“Il Trittico”: quando a luz no fim do túnel cega

Na Bayerische Staatsoper, a produção de Lotte de Beer salienta a unidade da obra de Puccini, destacando a morte como fio condutor.

Il Trittico (1918)
Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Giuseppe Adami (Il tabarro) e Giovacchino Forzano (Suor Angelica e Gianni Schicchi)
Bayerische Staatsoper, 1° de abril de 2024
Direção musical: Robert Jindra
Direção cênica: Lote de Beer
Cenografia: Bernard Hammer
Figurino: Jorine van Beek
Iluminação: Alex Brok
Il Tabarro:
Michele: Ambrogio Maestri
Luigi: Yonghoon Lee
Il Tinca: Kevin Conners
Il Talpa: Martin Snell
Giorgetta: Lise Davidsen
La Frugola: Natalie Lewis
Vendedor de canções: Zachary Rioux
Casal de amantes: Elsa Dreisig Granit Musliu
Suor Angelica:
Suor Osmina: Ruth Irene Meyer
Suor Angelica: Ermonela Jaho
La zia princessa: Katja Pieweck
La badessa: Victoria Karkacheva
La suora zelatrice: Ursula Hesse from the stones
La maestra delle novizie: Noa Beinart
Suor Genovieffa: Eirin Rognerud
Suor Dolcina: Seonwoo Lee
La suora infirmiera: Emily Sierra
Pedidoras de esmolas: Eliza Boom e Natalie Lewis
Enfermeiras leigas: Eliza Boom e Natalie Lewis
Coro infantil da Ópera de Munique
Gianni Schicchi:
Gianni Schicchi: Ambrogio Maestri
Lauretta: Elsa Dreisig
Zita: Noa Beinart
Rinuccio: Granite Musliu
Gherardo: Zachary Rioux
Nella: Eliza boom
Gherardino: David Geberth
Betto di Signa: Christian Rieger
Simone: Martin Snell
Marco: Daniel Noyola
La Ciesca: Emily Sierra
Maestro Spinelloccio: Donato Di Stefano
Ser Amantio di Nicolao: Andrew Hamilton
Pinellino: Roman Khabaranok
Guccio: Thomas Mole
Bayerisches Staatsorchester

Atualmente, quando penso em uma companhia de ópera de excelência, a Ópera Estatal de Munique, ou Bayerische Staatsoper, é a primeira que me vem à mente. De uns anos para cá, essa casa se tornou o meu destino favorito para ver óperas e possui a temporada que, mesmo à distância, acompanho atentamente. No mês passado, tive a oportunidade de assistir, em Munique, à produção de Calixto Bieito para Fidelio, de Beethoven; à excelente produção de Tobias Kratzer de Die Passagierin (A Passageira), de Mieczyslaw Weinberg, protagonizada pela fantástica Sophie Koch; Parsifal, de Wagner, com uma produção mais que discutível de Pierre Audi, mas com a excelente Bayerisches Staatsorchester dirigida por Constantin Trinks, e com Georg Zeppenfeld e Christian Gerhaher, que tudo compensam; e Il Trittico, de Puccini, que trato neste texto.

A unidade temática e a produção de Lotte de Beer

É comum, hoje em dia, que Il Tabarro, Suor Angelica e Gianni Schicchi, as óperas que, em conjunto, formam Il Trittico, de Giacomo Puccini, sejam apresentadas de forma independente. Esse desmembramento foi autorizado pelo compositor pouco tempo depois da criação mundial. Quando são apresentadas em conjunto, no entanto, é impossível não perceber que constituem três partes de uma estrutura única, como os tríticos encontrados nas pinturas barrocas. Essa percepção se acentua ainda mais quando a encenação utiliza uma linguagem única para as três partes, como a de Lotte de Beer, que estreou na Bayerische Staatsoper em dezembro de 2017.

