Regência a serviço do drama

Solistas equilibrados e uma efetiva “regência de ópera” são destaques de “Piedade” no TMRJ.

Piedade (2012)
Ópera em quatro cenas (apresentada em forma de concerto cênico)

Música e libreto: João Guilherme Ripper
Base do libreto: fatos reais

Theatro Municipal do Rio de Janeiro

28 de abril de 2023 (ensaio geral)

Direção musical: Silvio Viegas
Movimentação cênica: Daniel Salgado

Elenco:
Euclides da Cunha: Johnny França, barítono
Anna da Cunha: Gabriella Pace, soprano
Dilermando de Assis: Ricardo Gaio, tenor

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal

Apresentada em forma de concerto cênico nos dias 28 (sexta-feira) e 29 (sábado) de abril, Piedade, ópera em quatro cenas com música e libreto de João Guilherme Ripper, foi a atração deste fim de semana no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Ripper compôs a obra entre 2011 e 2012 por encomenda da Orquestra Petrobras Sinfônica, que a apresentaria no TMRJ em sua programação regular. Na época, o desabamento de três prédios bem próximos ao Municipal obrigou os órgãos de defesa civil a interditar provisoriamente a casa. Com isso, a estreia mundial de Piedade foi transferida para o Vivo Rio. De lá para cá, a ópera passou por vários teatros do Brasil e do exterior, mas somente agora, em 2023, chegou ao palco que deveria tê-la recebido pela primeira vez.

O libreto é baseado em um episódio ocorrido em 1909 que ficou famoso como a “tragédia da Piedade”. O escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões (um clássico da literatura brasileira, que retrata a Guerra de Canudos), depois de saber que era traído pela esposa, Anna Emília Ribeiro da Cunha, foi até a casa do amante, Dilermando Cândido de Assis, no bairro da Piedade, na zona norte do Rio de Janeiro, com a intenção de matar ou morrer. Lá chegando, atirou primeiro no irmão de Dilermando, e em seguida no rival. Os tiros, porém, não foram fatais. Recuperando-se, o amante revidou, e, como era exímio atirador do exército, matou o escritor. Levado a júri popular, Dilermando de Assis foi absolvido por legítima defesa.

Ao transpor esse episódio verídico para uma obra dramática, o compositor a construiu em torno de três encontros entre duplas de personagens: Euclides e Anna na primeira cena; Anna e Dilermando na segunda; e os dois homens na terceira parte. Somente na quarta e última cena os três se encontram ao mesmo tempo no mesmo ambiente (a casa de Dilermando).

A trama apresenta Euclides como um homem que se tornou angustiado depois de ter presenciado a crueza da guerra, e que, por razões profissionais, está sempre ausente de casa. Anna demonstra sentir as ausências física e emocional do marido, encontra amparo em um homem 17 anos mais novo que ela, e por este se apaixona.

A música de Ripper reforça o drama com grande eficiência: emoldura o ambiente que, entre conflitos e atrações, leva à entrega da esposa negligenciada ao amante; na cena do cais, cria o clima de tensão crescente entre os rivais, que só poderá ter um final; e, na cena derradeira, derrama humanidade sobre o instante em que, sozinha após a morte do marido e a retirada do amante, Anna canta a sua ária final: “Piedade, Senhor / Que nos criaste humanos demais”.

Municipal ao Meio-Dia ou ensaio geral?

Johnny França

Como um compromisso particular me impedia de ir ao Municipal no sábado (29/04), restou-me a opção de experimentar o horário alternativo do meio-dia, e, se quer saber o leitor, não me arrependi! Havia chovido na manhã de sexta (28/04), o tempo ainda estava bem fechado, mas mesmo assim a casa, se não estava lotada, estava relativamente cheia – e com a presença de um público bem variado, aparentemente curioso para conhecer aquele prédio histórico e também o que se faz ali dentro.

Quando entrei na sala de espetáculos, às 11:52h, o diretor artístico da casa, Eric Herrero, já conversava no palco com o responsável pela movimentação cênica, Daniel Salgado, a respeito da obra, como estava previsto. Não presenciei todo o papo, mas ele coube muito bem nesse tipo de projeto de horário alternativo, que procura atrair um público novo, diferente do habitual, para o Municipal. Esse tipo de conversa é bem mais interessante, por exemplo, do que aquelas burocráticas subidas ao palco da presidente do Municipal antes de concertos, que eu já citei outras vezes e que nunca passaram de um entediante blá-blá-blá.

E aqui chegamos a um ponto discutível que precisa ser apontado. O Municipal divulgou a apresentação de sexta-feira como integrante do seu projeto Municipal ao Meio-Dia, mas, ao assumir o pódio para iniciar a récita, o maestro Silvio Viegas se dirigiu ao público para informar que se tratava, na verdade, de um ensaio geral, e que, se necessário, a performance poderia ser interrompida para alguma correção. É uma informação de praxe nesse tipo de situação.

