No Chile, um Rossini que fez bem para a alma

Produção de “Il Viaggio a Reims” no Teatro Municipal de Santiago conta com ótimos cantores e regência de alto nível.

Il Viaggio a Reims (1825)
Ópera em ato único

Música: Gioachino Rossini (1792-1868)
Libreto: Luigi Balocchi
Base do libreto: Corinne, o, Italia, novela de Madame de Staël (1766-1817)

Teatro Municipal de Santiago do Chile, 11 de novembro de 2023

Direção musical: Paolo Bortolameolli
Direção cênica: Emilio Sagi

Elenco:
Corinna: Annya Pinto, soprano
Marquesa Melibea: Gabriela Gómez, mezzosoprano
Condessa de Folleville: Vanessa Rojas, soprano
Madama Cortese: Tabita Martínez, soprano
Cavaliere Belfiore: Edgar Villalva, tenor
Conde de Libenskof: Juan de Dios Mateos, tenor
Lord Sidney: Matías Moncada, baixo
Don Profondo: Pietro Spagnoli, barítono
Barão de Trombonok: Ricardo Seguel, baixo-barítono
Don Alvaro: Ramiro Maturana, barítono
Don Prudenzio: Kevin Mansilla, baixo-barítono
Don Luigino: Felipe Gutiérrez, tenor
Delia: Camila Guggiana, soprano
Maddalena: Javiera Saavedra, soprano
Modestina: Camila Aguilera, mezzosoprano
Zeferino / Gelsomino: Gonzalo Araya, tenor
Antonio: Homero Pérez-Miranda, baixo-barítono

Orquestra Sinfónica de Santiago

Aproveitando uma viagem particular ao Chile, fui no último sábado, 11 de novembro, ao Teatro Municipal de Santiago assistir à montagem de Il Viaggio a Reims, ópera em ato único de Gioachino Rossini sobre libreto de Luigi Balocchi, com base em Corinne, o, Italia, novela de Madame de Staël (como era conhecida Anne-Louise-Germaine Necker, baronesa de Staël-Holstein).

Um pouco de história

Na época de Rossini, as óperas eram compostas praticamente em escala industrial, e, via de regra e para ganhar a vida, os compositores eram obrigados a musicar qualquer libreto que lhes pusessem nas mãos. Nesse sentido, Rossini não deu muita sorte ao longo da sua carreira, já que foram poucos os libretos realmente bons que lhe foram confiados. Por outro lado, a sua genialidade enquanto compositor é inegável, e não é fácil lembrar de outro criador que tenha escrito tantas óperas-bufas com a qualidade das suas. As comédias de Rossini, geralmente, são deliciosas ao ouvido – desde, claro, que sejam cantadas por vozes qualificadas.

Naquele tempo, também era bastante comum a criação de “obras de ocasião”, ou seja, peças escritas para uma comemoração qualquer ou para honrar alguém. Esse foi o caso de Il Viaggio a Reims, encomendada a Rossini para homenagear a coroação do rei Carlos X. A obra estreou em 19 de junho de 1825, no Théâtre-Italien, de Paris, com o próprio rei presente.

Segundo uma antiga tradição, a coroação do monarca francês acontecia na catedral de Reims. O libreto de Luigi Balocchi apresenta uma trama bastante simples: nobres viajantes de várias nacionalidades estão reunidos em um spa chamado Il Giglio d’Oro (O Lírio de Ouro), na também cidade francesa de Plombières. Lá, todos decidem que devem ir à coroação de Carlos X em Reims (daí o título da ópera), mas, para a consternação de todos, a viagem acaba não acontecendo por um motivo bastante prosaico: não há na região um único cavalo disponível para venda ou aluguel! Uma carta enviada pelo marido da dona do spa, que está em Paris, acaba reanimando o grupo, ao informar que, quando o novo rei retornar de Reims, haverá grandes festas na capital. A Condessa de Folleville oferece hospedagem a quem quiser ir a Paris para as festividades, e, felizes, todos decidem partir no dia seguinte, na diligência que diariamente liga Plombières à capital.

Depois das apresentações iniciais de 1825 (que contaram com uma das grandes cantoras da época, Giuditta Pasta, na parte da poetisa Corinna), aquela que acabou sendo a última ópera originalmente cantada em italiano de Rossini teve somente mais algumas poucas apresentações esparsas (a última delas em 1854, em Viena). O compositor chegou a reaproveitar alguns dos seus trechos (os seus chamados “autoempréstimos”) na ópera Le Comte Ory (1828), mas Il Viaggio a Reims acabou sumindo totalmente do repertório por mais de 100 anos.

