Com uma encenação bela, mas complexa, montagem da ópera de Dvořák se destacou pela qualidade dos cantores. OSTM foi o ponto fraco.
Rusalka (1901)
Ópera em três atos
Música: Antonín Dvořák (1841-1904)
Libreto: Jaroslav Kvapil (1868-1950)
Base principal do libreto: A Pequena Sereia, conto de Hans Christian Andersen (1805-1875)
Theatro Municipal do Rio de Janeiro *
22 e 24 de novembro de 2024
Direção musical: Luiz Fernando Malheiro
Direção cênica: André Heller-Lopes
Cenografia: Renato Theobaldo
Figurinos: Marcelo Marques
Iluminação: Gonzalo Cordova
Vídeo: Derek Pedros
Coreografia e direção de movimento: Bruno Fernandes e Mateus Dutra
Elenco:
Rusalka: Ludmilla Bauerfeldt / Paolla Soneghetti, sopranos
Príncipe: Giovanni Tristacci, tenor
Ježibaba (Feiticeira): Denise de Freitas, mezzosoprano
Vodník (Senhor das Águas): Licio Bruno, baixo barítono / Murilo Neves, baixo
Princesa Estrangeira: Eliane Coelho / Tati Helene, sopranos
Guarda Florestal / Caçador: Geilson Santos, tenor
Ajudante de Cozinha: Hebert Campos, contratenor
Ninfas: Carolina Morel e Mariana Gomes, sopranos, e Lara Cavalcanti, mezzosoprano
Duplos das Ninfas: Julia Cobas, Manoela Leopoldino e Gabriela Mendes, bailarinas
Coro do Theatro Municipal (Cyrano Sales)
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
* Produção original do Auditório de Tenerife, Espanha
Obra-prima lírica de Antonín Dvořák, Rusalka despontava desde o início do ano como uma das produções de ópera mais aguardadas da temporada no Brasil. A própria raridade do título para os padrões nacionais já era, por si, o primeiro motivo de atração. O cancelamento da edição deste ano do Festival Amazonas de Ópera e as temporadas pouco inspiradas dos teatros de São Paulo até aqui (resta ainda um título a ser apresentado no Theatro São Pedro) serviram para aumentar ainda mais o interesse pela montagem que acaba de ser apresentada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, proveniente do Auditório de Tenerife, na Espanha, onde estreou em março.
Rusalka conta a história de uma ondina (uma ninfa das águas), que se apaixona por um humano que costuma nadar no seu lago na floresta. Quando percebe que é inabalável o desejo da filha de se tornar humana para poder viver ao lado do amado, o pai de Rusalka (Vodník, Senhor das Águas) a aconselha a procurar a Feiticeira (Ježibaba). Esta adverte a jovem que, uma vez humana, ela não poderia falar e, se fosse traída pelo seu amado, voltaria para as águas, onde viveria maldita. Cega de amor, Rusalka não dá ouvidos aos riscos. Já transformada em mulher, ela encontra o amado, um Príncipe, que se apaixona à primeira vista, mesmo diante da sua mudez, e a leva para o seu castelo para desposá-la.
No castelo, os empregados fofocam sobre a jovem noiva e falam sobre a inconstância do Príncipe, que já estaria interessado em outra mulher: a Princesa Estrangeira, uma das convidadas do casamento. Esta demonstra uma profunda contrariedade por não ser a escolhida do anfitrião, e decide se vingar seduzindo-o. Quando a estrangeira atinge o seu objetivo, Rusalka percebe que, ao ter o seu amor traído, está amaldiçoada. Por sua vez, o Senhor das Águas, que tinha ido ao castelo ver como estava a filha, amaldiçoa o Príncipe e leva Rusalka de volta ao lago. Lá, a Feiticeira revela que há somente uma maneira de libertá-la da maldição: ela própria deve matar o homem que traiu o seu amor. Rusalka se recusa. Amaldiçoada pelos seus, abandonada pelo amado, muda perante os elementos da natureza, ela não pode ser nem mulher, nem fada, não pode viver, nem morrer. O Príncipe volta ao lago, arrependido, mas é tarde demais: Rusalka agora é apenas um elemento de morte.
Essa trama de natureza fantástica, que tem como fonte principal o mesmo conto que deu origem à célebre animação A Pequena Sereia, da Disney, mas sem a típica roupagem açucarada da empresa americana, tem entre os seus principais temas a abordagem das imperfeições do homem. No mundo “humano”, há inconstância, traição, inveja, preconceito com o diferente e com o desconhecido.