Os cenários de Bernard Hammer insere as três óperas – ou melhor, as três partes – em uma espécie de túnel ou tubulação metálica que parece desafiar a gravidade, de onde personagens e elementos do cenário surgem, ou para onde fluem. Na parte frontal desse tubo, os figurinos de Jorine van Beek, os objetos e a direção de atores servem a uma encenação praticamente tradicional, que situa as três óperas em períodos e locais distintos, tudo conforme o libreto.

Do ponto de vista temático, a morte perpassa as três partes do trítico. A história de Il Tabarro começa após a morte do filho de Giorgetta e Michele e termina com a morte de Luigi; Suor Angelica é marcada pela morte do filho da personagem que dá título à obra; Gianni Schicchi gira em torno da morte e do testamento de Buoso Donati. Também o relacionamento amoroso e seus problemas está presente nas três peças: em Il Tabarro, o relacionamento desgastado de Giorgetta e Michele, e o extraconjugal e perigoso de Giorgetta e Luigi; em Suor Angelica, um relacionamento de uma jovem solteira que engravidou e, como consequência, foi internada em um convento sem sequer ver o filho ou ter notícias dele, mesmo quando este filho adoeceu e morreu; em Gianni Schicchi, o amor entre os jovens Lauretta e Rinuccio, que se viabilizou graças à morte e à herança de Buoso.

A produção de de Beer começa em silêncio, sem aplausos para a entrada do maestro (que entra no escuro), com um cortejo fúnebre que leva o caixão do filho de Giorgetta e Michele. Entre Il Tabarro e Suor Angelica, não há intervalo nem aplausos, mas um cortejo duplo, também silencioso, supostamente representando as mortes de Luigi e do filho de Suor Angelica. Gianni Schicchi não começa nem termina com cortejo, mas Buoso, morto, está permanentemente lá.

Antes de cada uma das três óperas, a iluminação de Alex Brok se coloca em posição de destaque: vemos os cortejos e os personagens na contraluz, e somos atingidos por uma luz intensa vinda do fundo do túnel. Uma luz que ofusca os nossos olhos, que nos impede de ver. Uma luz ameaçadora, que torna as sombras tanto dos mortos quanto dos vivos – muitos deles violentos, alguns até criminosos, outros que já perderam a esperança de encontrar qualquer felicidade – ainda mais dramáticas. É uma luz no fim do túnel que não traz esperança, mas que assusta e cega, que nos leva a fechar os olhos, como fazemos, na maioria das vezes, diante da violência, seja ela um crime passional ou um assassinato moral.

O cenário metálico, acinzentado, frio, contrasta com os figurinos e objetos presentes na cena. Em Suor Angelica quase não há cores, uma vez que todas as freiras usam hábitos brancos (de um branco menos frio que o acinzentado do cenário) e com véus brancos. Apenas Angelica fica praticamente todo o tempo sem o véu, somente o colocando quando vai se encontrar com a zia principessa. Essa ausência do véu tem o sentido prático de a diferenciar, além de destacar a desonra da qual ela era acusada pela família. É em Gianni Schicchi que surgem mais cores no cenário, com a cama de Buoso duplicada na parte superior e com figurinos mais coloridos.

A unidade estrutural e a leitura musical

Do ponto de vista estrutural, o tríptico é formado por uma primeira parte dramática, com um estilo verista (Il Tabarro), uma mais lírica, mas não menos dramática (Suor Angelica), e uma terceira cômica (Gianni Schicchi). É como se fosse um concerto (para orquestra e vozes) em três movimentos: allegro, andante e scherzo. As três óperas começam com uma melodia que contém um pequeno tema persistente: em Il Tabarro, representa a água, o balanço incessante do barco; em Suor Angelica, o embalo de um bater de sinos; e em Gianni Schicchi, a agitação da família de Buoso.