O jornalista e crítico Joel Poblete nos informa no programa de sala da montagem de Santiago como a ópera foi resgatada: “En 1875, siete años después de la muerte del compositor, su viuda le regaló las 149 hojas que componían el manuscrito a Vio Bonato, amigo médico y quien asistiera a Rossini en sus últimos años; posteriormente al parecer habría sido adquirido por la reina de Italia, Margarita de Saboya, esposa de Umberto I y quien en 1920 lo entregaría a la Academia Nacional de Música de Santa Cecilia, donde al no estar registrado en el catálogo permanecería prácticamente escondido hasta que fue encontrado por casualidad en 1977, transcurridos más de 150 años del estreno mundial de la obra y más de un siglo desde la última vez que se representara ante público”.

A Accademia Nazionale di Santa Cecilia, uma das mais importantes instituições musicais europeias, confiou o manuscrito ao musicólogo e historiador norte-americano Philip Gossett, que, com o apoio da Fundação Rossini e junto à sua colega Janet Johnson, dedicou-se à revisão da obra e à elaboração de uma versão mais próxima possível da original. A obra foi devolvida ao mundo no dia 18 de agosto de 1984, ao ser encenada no Rossini Opera Festival, de Pesaro (a cidade natal do compositor), ocasião em que foi regida por Claudio Abbado e dirigida cenicamente por Luca Ronconi, e contou com solistas como Cecilia Gasdia, Lella Cuberli, Francisco Araiza, Ruggero Raimondi, Samuel Ramey e Leo Nucci.

A propósito, o mesmo Festival já anunciou uma apresentação especial da ópera, em forma de concerto, na sua edição de 2024, quando comemorará os 40 anos da primeira execução da obra em tempos modernos.

Em Santiago, a ópera foi apresentada na edição crítica preparada por Janet Johnson com o apoio da Fundação Rossini, e publicada pela histórica Casa Ricordi.

Cravo e a partitura – Foto: Leonardo Marques

A obra

Uma das críticas que mais se faz a Il Viaggio a Reims é que a obra quase não tem ação dramática, e sobre isso vale até registrar uma curiosidade: embora o libreto tenha sido publicado classificando-a como um “dramma giocoso”, o próprio Rossini definiu-a, na partitura autógrafa, como uma “cantata cênica”.

Recorro, uma vez mais, ao excelente texto de Joel Poblete no programa de sala: “(…) cuando ya conocemos ‘El viaje a Reims’ podemos darnos cuenta de que estamos ante una de las creaciones más únicas, originales y fascinantes de su carrera. Ya de partida se trata de una obra creada a partir de un acontecimiento de la vida real y totalmente contemporáneo, que incluso es el punto de partida de la trama y si bien en buena medida tienen razón quienes le critican que el argumento es prácticamente inexistente o que no es mucho lo que pasa en escena, no se puede negar que como retrato social de los arquetipos de las clases altas y la nobleza europea, la mirada de Rossini es incisiva, divertida y mordaz, algo bastante particular considerando que precisamente quienes pueden aparecer reflejados en los personajes eran probablemente buena parte del público que asistió a las funciones de estreno en París”.

(…)

“Comparados en más de alguna oportunidad con los protagonistas del ‘Esperando a Godot’ de Beckett, los nobles de ‘El viaje a Reims’ que no pueden concretar su trayecto a la coronación también podrían recordarnos a otras historias con elementos en común, desde el grupo de jóvenes acomodados que huyendo de la peste se refugian en una villa en el ‘Decamerón’ de Boccaccio, o los artistas que deben sobreponerse a un cambio de planes en la ‘Ariadna en Naxos’ de Strauss/Von Hofmannsthal, e incluso los adinerados membros de la clase alta mexicana que no pueden abandonar la mansión donde se habían reunido a cenar, en la película de Buñuel ‘El ángel exterminador’, que a la vez inspiró la ópera contemporánea homónima de Thomas Adès, estrenada en 2016”.

