Daniel Umbelino é o destaque de concerto que homenageou o Dia Mundial da Ópera e cinco grandes cantores líricos do passado.
Dia Mundial da Ópera – Gala Lírica
24 de outubro de 2023
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
Priscila Bomfim, regente
Daniela Carvalho, soprano
Michele Menezes, soprano
Kismara Pezzati, mezzosoprano
Daniel Umbelino, tenor
Ivan Jorgensen, tenor
Inácio de Nonno, barítono
Anderson Barbosa, baixo
Participações: Gabriele de Paula e João Campelo
Quando um teatro de ópera que se quer importante anuncia uma “Gala Lírica”, o espectador minimamente esclarecido sobre música e ópera imagina que será dado um concerto com vozes bastante qualificadas, ou, considerando os padrões médios nacionais, que serão convidados alguns dentre os principais cantores brasileiros do momento para interpretar um repertório que lhes seja adequado.
Quando esse teatro, para completar a marquetagem, ainda anuncia que a tal “Gala” será dada em homenagem ao Dia Mundial da Ópera (25/10) e em comemoração ao centenário de grandes cantores líricos do passado (com Maria Callas capitaneando um time que reúne ainda Victoria de Los Angeles, Cesare Siepi, Paulo Fortes e Alfredo Colosimo), o sarrafo sobe ainda mais.
Pois bem, pouca coisa se salvou na “Gala Lírica” oferecida pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro nos dias 24 e 25 de outubro, em parceria com a Cia. Ópera São Paulo. Para começo de conversa, dentre todos os solistas escalados, somente dois pareciam reunir, em teoria, as qualidades necessárias para figurar nesse tipo de concerto: a mezzosoprano Kismara Pezzati e o tenor Daniel Umbelino. E durante a apresentação, ficou claro que somente Umbelino estava à altura de uma “Gala”.
Distribuição irregular
Além de quatro cantores do Coro do Theatro Municipal, participaram do concerto cinco solistas convidados: soprano, mezzosoprano, tenor, barítono e baixo, que foram distribuídos com irregularidade ao longo do programa: o barítono cantou em cinco peças; o tenor, em quatro momentos; o baixo, em três; soprano e mezzo em apenas uma passagem cada (o bis, claro, não entra nessa conta).
Para um teatro que há anos tem problemas financeiros para realizar temporadas minimamente dignas, faz algum sentido trazer duas cantoras de outras paragens para, aqui chegando, cada qual subir ao palco uma única vez? E o fato se torna ainda menos digno de defesa quando ambas oferecem performances de qualidade duvidosa.
A soprano Daniela Carvalho era um desastre anunciado. Até as paredes dos teatros brasileiros sabem que a sua voz, se é que foi boa algum dia, não rende praticamente nada há muito tempo, tanto que, nos últimos anos, ela só tem cantado em Manaus – e chega a ser um fato curioso que ela tenha sido convidada a cantar no TMRJ justamente um mês antes de o diretor artístico do Festival Amazonas de Ópera (o maestro Luiz Fernando Malheiro) reger no mesmo teatro a ópera La Traviata.
No concerto de 24 de outubro, coube à soprano a parte de Mimì. De La Bohème, de Giacomo Puccini, ela cantou a ária D’onde lieta uscì e o dueto subsequente com o personagem Rodolfo, que se estende até o fim do terceiro ato da ópera, evoluindo para um quarteto com as intervenções de Musetta e Marcello. Daniela Carvalho cantou com emissão vacilante, afinação imprecisa e, por vezes, excesso de vibrato: uma performance sofrível de uma voz que se mostra cada vez mais desgastada.
Por sua vez, a mezzosoprano Kismara Pezzati, brasileira que desenvolve carreira na Europa, não esteve muito à vontade na parte de Azucena em O Trovator, de Giuseppe Verdi. No racconto da personagem, Condotta ell’era in ceppi, e na cena e dueto seguintes com Manrico, a artista ainda conseguiu se equilibrar na região mais grave, mas seus agudos mostraram-se bastante descalibrados. A parte de Manrico coube ao tenor Ivan Jorgensen (do coro do TMRJ). Em sua única participação no programa oficinal, Jorgensen exibiu voz burocrática e sem brilho. Ambos, mezzo e tenor, não apresentaram qualquer intimidade com o estilo verdiano.
Tenor exalou musicalidade
O baixo Anderson Barbosa não começou bem a sua participação com a ária Di sposo, di padre, da ópera Salvator Rosa, de Carlos Gomes, na qual exibiu uma musicalidade rasa. Já em Il rival salvar tu devi / Suoni la tromba, e intrepido, dueto de Os Puritanos, de Vincenzo Bellini, que o baixo cantou ao lado de Inácio de Nonno, faltou o mais importante: bel canto, um canto bonito, preciso e expressivo. Anderson Barbosa, pelo menos e de modo geral, rendeu mais que na ária de Carlos Gomes, apresentando em Bellini uma voz mais sonora.
