Um desastre vocal no Rio de Janeiro

Don Giovanni (1787)
Ópera em dois atos

Música: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Libreto: Lorenzo da Ponte (1749-1838)
Bases do libreto: outro libreto então já existente, escrito por Giovanni Bertati para uma ópera de Giuseppe Gazzaniga, e a tragicomédia Dom Juan ou le Festin de Pierre, de Molière. O libreto de Bertati foi, por sua vez, baseado na peça teatral El Burlador de Sevilla Y Convidado de Piedra, de Tirso de Molina.

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 16 de julho de 2022

Direção musical: Tobias Volkmann
Direção cênica: André Heller-Lopes

Don Giovanni: Homero Pérez-Miranda, baixo-barítono
Leporello: Homero Velho, barítono
Donna Anna: Ludmilla Bauerfeldt, soprano
Donna Elvira: Claudia Riccitelli, soprano
Don Ottavio: Fernando Portari, tenor
Zerlina: Sophia Dornellas, soprano
Masetto: Murilo Neves, baixo
Commendatore: Pedro Olivero, baixo

Orquestra Sinfônica, Coro e Ballet do Theatro Municipal
Alunos do Curso Técnico de Dança da EEDMO

Don Giovanni, ópera em dois atos de Wolfgang Amadeus Mozart sobre libreto de Lorenzo da Ponte, é a primeira produção lírica completa a subir ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 2022. “Giovanni”, em italiano, é o nome correspondente ao espanhol “Juan”. A obra trata, portanto, do célebre sedutor espanhol que, por aqui, conhecemos como “Don Juan”.

Quando a ópera começa, Don Giovanni está fugindo dos aposentos de Donna Anna, onde havia tentado, sem sucesso, estuprá-la. Pai da jovem, o Comendador duela com Giovanni até ser morto. Depois de várias peripécias em que, curiosamente, o sedutor não consegue levar a cabo nenhuma das suas tentativas, o arco se fecha novamente com o Comendador, que volta (em forma de estátua) para acertar as contas com o “burlador”.

Obra-prima maiúscula, Don Giovanni deve sua fama e seu fascínio não apenas à música brilhante e maravilhosamente eficaz de Mozart, mas também às amplas possibilidades de leituras que suscita. A ambiguidade está constantemente presente, oscilando entre emoção e razão, desejo sexual e amor, comédia e drama. A mesma obra que, em seu desenvolvimento, louva a liberdade e é bastante provocadora, tem um final restaurador da ordem.

Em pleno 2022, é natural que saltem aos olhos algumas questões que emanam da obra, como a impunidade dos poderosos (é necessária uma intervenção sobrenatural para que Giovanni seja punido), e a diferença de classes. Esta última questão é bem expressa na relação entre Don Giovanni e Leporello (e em como o primeiro trata o segundo), e também na forma como o “nobre” vê e é visto pelos camponeses. Em sua tentativa de convencer Zerlina sobre as suas “boas” intenções, ele chega a dizer, em tradução livre: “A nobreza tem a honestidade estampada no rosto” – frase que lembra muito o que todos (repito, todos) os “nossos” políticos gostam de dizer sobre si mesmos às vésperas das eleições.

Nada, porém, é mais atual que o alerta para a maneira como o personagem-título trata as mulheres, que para ele não passam de simples objetos para a sua satisfação. Em uma época na qual as denúncias de assédio e abuso sexuais explodem nas sociedades ocidentais, com as vítimas muitas vezes sendo chamadas de “loucas” por seus algozes, os versos com que Don Giovanni se defende das acusações de Donna Elvira, diante de Donna Anna e Don Ottavio, soam como se tivessem sido escritos ontem, e não no fim do século XVIII: “A pobre garota / É louca, meus amigos; / Deixem-me com ela, / Talvez se acalmará”.

Encenação esteticamente bela, mas não isenta de problemas

A atual produção do TMRJ é assinada pelo encenador André Heller-Lopes, que concebeu com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo uma ambientação inspirada na Catedral de Sevilha e, muito provavelmente, também na obra de Molière (Dom Juan ou le Festin de Pierre). O efeito visual, alcançado por meio de um “labirinto” de cortinas, é belíssimo, especialmente em termos de perspectiva.

A luz de Fabio Retti é essencial para realçar as diferentes cenas, sobretudo no segundo ato, em geral mais escuro que o primeiro. Os figurinos de Marcelo Marques são corretíssimos e não dispensam o luxo, enquanto a coreografia de Bruno Fernandes dialoga muito bem com a concepção geral proposta para a montagem.

A beleza visual, no entanto, não esconde alguns problemas mal resolvidos pelo encenador em sua tentativa de reforçar a crítica sobre a forma como as mulheres são tradadas pela chamada “masculinidade tóxica”. O primeiríssimo é o palco aberto, mesma questão levantada durante a recente produção de Aida no Theatro Municipal de São Paulo. Com um cenário formado apenas por cortinas, e com as coxias totalmente abertas, não há absolutamente nada no enorme palco do Municipal que ajude a projetar as vozes dos solistas. Some-se a isso um elenco assustadoramente mal escalado (leia a respeito no subtítulo final desta resenha), e é fácil concluir que a opção por esse tipo de ambientação/material (cortinas) se mostra bastante questionável. Talvez possa funcionar em um palco menor, ou em um teatro com acústica mais amigável que a do TMRJ.