(…)

“Sus nobles protagonistas pueden llegar a ser triviales, frívolos o incluso absurdos y ridículos, pero más allá de los arquetipos la música de Rossini los humaniza y les da vida. Y su mensaje de paz, hermandad y unión para Europa, concebido originalmente em un contexto histórico muy determinado, también puede ser un símbolo al que aferrarse en medio de los complejos tiempos que atraviesa el mundo actual, casi dos siglos después del debut de esta obra única y que afortunadamente resucitó para quedarse en el repertorio”.

E encerro as citações de Poblete com um trecho de sua análise sobre o célebre concertato para 14 vozes: “(…) tratándose de una obra de protagonismo múltiple, aunque abunda en memorables pasajes – por mencionar sólo un ejemplo, la notable y divertida aria de Don Profondo, ‘Medaglie incomparabili’ –, es difícil cuestionar que su concertado para 14 voces solistas debe ser el instante más brillante e irresistible de la ópera. A diferencia de la mayoría de los finales de actos tradicionales rossinianos, acá no interviene coro, pero con la cantidad de cantantes en escena funciona muy bien de esta manera, ya que a los protagonistas se unen las voces de algunos de los roles secundarios. Como suele ocurrir en casi todos estos números concertantes del compositor, hay uma primera parte más lenta, que en este caso tiene que ser cantada a cappella, con los intérpretes sin el apoyo orquestal; y a continuación viene el momento más ágil y ligero: Rossini en estado puro”.

E foi exatamente isso que tive o enorme prazer de presenciar em Santiago: “Rossini em estado puro”.

A montagem

Cena da ópera: à frente, à esquerda, a soprano Tabita Martínez – Foto: redes sociais do TMS

A produção em cartaz no Teatro Municipal de Santiago até 18 de novembro é a mesma que o encenador espanhol Emilio Sagi concebeu para a edição de 2001 do Rossini Opera Festival, e que é apresentada em Pesaro todos os anos com a participação de alunos da Accademia Rossiniana “Alberto Zedda”. A produção também já passou, dentre outras, por cidades como Madrid (Teatro Real, 2004) e La Plata (Teatro Argentino, 2011 – estreia sul-americana da montagem).

A montagem de Sagi, que eu já tinha visto em vídeo (do Rossini Opera Festival), é bastante simples, mas certeira, sobretudo quando se conta com bons cantores-atores. E devo dizer que ela funciona muito melhor ao vivo, no teatro, que no vídeo. O espaço cênico (cenário do próprio encenador) é curto, restrito à frente do palco, onde são dispostas espreguiçadeiras de piscina. Até alguém que costuma ser exigente com cenários – como este autor – deve reconhecer que é o suficiente para o tipo de ação que se desenvolve.

A iluminação de Eduardo Bravo é correta na maior parte da encenação, ganhando maior contraste nos trechos finais. E os figurinos de Pepa Ojanguren são simples no começo (entre trajes de funcionários do spa ou roupões de banho para os hóspedes), mas se tornam mais elegantes (com certa dose proposital de exagero) a partir da cena do célebre concertato.

No todo, a encenação de Emilio Sagi salienta – e atualiza – o ridículo das situações que se veem em cena, ao apresentar um grupo de abastados inúteis. Nesse sentido, os melhores momentos da encenação são a deliciosa ária de Don Profondo, Medaglie incomparabili (em que o personagem ironiza as características e as nacionalidades dos demais companheiros de dolce far niente), e o acréscimo da entrada de uma criança no corredor central da plateia na cena final, usando uma coroa real e comendo um doce qualquer. Quando chega perto da pequena parede que separa a plateia do fosso da orquestra, o menino se vira para o público e faz o gesto característico do dedo dando voltas na lateral da cabeça, sugerindo que aqueles personagens sobre o palco são todos um tanto loucos mesmo.

Excelente desempenho musical

Cena da ópera: à frente, ao centro, o barítono Pietro Spagnoli; e do lado esquerdo (a segunda de baixo para cima), a soprano Annya Pinto – Foto: redes sociais do TMS

Em uma ópera com 18 personagens (e, no caso de Santiago, com 17 solistas), dos quais pelo menos 10 possuem partes importantes, já era de se esperar que nem todas as vozes estivessem em um mesmo patamar, mas a maioria dos artistas em cena dá muito boa conta das suas respectivas partes.

Dentre os personagens com menos destaque, o médico Don Prudenzio, que demonstra não entender nada de medicina, recebeu uma interpretação vocal vacilante e pouco musical do baixo-barítono Kevin Mansilla. Já a soprano Camila Guggiana (Delia), a mezzosoprano Camila Aguilera (Modestina), e os tenores Felipe Gutiérrez (Don Luigino) e Gonzalo Araya (Zeferino / Gelsomino), se não chegaram a se destacar, tampouco merecem apontamentos negativos.