No referido dueto, o barítono Inácio de Nonno, tal qual havia acontecido com Daniela Carvalho, apresentou uma voz desgastada, mas, no seu caso, um desgaste natural, e não técnico como o da soprano. Se passou longe do bel canto nesse Bellini, e se mostrou-se discreto como Marcello na já referida passagem de La Bohème, o artista parecia guardar forças para a ária Nemico della patria, da ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano. Se não foi perfeita, sua performance aqui ao menos foi firme, convincente e dotada de expressividade dramática.
O nome do concerto foi o tenor Daniel Umbelino, cantor com carreira já consolidada em praças como São Paulo e Manaus – e que já cantou, inclusive, no Festival Rossini de Pesaro, na Itália –, mas que somente agora estreou no TMRJ (não, caro leitor, não perca o seu tempo tentando entender o que não pode ser entendido). Umbelino, é verdade, cantou dois números que não são adequados à sua belíssima voz de tenor lírico-ligeiro: a parte de Rodolfo em La Bohème, e a ária En fermant les yeux, da ópera Manon, de Jules Massenet. Mesmo assim, o seu elevado apuro técnico garantiu performances de qualidade, especialmente na ária francesa, interpretada com grande expressividade e lindo timbre.
Já quando cantou, ao lado de Inácio de Nonno, o dueto Au fond du temple saint, da ópera Os Pescadores de Pérolas, de Georges Bizet, Umbelino estava literalmente em casa, exalando musicalidade, e a sua voz pôde brilhar intensamente: rica, bela, ao mesmo tempo poderosa e maleável – a grande interpretação da tarde daquela terça-feira.
O programa oficial do concerto terminou com Chi mi frena in tal momento? – célebre sexteto do segundo ato de Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti, do qual participaram Umbelino, de Nonno e Barbosa, além de três integrantes do Coro do TMRJ: Michele Menezes (que cantou a parte da protagonista), Gabriele de Paula e João Campelo. Uma vez mais, tivemos problemas de adequação estilística, e somente Umbelino (sempre ele) e Menezes conseguiram efetivamente fazer bel canto. No bis, todos os solistas se reuniram para cantar a famosa cena do brinde, da Traviata de Verdi.
Ao longo do concerto, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regida por Priscila Bomfim, alternou altos e baixos. Duas aberturas de óperas foram interpretadas: a de Salvator Rosa soou fria e sem liga, apesar da boa expressividade dos violoncelos (apenas); enquanto a de A Força do Destino, de Verdi, apesar da proverbial falta de refinamento sonoro por parte da OSTM, recebeu da regente leitura bem mais eficiente. O destaque do conjunto, porém, foi a interpretação da Meditação, o intermezzo do segundo ato da ópera Thaïs, de Massenet – momento em que a OSTM esteve bem e deu o devido suporte ao belo e expressivo solo de violino de Daniel Albuquerque.
E assim foi a “Gala Lírica” do TMRJ. Em meio à mediocridade vocal, havia um excelente tenor.
Quatro notas
- O programa de sala do concerto, disponibilizado pelo Municipal em PDF, trouxe o currículo de Gabriele de Paula em branco, enquanto todos os demais solistas tiveram os seus currículos publicados. Foi uma deselegância com a artista.
- Ainda na parte dos currículos do programa de sala, a voz de Daniel Umbelino foi classificada como de mezzosoprano (???), da mesma forma que a de Gabriele de Paula – que, no entanto, aparece classificada como soprano nos créditos do Coro da casa…
- Em seu texto no programa de sala, a secretária de Cultura do estado do Rio de Janeiro, Danielle Ribeiro Barros, classificou o concerto que seria dado como “uma apresentação histórica”. É perturbador verificar de maneira tão cristalina que a mulher que deveria zelar pela Cultura do estado tem uma noção bastante distorcida sobre o que é ou não “histórico”.
- Na primeira parte do concerto, uma criança que eu não vi bem, mas que me pareceu ser de colo, chorou algumas vezes. No intervalo, um funcionário ligado à diretoria do TMRJ tomou a iniciativa de se dirigir à mãe da criança. Não sei o que ele lhe disse inicialmente, mas houve acusações mútuas de falta de educação. Entendo que, como funcionário da diretoria da casa, sua atitude deveria ter sido mais neutra, polida, empática, ou até melhor: ele poderia ter solicitado que algum funcionário do setor de recepção se dirigisse à mãe para lhe prestar atendimento e verificar se ela estava precisando de alguma coisa. Além disso, era uma apresentação do Municipal ao Meio-Dia, projeto que se realiza em horário alternativo, com preços módicos e que tem entre os seus objetivos atrair à casa um público novo. Ao contrário de um concerto regular, entendo que nessas ocasiões a tolerância pode (e deve) ser maior em relação a esse tipo de situação. Se a mãe pretende voltar um dia ao TMRJ depois do tratamento que recebeu, não se sabe.
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Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, o tenor Daniel Umbelino).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Ufa! Fiz bem em ficar em casa e não asistir essa “Gala Lírica”.
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