O segundo problema se vê na direção de atores. Ainda que no geral funcione muito bem, há certa incongruência quando o encenador faz com que Don Ottavio tenha atitudes bruscas em relação a Donna Anna. Ora, não apenas o libreto de da Ponte, mas sobretudo a partitura de Mozart estabelece de forma cristalina que Don Ottavio é o oposto perfeito de Don Giovanni. Ele é um nobre de sentimentos e atitudes nobres. Quando o encenador faz com que esse personagem tenha atitudes bruscas em relação à sua amada, demonstra não ter entendido muito bem a partitura, ou então que, mesmo a entendendo, preferiu ignorá-la.

O terceiro problema é a “estátua” que não é estátua: se na cena do cemitério já ficou difícil defender a opção por uma pequena moldura de cabeça, na cena do banquete na casa de Don Giovanni a opção por uma grande urna carregada por figurantes foi ainda mais estranha e pouco convincente.

O quarto problema ocorre também na cena do banquete, quando o encenador opta por um banquete sexual, em vez de outro tradicional. Não haveria qualquer questionamento se os dois banquetes (sexual e tradicional) fossem apresentados juntos, mas ao abrir mão do segundo, cria-se um confronto com o libreto: os personagens dizem que estão fazendo uma coisa, mas na verdade fazem outra.

Na cena derradeira, que restaura a ordem após o desaparecimento de Don Giovanni, ocorrem duas ações que podem causar polêmica. A primeira trata-se de incluir nas legendas informações sobre feminicídio no Brasil e sugerir a impunidade, através de um ponto de interrogação acrescentado a uma frase do libreto. Aqui, a ação pareceu-me mal ajustada, porque Don Giovanni, embora mate o pai de Donna Anna, não é apresentado na ópera como um assassino de mulheres, mas sim como um abusador. Entendo que teria feito mais sentido, portanto, inserir dados sobre estupros no Brasil – e aqui não estou discutindo se um crime é mais ou menos importante que o outro, mas apenas qual deles é mais pertinente ao tema da ópera. Além disso, incluir informações nas legendas diferentes daquilo que está sendo cantado pode desviar/dividir a atenção do público, deixando a obra em segundo plano. É correto? O leitor decide.

E a segunda ação que ocorre na cena final é uma apropriação política, ao apresentar, no apagar das luzes, o personagem-título, por trás das cortinas do cenário, fazendo com as duas mãos o gesto da “arminha”, em uma evidente crítica a Jair Bolsonaro. Por ser no apagar das luzes, claro, acaba gerando um efeito catártico em uma plateia composta, em sua maioria, por gente que sabe pensar, e os gritos de “fora Bolsonaro” dominaram os primeiros aplausos. Ainda assim, cabe perguntar: é correto? Novamente, o leitor decide, mas é bom lembrar que essa pergunta é da mesma lavra de: é correto nos dias atuais alterar palavras de libretos que foram escritos séculos atrás? Para quem ainda não sabe, esta é a última “moda” no meio da ópera. A resposta aqui também cabe a cada um, mas uma coisa é evidente: se moda servisse realmente para alguma coisa, não seria alterada à toda hora.

Desastre vocal

Em primeiro plano, Murilo Neves, Ludmilla Bauerfeldt, Claudia Riccitelli, Sophia Dornellas, Homero Velho, Homero Pérez-Miranda e Fernando Portari (foto de Daniel A. Rodrigues)

Mozart talvez seja o compositor que mais deixa os solistas das suas óperas “nus” no palco. Nas obras do gênio austríaco, nenhum truque ou artimanha é capaz de camuflar deficiências ou inadequações vocais. Assim, nada, absolutamente nada chama mais a atenção neste Don Giovanni do TMRJ que a performance vocal questionável dos seus oito solistas, que não se mostraram à altura das suas respectivas partes. Os oito podem ser divididos em quatro subgrupos, de acordo com os seus rendimentos na récita de 16 de julho.

Os baixos Murilo Neves e Pedro Olivero interpretaram, respectivamente, Masetto e o Comendador sem qualquer brilho vocal. Suas performances “duras”, sem qualquer maleabilidade ou riqueza de nuances, demonstraram-se, para dizer o mínimo, enfadonhas – e neste aspecto, sobretudo Neves teve mais oportunidades ao longo da ópera, mas não soube – ou, o que é mais provável, não teve condições vocais para – aproveitar nenhuma delas. Simplesmente nenhuma.