A envolvente leitura de Robert Jindra à frente da excelente Bayerisches Staatsorchester sublinhou o caráter dramático das duas primeiras óperas, sobretudo da primeira. Essa leitura foi acompanhada pela interpretação incandescente tanto da soprano Lise Davidsen (Giorgetta) quanto do tenor Yonghoon Lee (Luigi) em Il Tabarro. Se, musical e dramaticamente, a dupla foi irrepreensível, a compreensão do texto não foi tarefa fácil. Lee parecia, por vezes, deixar seu palato um tanto alto (coisa que não acontecia aproximadamente há uma década, quando o vi no Metropolitan), comprometendo a dicção, mas o seu timbre luminoso, pungente, compensou esse problema. Davidsen, com a sua voz potente, irresistível mesmo, e o seu belo fraseado, entregou um longo e sustentado dó agudo em “questa strana nostalgia”.  

Foi, no entanto, em Suor Angelica que o verdadeiro espírito do drama adquiriu profundidade. O agudo extremo e os arroubos passionais deram lugar à dor contida, que brota do fundo do coração. Na interpretação magistral de Ermonela Jaho, Suor Angelica – a pobre freira órfã, separada do filho, abandonada pela família e internada em um convento sem receber qualquer notícia ou visita durante sete anos – ganhou corpo e alma. Jaho não tem a voz de Davidsen – são cantoras tão diferentes que qualquer comparação é inútil –, mas ela possui um vibrato com uma rara riqueza de harmônicos que torna a sua voz única e inconfundível sem comprometer a dicção. Mais que isso, demonstra uma entrega irrestrita, uma interpretação profunda, e sabe, como poucos, construir um personagem. Em outras palavras: é uma verdadeira artista. Desde o início, a Suor Angelica de Jaho demonstrava certa sensação de incômodo, de um trauma contido. Durante o confronto com a zia principessa – muito bem interpretada por Katja Pieweck –, na produção de de Beer Suor Angelica tem um surto de violência. A partir desse momento, e ainda mais quando recebe a notícia da morte do filho, ela parece se libertar. É com esse clima de alívio, de liberdade, que a ópera termina. Do túnel brota uma cruz iluminada. Dentro dela, o filho dessa mater dolorosa.

Substituindo Wolfgang Koch, Ambrogio Maestri foi Michele em Il Tabarro e interpretou o papel-título em Gianni Schicchi. Seu timbre de barítono marcante e bem sustentado, com o peso na medida certa, e sua bela dicção já se fizeram notar na primeira ópera, mas foi encarnando o personagem cômico de Gianni Schicchi que brilhou de verdade – aí, Maestri estava em casa e pôde demonstrar todo o seu talento de comediante.

Granit Musliu e Elsa Dreisig em Gianni Schicchi

A ária mais convencional e mais famosa das três obras é, sem dúvida, O mio babbino caro, que Lauretta canta para seduzir o pai e convencê-lo a fazer alguma coisa a respeito do testamento de Buoso (que havia deixado todos os seus bens para os frades). E a Ópera de Munique teve uma Lauretta de luxo: Elsa Dreisig, uma cantora com voz luminosa e interpretação convincente, que está se tornando cada vez mais relevante no cenário internacional. A voz de Dreisig já havia lançado uma pequena centelha de luz durante a primeira ópera, Il Tabarro, onde ela teve uma breve participação como a amante do casal de amantes. Com ela, o jovem e promissor tenor Granit Musliu, atualmente membro do elenco estável da Bayerische Staatsoper, formou um belo par, tanto como o amante, em Il Tabarro, quanto como Rinuccio, em Gianni Schicchi.  

Il Trittico foi o último espetáculo que vi nesses dias que passei na Alemanha. E teve tudo o que se pode desejar para encerrar uma viagem musical: dramaticidade e envolvimento que não permitiram que a mente se desviasse por um só minuto do palco e do fosso, refinamento musical, uma ótima produção e cantores de alto nível.


Fotos: Wilfried Hösl.