O que se questiona é que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro não pode divulgar uma apresentação de ópera em forma de concerto cênico como uma atração pronta, enquanto, na verdade, ela é apenas um ensaio geral. Mesmo considerando que os ingressos foram vendidos a preços populares (R$ 2,00), era obrigação da casa, por uma questão ética, informar ao público com a devida antecedência que se tratava de um ensaio geral. Essa informação, porém, não constou em nenhum material oficial da instituição, como o cartaz na fachada da casa, o programa de sala, ou o material de divulgação distribuído à mídia. O público só soube disso pelo regente.

Ópera com clima e dinâmica de ópera

Gabriella Pace, Ricardo Gaio e, ao fundo, Cyro Delvizio

Isto posto, mesmo se tratando de um ensaio geral, a apresentação acabou não precisando ser interrompida, e foi bastante satisfatória. A movimentação cênica dirigida por Daniel Salgado funcionou muito bem, e os três solistas deram vida aos seus personagens com grande eficiência.

O jovem tenor Ricardo Gaio, que até então eu não conhecia, demonstrou ter um material vocal bastante promissor. Ainda há o que aprimorar em sua técnica, mas o artista cantou muito bem a parte de Dilermando, com boa projeção e exibindo um bonito timbre, com destaque para a modinha que abre a quarta cena, Quando a manhã me desperta falando de amor.

A soprano Gabriella Pace interpretou Anna da Cunha com a competência de sempre, boa presença e uma voz que parece ficar melhor a cada novo trabalho. Com graves sonoros, médios ajustados e uma região aguda bastante segura, a Pace expressou com clareza as emoções da personagem: o sofrimento com a ausência e a indiferença do marido, especialmente quando lhe suplica que ele olhe para ela; o interesse que Dilermando lhe desperta, sobretudo depois que se identifica como militar; a entrega a um novo amor; e o desespero no momento da tragédia.

O barítono Johnny França, que estreou no TMRJ, teve uma das melhores atuações da sua carreira. Com talento e sensibilidade, expressou com precisão a angústia de um Euclides claramente afetado pelos horrores da guerra, e, depois, o sentimento de desonra e a raiva que lhe dominam, respectivamente, ao confirmar a traição da esposa e ao procurar Dilermando para matá-lo. A sua belíssima voz correu muito bem durante toda a récita, sempre bem projetada, sempre firme, e com destaque para os seus graves portentosos.

Deixei propositalmente para o fim a performance da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, que, nos últimos tempos, anda derrapando mais que piloto de drift. Pois é, mas, sob a regência de Silvio Viegas, pareceu até outra orquestra. Mesmo que ainda longe de ser perfeita (e houve, sim, algumas incorreções), a sonoridade do conjunto estava muito mais homogênea, por exemplo, quando comparada com a qualidade de som apresentada no concerto de abertura da temporada (Nona de Beethoven).

Silvio Viegas, Johnny França e a OSTM

Não resta dúvida de que, para isso, contribuiu a mão firme, e ao mesmo tempo maleável, de um dos regentes brasileiros mais experientes na condução de óperas. Sob Silvio Viegas, a OSTM voltou a soar como uma “orquestra de ópera”, conduzida com dinâmica de ópera, sempre a serviço do drama e do efeito dramático. E, se em alguns momentos o volume pode ter ficado um pouco alto, mais importante que isso é que a apresentação como um todo teve um verdadeiro “clima de ópera” – condição atmosférica que não se apresentava no TMRJ nesse nível de intensidade, pelo menos, desde antes da pandemia.

Nos prelúdios de cada cena e no acompanhamento da modinha de Dilermando, soou muito bem o violão de Cyro Delvizio, complementando assim uma bela tarde lírica no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Sim, foi um ensaio geral, mas um belo ensaio!

Estreias tardias no Municipal do Rio

Como eu disse acima, Johnny França fez somente agora a sua estreia no TMRJ. Nos próximos dias, outra cantora brasileira, a soprano Marly Montoni, também fará a sua estreia na casa, nas apresentações do Requiem de Verdi. Tanto França quanto Montoni são cantores que, há algum tempo, possuem carreiras consistentes em nível nacional. Por que, então, somente agora estão tendo a oportunidade de cantar no palco da Cinelândia?

Bem, não é segredo para ninguém que acompanha a maneira como os teatros de ópera são “administrados” no Brasil que, no TMRJ, existe já há alguns anos uma “panelinha” de cantores que são escalados com certa frequência e, não raro, sem nenhuma justificativa técnica aceitável. Por isso, pelo costumeiro favorecimento à “panelinha”, artistas como Johnny França e Marly Montoni demoraram tanto para estrear no Rio de Janeiro.

Parece que o diretor artístico da casa, Eric Herrero, está conseguindo, ainda que aos poucos, “furar essa panela”. Isso é muito bom, mas vamos observar se a tendência se confirma, ou se, por acaso, não se trata apenas de exceção à regra.

Fotos: Daniel Ebendinger.

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