Outros temas relevantes são aqueles das relações e da transformação: como o amor de Rusalka, o desejo do Príncipe, a constância dela ou a inconstância dele, e as decisões tomadas por ambos, como tudo isso vai moldando e transformando os personagens ao longo da história. Como na vida real, as alegrias e as tristezas, as satisfações e as decepções, os encantos e os desencantos, os acertos e os erros levam ao amadurecimento do casal principal. Ambos chegam ao final transformados, não são mais os mesmos do começo da história.
Dvořák musicou o libreto de Jaroslav Kvapil entre abril e novembro de 1900, e a ópera estreou no Teatro Nacional de Praga, com enorme sucesso, em 31 de março de 1901. O compositor constrói a obra com espírito romântico, mas com as características musicais do seu tempo. Estão lá os Leitmotive (motivos condutores), utilizados sempre com inteligência dramática, e também algumas passagens expressionistas. A inspiração em melodias folclóricas e a orquestração deslumbrante (Dvořák era um brilhante sinfonista) também contribuem para fazer de Rusalka uma das grandes óperas tchecas.
Beleza e poesia de entendimento complexo
A encenação concebida por André Heller-Lopes alcançou um belo efeito visual, sobretudo no terceiro ato da ópera. Foi justamente neste último ato, e mais precisamente no finalzinho da cena derradeira, que se pôde compreender melhor o sentido da encenação, criada, parece-me, como se fosse uma grande sinfonia, uma história contada por meio da música e na qual a música deveria ter centralidade.
O grande escritor brasileiro Machado de Assis escreveu em uma das suas obras máximas, Dom Casmurro, que “A vida é uma ópera (…). Deus é o poeta. A música é de Satanás (…)”. Não deve ter sido por alguma ideia que difira muito desta o fato de que, na grande sinfonia concebida pelo encenador, a regente era justamente a Feiticeira, que ao longo de toda a ação parecia atuar para conduzir os dois protagonistas ao trágico desfecho – inclusive, de alguma maneira interferindo nas ações da Princesa Estrangeira.
O cenário funcional de Renato Theobaldo representava no primeiro e no terceiro atos o ambiente de uma orquestra, com as estantes dos músicos, cadeiras e alguns instrumentos, tendo ao fundo duas grandes telas complementares, nas quais eram projetados vídeos de Derek Pedro que remetiam quase todo o tempo a um ambiente aquático. No ato intermediário, grandes transparências criavam o palácio do Príncipe. A ótima luz de Gonzalo Cordova contribuiu, sobretudo, para o belo efeito alcançado no terceiro ato.
Os figurinos de Marcelo Marques eram quase todos eficientes, exceto o primeiro vestido de Rusalka, que nada tinha a ver com o de uma ninfa aquática, e a armadura com a qual o Príncipe entrou em cena pela primeira vez, bem exagerada para uma simples caça e beirando o mau gosto. Por outro lado, o traje da protagonista no terceiro ato foi um belíssimo achado, especialmente nos momentos em que foi mais valorizado pela iluminação do espetáculo. Bruno Fernandes e Mateus Dutra completaram a equipe de criação, elaborando as coreografias e a direção de movimento da montagem.
Voltando à concepção geral, conforme declarações do próprio Heller-Lopes, à imprensa e em texto no programa de sala, sua ideia foi inverter a lógica entre o mundo real do Príncipe e o mundo de conto de fadas de Rusalka. Para o diretor, o mundo real seria aquele da personagem-título, enquanto o mundo do Príncipe seria, ao menos para Rusalka, aquele em que poderia existir o amor ideal, um mundo de sonhos. Isso faz todo o sentido, porque a história da ópera realmente é contada do ponto de vista de Rusalka.
Apesar disso, apesar da atração visual, e até mesmo do aspecto poético presente na valorização da música por meio da já citada sugestão de uma grande sinfonia, houve complexidades no dramaturgismo proposto pelo encenador. O simples fato de que foi necessário esperar até a última cena – quase quatro horas depois do início do espetáculo – para ter uma compreensão mais clara da concepção cênica pode ter deixado muitos espectadores com alguns pontos de interrogação na cabeça, especialmente no primeiro ato, quando a “floresta de estantes” não parece ter muito significado.
Houve também algumas incongruências entre o que é cantado e o que é mostrado, como, por exemplo, a menção durante toda a ópera a um lago na floresta, enquanto em mais de uma projeção o que se via era um oceano, inclusive com embarcações naufragadas. Quando o Príncipe apareceu pela primeira vez, as projeções mostravam uma paisagem árida no lugar da floresta, certamente evocando a menção às mudanças climáticas citadas em texto no programa de sala (“Os rios secam, as florestas queimam”).
Outra: no mundo “real” proposto, conviviam no primeiro ato uma possível cantora (o primeiro vestido de Rusalka, do qual reclamei acima, parecia sugerir isso, em consonância, mais uma vez, com o texto do programa de sala), seu pai de fábula, ninfas e técnicos de palco da sala da orquestra (na verdade, os personagens do Guarda Florestal e do Ajudante de Cozinha atuando naquele momento como figurantes).
Esse excesso de informações – nem sempre muito claras à primeira vista e, por vezes, conflitantes – parece-me ter deixado a encenação um tanto complexa: era preciso ter em mente muitas referências para “montar” o quebra-cabeças da concepção cênica.
Ainda assim, ou seja, mesmo com essas observações para mim incontornáveis, a encenação de André Heller-Lopes teve mais qualidades que problemas, e foi um trabalho que respeitou a obra e louvou a música, ao contrário, por exemplo, do que ocorreu no Nabucco apresentado recentemente no TMSP.
Na sexta-feira, uma récita fria
Pude assistir somente às últimas apresentações de Rusalka. Na sexta-feira, 22 de novembro, três cantores se alternaram em relação ao elenco principal da montagem. Destes, apenas a soprano Tati Helene ofereceu um trabalho mais completo em todos os sentidos. Mesmo considerando que ela ficou devendo um Dó agudo na sua primeira cena, a sua ótima presença e sua voz segura sustentaram bem a Princesa Estrangeira.
Apesar de bom ator, o baixo Murilo Neves não convenceu como o Senhor das Águas. Com um desempenho vocal irregular, “balançado”, seus agudos soaram sempre imprecisos, ora recuados, ora esgarçados.
A soprano Paolla Soneghetti, ainda em início de carreira, é sem dúvida um nome a ser observado. A cantora demonstrou possuir uma voz bastante promissora, à qual, no entanto, faltou expressão em muitas passagens. Se a Canção da Lua (Měsíčku no nebi hlubokém) soou bem, nem só de uma ária sobrevive uma personagem. Em termos cênicos, sua Rusalka exalava insegurança, e passou “reta”, sem nuances, durante a maior parte do tempo – fato que contribuiu bastante para a impressão final da noite: uma récita fria.
No domingo, quase outro espetáculo
No dia 24 de novembro, domingo, com o mesmo elenco da estreia, pelo menos dois artistas (Ludmilla Bauerfeldt e Licio Bruno) fizeram toda a diferença para a realização de uma récita bem mais empolgante, bem mais “quente” que a anterior, como se verá adiante.
Interpretando as Ninfas, as sopranos Carolina Morel e Mariana Gomes e a mezzosoprano Lara Cavalcanti ofereceram performances justas e desenvoltas, especialmente as duas primeiras. Completaram o grupo das Ninfas as bailarinas Julia Cobas, Manoela Leopoldino e Gabriela Mendes.
O contratenor Hebert Campos (Jářku, o Ajudante de Cozinha) e o tenor Geilson Santos (Vaňku, o Guarda Florestal / Caçador) formaram uma boa dupla: Campos evoluiu entre o segundo e o terceiro atos (precisa cuidar melhor dos agudos); e Santos mostrou-se sempre seguro.
Convidada especial da montagem, a soprano Eliane Coelho interpretou uma correta Princesa Estrangeira. Se a sua voz apresenta um desgaste natural, por outro lado impressiona como o seu domínio técnico permanece inabalável.
Como Ježibaba (Feiticeira), a mezzosoprano Denise de Freitas ofereceu uma boa performance vocal, apesar de certa dificuldade na região mais grave, precisando recorrer à voz de peito com alguma frequência, nem sempre atingindo a melhor sonoridade possível. Cenicamente, seu trabalho foi primoroso, totalmente de acordo com a proposta da encenação.
O tenor Giovanni Tristacci interpretou muito bem o Príncipe, que não é uma parte das mais fáceis. Com emissão ao mesmo tempo natural e poderosa, soube expressar a evolução do personagem ao longo da ópera: da paixão inicial por Rusalka, passando pela oscilação emocional do segundo ato, até se mostrar um homem arrependido e ciente do que perdeu no ato final.
Valendo-se da sua grande experiência, o baixo-barítono Licio Bruno conferiu autoridade a Vodník (Senhor das Águas), unindo uma atuação cênica irrepreensível, de presença marcante, a uma performance vocal segura e expressiva. Sua ária do segundo ato, Celý svět nedá ti, nedá, foi muito bem defendida. Seus gestos, suas expressões faciais, sua própria postura em cena, tudo deixava transparecer uma construção meticulosa.
O mesmo se pode dizer da Rusalka da soprano Ludmilla Bauerfeldt. Cada movimento seu parecia ter sido cuidadosamente estudado, seja um jeito de olhar, seja a maneira de se portar perante cada situação. A artista percorreu a trajetória da sua Rusalka com grande sensibilidade, expressando a esperança inicial no amor, a decepção com o abandono e a resignação final. Foi um genuíno trabalho de atriz, como tem se tornado uma marca na sua carreira, acompanhado por um desempenho vocal excelente, com projeção generosa, atenção preciosa ao fraseado, um canto sempre belo e expressivo.
No fosso, uma sonoridade grosseira
O Coro do Theatro Municipal, preparado por Cyrano Sales, apresentou-se bem tanto cantando no palco quanto nas coxias. Já a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, mesmo sob a regência de um especialista em óperas, somente conseguiu oferecer uma sonoridade grosseira à música maravilhosa de Dvořák nas duas récitas a que assisti. Luiz Fernando Malheiro empregou alguns tempos lentos, que poderiam ter sido evitados para dar mais dinamismo a algumas cenas, e, na récita de sexta-feira, poderia ter segurado um pouco o volume do conjunto (necessidade que não senti no domingo).
Nada disso, porém, justifica a mediocridade sonora que brotava do fosso, principalmente na sexta-feira. E aqui cabe uma observação importante: os conjuntos do TMRJ retornaram muito mal da pandemia, mas o Coro, já há alguns meses, vem apresentando evolução. A OSTM, ao contrário, parece ter parado no tempo, e foi o ponto baixo dessa importante produção de Rusalka – a primeira do Rio de Janeiro!
Até onde pude apurar, um dos principais problemas que afetam atualmente o desemprenho da Orquestra do TMRJ é o rodízio de músicos. A maneira como esse rodízio funciona faz com que, a cada récita, haja uma formação diferente no fosso. Nenhum regente fará milagres nessas condições. Já passou da hora de a direção da casa se debruçar sobre esse problema.
Óperas tchecas e óperas raras
Escrevendo de memória, Rusalka foi apenas a segunda ópera tcheca que vi no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em quase 30 anos frequentando a casa (a primeira havia sido uma inesquecível Jenůfa, em 2017), ambas com direção de André Heller-Lopes. O encenador dirigiu outras importantes produções de óperas tchecas em São Paulo, todas no Theatro São Pedro e todas de Leoš Janáček: Kátia Kabanová, O Caso Makropoulos e, mais recentemente, A Raposinha Astuta.
É uma pena que o repertório lírico tcheco, tão rico, não circule mais no Brasil. As citadas produções de São Paulo bem poderiam ter sido trazidas ao Rio, mas, infelizmente, isso não aconteceu. É mais fácil uma montagem da Espanha chegar ao Rio, ou uma montagem da Suíça aportar em São Paulo, que haver diálogo entre os teatros das duas cidades brasileiras. Tão próximas e tão distantes…
Em seu texto no programa de sala, o diretor artístico do TMRJ, Eric Herrero, afirma que desde que assumiu o posto, em 2022, tem apostado em programar óperas que nunca foram apresentadas na casa, ou que não são encenadas ali há um bom tempo. É verdade. Com exceção da Carmen do ano passado, todos os demais títulos oferecidos na sua gestão atendem ao referido princípio, digno de elogios. Que continue assim em 2025!
Público barulhento
O público presente no Municipal tanto na sexta quanto no domingo deu aula de má educação. Nas duas récitas, quando o regente se apresentou para o segundo e para o terceiro atos, quantidade considerável de presentes insistia em continuar conversando. No domingo, na fila imediatamente atrás de onde eu estava, duas senhoras tinham mais o que fazer e não paravam de tagarelar; e um senhor demorou quase um minuto para desligar o seu celular barulhento.
O mais impressionante é que essas pessoas realmente não parecem perceber que isso é um desrespeito com os artistas e com a parcela do público que vai ao teatro efetivamente para apreciar o espetáculo.
Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, Ludmilla Bauerfeldt e Licio Bruno).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.