Com uma encenação divertida (apesar de certa sensação de déjà vu), “Le Comte Ory” é prejudicada pela regência nada rossiniana do espetáculo.
Le Comte Ory (O Conde Ory), 1828
Ópera em dois atos
Música: Gioachino Rossini (1792-1868)
Libreto: Eugène Scribe (1791-1861) e Charles-Gaspard Delestre-Poirson (1790-1859)
Base do libreto: Le Comte Ory (1816), vaudeville do próprio Eugène Scribe
Theatro São Pedro-SP
06 de dezembro de 2024
Direção musical: Ira Levin
Direção cênica e figurinos: Pablo Maritano
Cenografia: Desirée Bastos
Figurinos e caracterização: Malonna
Iluminação: Aline Santini
Preparação vocal e dicção: Fabio Bezuti
Preparação do coro: Bruno Costa
Elenco:
Conde Ory: Daniel Umbelino, tenor
Condessa Adèle: Maria Carla Pino Cury, soprano
Isolier: Luisa Francesconi, mezzosoprano
Ragonde: Fernanda Nagashima, mezzosoprano
Raimbaud: Igor Vieira, barítono
Tutor: Fellipe Oliveira, baixo-barítono
Alice: Janaína Lemos, soprano
Orquestra do Theatro São Pedro
Eu vinha dando sorte com óperas de Gioachino Rossini. Em novembro de 2023 e em janeiro deste ano, assisti a duas óperas do compositor bem cantadas, tocadas e, sobretudo, muito bem regidas: primeiro, Il Viaggio a Reims (no Teatro Municipal de Santiago do Chile, com Annya Pinto, Pietro Spagnoli, Vanessa Rojas, Ricardo Seguel, Juan de Dios Mateos, dentre outros / encenação de Emilio Sagi original do Rossini Opera Festival / condução do excelente Paolo Bortolameolli); e um mês e meio depois, L’Italiana in Algeri (na Opernhaus de Zurique, na Suíça, com Cecilia Bartoli, Nicola Alaimo e novamente Pietro Spagnoli, dentre outros / encenação de Moshe Leiser e Patrice Caurier original do Salzburger Festspiele / condução do não menos excelente Gianluca Capuano). O leitor interessado encontrará os meus relatos para essas experiências aqui e aqui, respectivamente.
Para completar, em junho último, em parceria com os Consulados da Itália no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Cia Ópera São Paulo (leia-se: Paulo Esper) trouxe a essas duas cidades quatro excelentes jovens cantores formados pela Accademia Rossiniana Alberto Zedda – nome do prestigioso Seminário de Estudo sobre Interpretação Rossiniana, do Rossini Opera Festival (resenha aqui).
Com esse meu histórico recente, não foi sem empolgação que me dirigi ao Theatro São Pedro, em São Paulo, na última sexta-feira, 06 de dezembro, para conferir a última produção da casa nesta temporada: Le Comte Ory (O Conde Ory), ópera cômica de Rossini sobre libreto de Eugène Scribe e Charles-Gaspard Delestre-Poirson que ganhou, enfim, a sua primeira produção brasileira 196 anos depois de ter estreado em Paris…
Em 1828, o mestre italiano, principal compositor de óperas do seu tempo, estava vivendo em capital francesa já há cinco anos, mas, até então, havia composto para a cidade apenas uma obra de ocasião (Il Viaggio a Reims, para comemorar a coroação do rei Carlos X), além de ter oferecido também duas obras anteriores remodeladas: Maometto Secondo foi rebatizada como Le Siège de Corinthe; e Moisè in Egitto virou Moïse et Pharaon.
Le Comte Ory foi a primeira das duas óperas que Rossini comporia originalmente para serem cantadas em francês em Paris. Baseada em um vaudeville do próprio libretista Scribe, que por sua vez havia tido como base uma balada medieval, a trama da ópera conta as peripécias do libertino Conde Ory para se aproveitar das mulheres. Primeiro disfarçado de eremita, e depois de peregrina, o “nobre” faz de tudo para ter momentos “agradáveis” com as mulheres da aldeia e até mesmo com a Condessa Adèle. Não contava o Conde, no entanto, que seu pajem, Isolier, também estava apaixonado por Adèle, e, tendo o amor correspondido, toma as providências necessárias para atrapalhar os planos do libertino. No fim, como de costume nas comédias, tudo acaba bem.
