cuidados da célebre professora, em 2019 Pitts estreou como Azucena, em Il Trovatore, em Sófia, e como Amneris, em Aida, em Ravena — papel que voltou a interpretar no ano passado em Budapeste, com transmissão ao vivo pela internet, e em janeiro deste ano em Sófia, novamente orientada por Kabaivanska.

Kabaivanska com Victória Pitts, quando a mezzo estreou como Amneris, em Ravena, em 2019 (©Victória Pitts)

“É sempre um prazer falar da Kabaivanska. Como eu sempre digo, ela é o nosso sol, a nossa Diva e ‘la nostra Regina’”, escreveu Pitts quando lhe pedi um depoimento sobre a sua maestra. “Acho que a coisa mais marcante é a energia que ela nos dá. É sempre muito generosa e preocupada com os jovens artistas”, escreveu, entusiasmada, e contou que, sempre que pode, Kabaivanska vai assistir às apresentações dos alunos. Para Pitts, ela sente satisfação em ensinar e fica feliz ao ver essa nova geração brilhando e cultivando a arte lírica.

O maior ensinamento de Kabaivanska? “Acredito que (…), além da técnica, é comunicar algo ao público”.

Evidentemente, Pitts não viu Kabaivanska em cena, mas teve a oportunidade de conversar com pessoas que a viram e que ressaltaram a presença de palco da soprano e o magnetismo que ela exercia sobre o público: “Quando ela entrava no palco, olhavam só pra ela”.

O concerto festivo dos 90 anos

No último sábado, Pitts estava no palco, interpretando Maddalena, no Rigoletto, em Como; mas no domingo, seu lugar era nas primeiras filas da plateia, em Módena, onde Kabaivanska celebrou os seus noventa anos com um concerto no Teatro Comunale Pavarotti-Freni. Graças a Pitts, temos, abaixo, uma bela foto de Kabaivanska no palco, sendo homenageada.

Raina Kabaivanska em 15/12/2024, no Teatro Pavarotti-Freni, em Módena (©Victória Pitts)

Gina Guandalini, de L’Ape Musicale, conta que, sob a regência de Paolo Andreoli, os alunos da grande aniversariante dividiram o palco com a Orquestra do Conservatório Vecchi-Tonelli. Aos atuais alunos, juntaram-se nomes já consagrados, como Vittoria Yeo e Veronica Simeoni, que concluíram o programa com o dueto das flores de Madama Butterfly, e Maria Agresta, responsável pelo primeiro extra: a Ave Maria de Otello. O concerto terminou com o coro de alunos cantando White Christmas, de Irving Berlin. Após o coquetel, a noite foi encerrada com o Parabéns a Você diante de um “bolo gigante”.

Raina Kabaivanska e Paulo Esper em 15/12/2024, no Teatro Pavarotti-Freni, em Módena (©Paulo Esper)

Além de Victória Pitts, havia outro brasileiro na festa musical de Kabaivanska: Paulo Esper, diretor da Cia Ópera São Paulo, grande promotor e Cavaliere da ópera italiana no Brasil. “Noite mágica”, escreveu Esper ao deixar o teatro. Admirador entusiasmado da soprano, da sua inteligência, das suas intensas interpretações e, especialmente, dos seus filati, Esper já participou do júri de concursos internacionais de canto ao lado de Kabaivanska.

Parabéns à grande Raina Kabaivanska! Que a sua arte e os seus ensinamentos inspirem as novas gerações. E que ela continue, por muitos anos, sempre pronta para fazer revoluções.


Na foto principal, Kabaivanska em Madama Butterfly.

Um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *