Rossini nas veias!

Com quatro cantores italianos, ótimo recital na Sala Cecília Meireles destacou a obra do compositor.

Gala Rossini
Recital

14 de junho de 2024

Sala Cecília Meireles

Direção Artística: Ernesto Palacio
Direção Executiva: Paulo Abrão Esper

Martina Russomanno, soprano
Chiara Tirotta, mezzosoprano
Pietro Adaini, tenor
Giuseppe Toia, baixo-barítono
Daniel Gonçalves, piano

Tenho dado sorte quando o assunto é Rossini. Desde novembro passado, quando vi a ópera Il Viaggio a Reims no Teatro Municipal de Santiago, no Chile, e depois passando por Zurique, em janeiro, quando vi L’Italiana in Algeri na Opernhaus, venho encontrando obras de Rossini bem cantadas e bem encenadas. E, depois de visitar o túmulo do compositor, ainda em janeiro, na belíssima Basílica de Santa Cruz (ou Santa Croce), em Firenze, voltei a encontrar a obra do gênio italiano, desta vez aqui mesmo no Rio de Janeiro, na Sala Cecília Meireles.

Um recital denominado Gala Rossini foi apresentado na Sala na última sexta-feira, 14 de junho, e também no Theatro Municipal de São Paulo, neste domingo em que escrevo (16/06). Apresentaram-se quatro cantores italianos formados pela Accademia Rossiniana Alberto Zedda (nome do prestigioso Seminário de Estudo sobre Interpretação Rossiniana, do Rossini Opera Festival, ou ROF). O ROF acontece anualmente no verão, em Pesaro, cidade natal do compositor e que foi escolhida para ser a Capital Italiana da Cultura em 2024 – daí a realização desse recital, promovido pelos Consulados Gerais da Itália do Rio de Janeiro e de São Paulo e pelos seus respectivos Institutos Italianos de Cultura, com produção executiva do Cia Ópera São Paulo/Amigos da Ópera de Jacareí.

Antes do recital, o diretor artístico da Accademia Rossiniana, Ernesto Palacio, falou rapidamente com o público, e disse, dentre outras coisas, que na Academia é ensinada a maneira correta de cantar Rossini. E foi exatamente isso que pude conferir durante a apresentação que se seguiu.

Os quatro cantores, profissionais que me pareceram ainda jovens ou relativamente jovens, demonstraram possuir ótimas vozes e excelente domínio técnico. A soprano Martina Russomanno deu início ao recital interpretando Sombre forêt, ária da personagem Mathilde na ópera Guillaume Tell, única peça da noite que não foi cantada em italiano. Foi um começo corretíssimo, já deixando transparecer a beleza do seu timbre e as suas qualidades técnicas, mas as grandes performances da soprano viriam nas suas participações seguintes ao longo do recital.

Quando retornou ao palco para cantar No, che il morir non è, ária de Amenaide em Tancredi, Russomanno, para além do canto preciso e ricamente expressivo, começou a exibir também uma hipnotizante presença de palco, que chegou ao nível máximo em Bel raggio lusinghier, da personagem-título da ópera Semiramide, cantada com requinte técnico, belíssimo fraseado, domínio de palco e estudada expressão corporal. Foi a grande interpretação da noite, de uma artista que aparenta estar pronta para desafios maiores.

Diante de uma cantora desse calibre, a mezzosoprano Chiara Tirotta, apesar de também demonstrar possuir uma ótima técnica, acabou tendo a sua performance um pouco ofuscada por ainda não possuir o mesmo domínio de palco da sua colega. Assim, especialmente nas suas primeiras intervenções, com trechos de La Cenerentola (o dueto Un soave non so che e a ária Nacqui all`affanno, seguida da célebre cabaletta Non più mesta) e de Tancredi (a ária do personagem-título Di tanti palpiti), Tirotta cantou bem, com voz segura e ótima agilidade, mas sem chegar a encantar, sem magnetismo. A mezzosoprano se soltou mais nos trechos de Il Barbiere di Siviglia que interpretou na parte final da noite: a ária Una voce poco fa (corretíssima) e o trio Ah! Qual colpo, no qual, acompanhada pelo tenor e pelo baixo-barítono, Tirotta mostrou uma movimentação mais natural, menos tensa.

E por falar neles, os homens do quarteto, o tenor Pietro Adaini exibiu uma bela voz, ótima afinação e agudos generosos. Ainda pode melhorar um pouco a qualidade do fraseado e algumas caras e bocas pouco convincentes, mas abordou muito bem o já citado dueto Un soave non so che ao lado da mezzosoprano, bem como as árias Sì, ritrovarla io giuro (de La Cenerentola) e Cessa di più resistere (geralmente cortada em Il Barbiere di Siviglia).

Aqui, a propósito, tivemos um excelente exemplo dos chamados “autoempréstimos” de Rossini, pois boa parte da melodia desta última ária do Barbeiro (estreado em fevereiro de 1816) foi reaproveitada na cabaletta Non più mesta (também cantada no programa), da Cenerentola (estreada em janeiro de 1817).

O baixo-barítono Giuseppe Toia apresentou-se ao público pela primeira vez para interpretar a ária de Don Magnifico Sia qualunque delle figlie (da Cenerentola), e já aqui demonstrou uma abordagem irretocável, com as qualidades inerentes ao baixo-bufo de Rossini, especialmente no trecho extremamente rápido da peça, em que não “comeu” nenhuma palavra. Quando retornou, foi para cantar passagens de dois personagens do Barbeiro: começou com uma corretíssima abordagem ao célebre Largo al factotum, de Figaro, para, depois, voltar às vestes de um baixo-bufo, com A un dottor della mia sorte, de Bartolo, uma vez mais abordando a passagem com grande competência técnica. Toia participou do já citado Ah! Qual colpo, que encerrou o programa, ao lado da mezzo Tirotta e do tenor Adaini, com todos interpretando o trio com graça e destreza vocal.

E quanto à performance de Giuseppe Toia, um último detalhe: faz tanto tempo, mas tanto tempo, que passagens para baixo-bufo foram assim tão bem interpretadas ao vivo no Rio de Janeiro, que sinceramente eu não me lembro quando foi essa ocasião!

O quarteto de cantores foi acompanhado, ao piano, por Daniel Gonçalves, que, em geral, apresentou um desempenho apenas razoável e deixou transparecer pouca intimidade com o universo do compositor. Talvez tenha sido este o motivo para a sonoridade um pouco “dura” que observei em algumas passagens.

Em conclusão, trechos de óperas de Rossini foram interpretados por cantores qualificados e com uma qualidade técnica raramente vista por estas terras. Quem foi à Sala Cecília Meireles na última sexta-feira não se arrependeu ao receber uma dose cavalar do compositor diretamente nas veias!

Pouco público no Rio, casa cheia em São Paulo

Por fim, é uma enorme pena que tão pouca gente tenha afluído à Sala Cecília Meireles no dia 14/06: não havia ali metade da plateia, somados público pagante e convidados. Até mesmo os integrantes do meio musical carioca e aquela parcela do público que está sempre presente compareceram em número reduzido. Ainda enquanto concluo esta resenha, acabo de ser informado que, em São Paulo, o público lotou o Theatro Municipal neste domingo (16/06).

Mesmo considerando que, no TMSP, os ingressos foram gratuitos (bastando uma reserva pela internet), aqui no Rio os bilhetes foram vendidos a preços bastante razoáveis (R$ 40,00 o mais caro). E mesmo levando-se em conta que o recital foi anunciado um tanto em cima da hora, esse fato é uma vergonha para o público carioca, que deixou de apreciar uma apresentação de canto de nível elevado, enquanto costuma aplaudir de pé qualquer porcaria que lhe é oferecida.


Foto: autor (da esquerda para a direita, Martina Russomanno, Pietro Adaini, Daniel Gonçalves, Chiara Tirotta e Giuseppe Toia).

Nota do Editor: as fotos serão atualizadas assim que recebermos fotos oficiais da Sala Cecília Meireles).

2 comentários

  1. Vale lembrar que, além da falta de divulgação, houve um concerto da Orquestra Villarmonica no TMRJ com casa cheia. Ainda não inventaram clones para o público estar em dois lugares ao mesmo tempo. É bom estar informado antes de falar besteira do público carioca.

    1. Felipe, como escrevi para um leitor no Facebook, entendo que o concerto citado explicaria, talvez, uma divisão do público mais ou menos uniforme, pois os públicos de óperas e de concertos são parcialmente diferentes, apesar de haver, claro, razoável interseção entre eles. E, para além disso, eu fui até bem comedido ao escrever que “não havia ali metade da plateia”. Talvez houvesse em torno de 20% da capacidade da Sala, e ainda acho que continuo “puxando” esse número para cima. Se descontarmos os convidados do Consulado Italiano (muitos dos quais não são exatamente frequentadores assíduos), quanto sobra? É muito triste que tão poucas pessoas tenham assistido aqui no Rio a uma apresentação tão qualificada em termos de técnica vocal. Ficam algumas questões: vale a pena o esforço (e o investimento) de voltar a fazer algo semelhante no Rio de Janeiro? O Consulado voltará a ter esse tipo de iniciativa por aqui diante do “retorno” do público? Por fim, cabe uma reflexão a todos nós que nos interessamos por música clássica e ópera no Rio de Janeiro (destacando aqui o trecho do seu comentário em que você sugere que seria necessário haver clones do público): que esse público (de ópera e música clássica) é pequeno no Rio já se sabia, mas será assim tão diminuto mesmo?

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