O tema principal da ópera “são os desejos reprimidos ou não”, para usar as palavras de Ligiana Costa no programa de sala. E, para ilustrar esse tema, Rossini criou material inédito e também recorreu à sua tradicional prática dos autoempréstimos, reutilizando e adaptando quantidade considerável da música de Il Viaggio a Reims, e também uma passagem da hoje praticamente esquecida Eduardo e Cristina.
Encenação divertida, mas com certa sensação de déjà vu
Por se tratar de uma comédia, a verdadeira “mistureba” presente na encenação de Pablo Maritano para o Theatro São Pedro não chega a incomodar. O diretor argentino mescla uma visão geral tradicional com alguns elementos contemporâneos e mais próximos de nós, beirando o nonsense (como um avião que passa logo no começo da ação, levando os homens da aldeia para as cruzadas… um orelhão por meio do qual o pajem Isolier pede um lanchinho delivery… placas em algum lugar da França indicando que o Brasil é para um lado, e a Argentina é para o outro… e por aí vai). Se tais absurdos contribuem para a comédia, a roupagem mais tradicional traz em alguns momentos certa sensação de déjà vu.
Vamos por partes. De modo geral, os bons cenários de Desirée Bastos ambientam bem a ação, sempre valorizados pela excelente iluminação de Aline Santini. Os figurinos do próprio Pablo Maritano e de Malonna atendem perfeitamente à proposta da encenação, e aqueles que as mulheres vestem no segundo ato, expondo cintos de castidade, merecem menção especial: em meio aos absurdos propositais já citados, nada deveria parecer mais repulsivo que isso aos olhos de hoje. Por meio do humor, a encenação enfatiza e critica essa violência praticada contra as mulheres daqueles tempos quando os homens precisavam se ausentar – na maioria das vezes, para lutar em guerras idiotas.
Como dizem por aí, no entanto, o diabo mora nos detalhes. O cenário do primeiro ato tem um quê de infantilidade que poderia ser evitado, e lembra, ainda que vagamente, um dos cenários de uma produção suíça. O primeiro figurino de Ragonde tem os mesmos adereços pontudos na cabeça (aqui, mais exagerados) de uma produção do Metropolitan, de Nova York, enquanto aqueles de Raimbaud e do Tutor do Conde também remetem a alguma coisa já vista por aí em produções da mesma ópera. É possível e até provável, claro, que a intenção de Maritano tenha sido fazer alguma referência jocosa a produções de grandes teatros, dando nova roupagem a uma ou outra ideia da mesma forma que Rossini reutilizava a própria música. Se a intenção era essa, acabou ficando pouco clara, causando a sensação de coisa requentada.
Em tempo, vale dizer que, em um ano no qual não faltaram em São Paulo encenações de ópera mal concebidas, chega a ser irônico, se não sarcástico, que exatamente uma leitura repleta de absurdos propositais alcance um resultado superior a quase tudo o que se viu nos palcos líricos da cidade.
Regente e orquestra decepcionam
Rossini é quase uma galáxia à parte no universo lírico: é preciso conhecê-lo a fundo, dominar o seu estilo, para interpretá-lo adequadamente. Não é por acaso que, dentro do festival dedicado ao compositor, citado no segundo parágrafo deste texto, existe um programa de estudos sobre a interpretação das suas obras.
Por isso, por essa necessidade primária de ser íntimo do estilo de Rossini, fiz questão de citar no começo desta resenha os regentes que vi, em tempos recentes, realizarem grandes trabalhos com a música do mestre italiano. Com a Orquestra do Theatro São Pedro, infelizmente, não aconteceu algo semelhante na récita de estreia: Ira Levin sem dúvida é um bom regente que… não tem nada de rossiniano! Ele parecia conduzir uma ópera, talvez, de Verdi. Com dinâmica rasa, o som que o norte-americano extraía do conjunto era desprovido de graça, de vivacidade – características inerentes às obras cômicas de Rossini. O primeiro ato foi ruim, com volume excessivo, a ponto de prejudicar os cantores em meio a vários desencontros; o segundo ato foi menos pior, deixando os solistas, pelo menos, mais confortáveis.
Quando lembramos que, há não tanto tempo assim, a italiana Valentina Peleggi conseguiu extrair da mesma Orquestra um resultado bem superior em uma produção de L’Italiana in Algeri, fica difícil não pensar em uma oportunidade desperdiçada pela escolha errada do regente. Peleggi, a propósito, regerá em junho de 2025 uma produção de Semiramide, obra séria de Rossini, na Opéra de Rouen, e, em seguida, leva uma récita da mesma peça, em forma de concerto, para o Théâtre des Champs-Elysées.
Soprano se destaca
Apesar de prejudicado pela regência, o desempenho vocal geral não foi ruim, e evoluiu ao longo da récita. O coro arregimentado para a ocasião, preparado por Bruno Costa, apresentou-se bem, enquanto a soprano Janaína Lemos mostrou-se discreta na pequena parte de Alice.
A mezzosoprano Fernanda Nagashima foi uma Ragonde razoável, de boa atuação cênica e voz correta. O baixo-barítono Fellipe Oliveira deu vida ao Tutor com desenvoltura e uma voz potente, que, no entanto, pode melhorar em termos de refinamento. Do elenco secundário, quem mais se destacou foi o barítono Igor Vieira: seu Raimbaud chegou ao segundo ato bem à vontade e oferecendo uma interpretação saborosa da ária Dans ce lieu solitaire.
Uma especialista em papéis masculinos, a mezzosoprano Luisa Francesconi interpretou o pajem Isolier com a categoria cênica de sempre. Vocalmente, a artista não esteve tão segura no dueto com o Conde Ory, Une dame de haut parage, mas já na passagem seguinte mostrou evolução, até chegar muito bem ao trio quase no final do segundo ato, À la faveur de cette nuit obscure.
Com desempenho semelhante, o Conde Ory do tenor Daniel Umbelino cresceu ao longo do espetáculo. Sua cavatina, Que les destins prosperes, careceu de maior brilho vocal. Melhor foi o dueto com a soprano no segundo ato, Ah, quel respect, Madame, no qual pôde exibir as suas qualidades interpretativas, da mesma forma que no já citado trio do fim da ópera.
Esse trio, muito bem interpretado em suas nuances eróticas, não teria sido o mesmo sem a contribuição valiosa da soprano Maria Carla Pino Cury. Natural da Paraíba, filha de mãe carioca e pai chileno, a artista se formou e se especializou em Basel, na Suíça, e somente agora começa a ganhar destaque em nossas temporadas líricas, depois de se apresentar em concertos por aqui no ano passado. No exterior, no entanto, já tem atuado há mais tempo: na Opéra de Toulon, por exemplo, cantou entre 2023 e 2024 Gilda, em Rigoletto, e Giulietta, em I Capuleti e i Montecchi; e no Festival d’Aix en Provence, atuou na ópera contemporânea Il Viaggio, Dante, de Pascal Dusapin, em 2022.
A Condessa Adèle da Pino Cury disse a que veio desde a cavatina En proie à la tristesse, exibindo uma voz segura e pautada em técnica qualificada. Com belo fraseado, ótima agilidade e saltos vocais precisos, a artista mostrou ainda domínio de palco durante toda a récita, expressando também os seus dotes de atriz. Um nome, enfim, para ser acompanhado de perto.
Não posso concluir sem lamentar o fato de que as óperas de Rossini (O Barbeiro de Sevilha à parte) ainda são pouco realizadas no Brasil. E, neste deserto rossiniano brasileiro, o Theatro São Pedro ainda pode ser considerado um pequeno oásis, já que por ali passaram, além de Ory, a já citada L’Italiana in Algeri (em 2019) e também La Cenerentola (nos idos de 2013). É pouco, claro, porém é mais do que os outros teatros brasileiros fazem. Já passou da hora de os nossos teatros perderem o medo de Rossini.
Fotos: Íris Zanetti.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.