Foi curioso notar que a relativamente pequena parte de Antonio foi interpretada pelo baixo-barítono cubano-chileno Homero Pérez-Miranda – a quem no Rio de Janeiro foram confiadas partes protagonistas em anos recentes. Tal qual outros colegas já citados, ele não teve maior destaque vocal. Por sua vez, a soprano Javiera Saavedra soube aproveitar muito bem a parte de Maddalena, e ofereceu uma performance vocal bastante consistente.

Entre os 10 solistas principais, o barítono Ramiro Maturana teve participação discreta como Don Alvaro, enquanto o baixo Matías Moncada exibiu como Lord Sidney uma voz potente, mas pouco maleável. Tanto que, durante a sua cena e ária, Ah! Perché la conobbi? / Invan strappar dal core, o destaque absoluto foi para o maravilhoso e impecável solo de flauta. O tenor mexicano Edgar Villalva interpretou o Cavaliere Belfiore com correção, e a soprano Tabita Martínez foi uma ótima Madama Cortese, com voz ágil e graciosa.

Por sua vez, a mezzosoprano Gabriela Gómez deu vida à Marquesa Melibea com uma linda voz escura, rica em nuances, ao passo que o tenor lírico-ligeiro espanhol Juan de Dios Mateos foi um excelente Conde de Libenskof, com voz clara, afinação impecável e ótima projeção. Ambos souberam aproveitar muito bem sua cena e dueto, D’alma celeste / Al barbaro rigore, que antecede a cena final da ópera. Mateos, a propósito, canta este ano em uma produção de O Barbeiro de Sevilha na Deutsche Oper, de Berlim.

Como o Barão de Trombonok, o baixo-barítono Ricardo Seguel ofereceu atuação cativante durante toda a ópera, e especialmente na cena final (quando ele assume a função de uma espécie de mestre de cerimônias), sempre com ótima voz e excelente presença. A soprano Vanessa Rojas interpretou à perfeição a Condessa de Folleville, uma francesa afetada e apaixonada por moda. Sua ária ainda no começo da representação, Partir, o ciel! Desio, foi muito bem interpretada.

O experiente barítono italiano Pietro Spagnoli (que somente neste ano já havia cantado óperas de Rossini em Viena, Madrid, Dresden e Zurique) foi um maravilhoso Don Profondo, com grande presença cênica e importante contribuição nos números de conjunto. Sua ária, a saborosa Medaglie incomparabili, foi um dos grandes momentos da récita, cantada com agilidade vocal assombrosa e grande verve cômica. Spagnoli é desses cantores que, só de olhar para ele, o espectador já percebe que está diante de um grande artista.

E ainda havia a poetisa Corinna da soprano Annya Pinto. Responsável pelos momentos mais líricos da partitura, a cavatina Arpa gentil e o improviso All’ombra amena (que integra a cena final), ambas acompanhadas por solos de harpa, a artista ofereceu ao público interpretações imaculadas, exibindo uma voz preciosa e ricamente expressiva.

Como se não bastasse esse belíssimo elenco, com muito mais acertos que erros nas escalações, o maestro chileno-italiano Paolo Bortolameolli conduziu a ópera com uma precisão e um conhecimento estilístico raramente vistos ao vivo por este autor. Sob sua batuta, a Orquestra Filarmónica de Santiago cantou lindamente. O regente respeitou os cantores, controlando o volume da orquestra; valorizou a dinâmica, realçando contrastes; e conduziu os números de conjunto com grande apuro. Sob seus cuidados, o sexteto Sì, di matti una gran gabbia, e o célebre concertato para 14 vozes (A tal colpo inaspettato) soaram maravilhosamente bem!

Diante dos problemas que costumeiramente são observados na maioria das produções líricas brasileiras dos últimos tempos (ora elencos muito mal escalados, ora regentes que não sabem reger ópera, ora cenários de péssima qualidade), ter podido apreciar esta montagem de Il Viaggio a Reims em Santiago, literalmente, fez bem para a alma.

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Nota do autor: são todos chilenos os solistas supracitados cujas nacionalidades não foram mencionadas.

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Foto principal: Lene Bresiani (agradecimentos ao fim da apresentação).

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