A soprano Claudia Riccitelli e o tenor Fernando Portari ofereceram performances constrangedoras, cada qual com os seus motivos. Portari cantou a parte de Don Ottavio no começo da sua carreira com sucesso, mas de lá para cá a sua voz mudou, tornou-se mais pesada, como demonstra o repertório ao qual o artista tem se dedicado nos últimos anos. Hoje, essa voz é totalmente inadequada para cantar papeis mozartianos, como bem demonstrou a sua inabilidade para abordar as coloraturas de Don Ottavio no último sábado. Para citar apenas os dois exemplos mais evidentes, a ária Dalla sua pace foi cantada com extremo mau gosto musical; e na sua outra ária, Il mio tesoro intanto, o peso da voz tirou todo o brilho dessa maravilhosa passagem, e o tenor inseriu mais de uma vez “quebras” em notas que deveriam ser longamente sustentadas.

É triste dizer isso, mas a impressão que se tira da atuação de Claudia Riccitelli como Donna Elvira é que a soprano simplesmente perdeu a voz. Nas últimas vezes em que a ouvi, e isso já faz algum tempo, era nítido que a sua voz já estava longe do auge, mas nada se compara ao que ouvi agora no TMRJ: severas oscilações na qualidade da emissão, desafinação e, em respeito à sua carreira, é melhor parar por aqui. A seu favor, registre-se a boa atuação cênica. Entre a pré-estreia do dia 14 (no aniversário do Municipal) e a estreia oficial do dia 16, a sua ária Mi tradì quell’alma ingrata foi cortada da apresentação. Pode-se entender os motivos, mas cabe questionar: por que uma das árias de Fernando Portari não foi cortada também, considerando que os dois artistas apresentaram performances semelhantes? Não se sabe. Riccitelli recebeu muitos aplausos no fim da apresentação, e os recebeu nitidamente emocionada, chorando. Valem pelos méritos da sua carreira.

O baixo-barítono cubano Homero Pérez-Miranda (Don Giovanni) e o barítono Homero Velho (Leporello) formam o terceiro subgrupo de solistas, e tiveram atuações muito parecidas nas qualidades e nas deficiências. Ambos são excelentes atores e as suas performances foram muito boas sob o aspecto cênico, mas estamos falando de ópera, e vocalmente eles se mostraram também totalmente inadequados. O cubano é dono de um timbre que não se destaca pela beleza, e demonstrou enorme dificuldade com as passagens de maior agilidade. Em Fin ch’han dal vino, por exemplo, comeu algumas palavras. O brasileiro seguiu na mesma linha, cantando uma insossa “ária do catálogo”, e, tal qual seu colega cubano, quase sumindo nas passagens de maior agilidade, com um agravante: é um barítono cantando uma parte que, normalmente, é confiada a uma voz mais grave (baixo ou baixo-barítono) que detém a técnica de agilidade. Não deve ser por acaso.

No último subgrupo, as vozes que, mesmo deixando a desejar, foram as “menos piores” de uma noite em que ninguém mereceu ser chamado de “melhor”. A soprano Ludmilla Bauerfeldt interpretou Donna Anna com o maior nível de correção da récita, ainda que sem o brilho das suas últimas apresentações que pude presenciar. E a também soprano Sophia Dornellas demonstrou como Zerlina ter um material vocal bastante promissor, mas que ainda precisa de grande lapidação técnica para alcançar todo o seu potencial. Sua performance geral foi razoável, mas, na ária do primeiro ato, Batti, batti, oh bel Masetto, sua voz ficou bem pequenininha, quase sumindo.

Os conjuntos do Theatro Municipal, recentemente reforçados através de uma seleção pública (não confundir com concurso público), foram a salvação da noite. O Coro, preparado por Jésus Figueiredo, esteve muito bem nas suas poucas intervenções; e o Ballet, com a participação de alunos da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, cumpriram bem a proposta da encenação. A Orquestra Sinfônica da casa ofereceu uma récita regular. Se não chegou exatamente a brilhar, também não fez feio.

Coube a Tobias Volkmann conduzir esse Don Giovanni para lá de problemático. Como regente, pode-se louvá-lo pelo bom trabalho integrando o Coro e a Orquestra, mas ao mesmo tempo ele não fez nenhum milagre para as vozes dos solistas se integrarem de maneira minimamente ajustada e equilibrada nos números de conjunto – praticamente todos bem burocráticos. Já como diretor musical do espetáculo, o trabalho de Volkmann ficou devendo, como se verá no subtítulo final desta resenha, logo abaixo. Afinal, em última instância, é o regente quem responde, ao lado do diretor artístico, pela qualidade musical de uma produção de ópera.

31 anos depois, um elenco mal escalado

Don Giovanni, uma das óperas mais geniais da história, levou 31 anos para ser novamente encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Isso não é nenhuma novidade: aquela que deveria ser a casa de ópera do Rio de Janeiro apresenta produções líricas de maneira bissexta. Neste ano, por exemplo, serão apenas duas com encenação completa (e olhe lá!), enquanto a média de produções do ano 2000 para cá é de três por temporada (com o desconto dos dois anos de pandemia, claro). Assim, a quantidade de títulos líricos importantes que não são apresentados no Rio há décadas não é pequena.

E agora, quando finalmente o público carioca se reencontra com esse monumento musical de Mozart, é dessa forma, com um elenco muito mal escalado. Vejamos: um tenor que não tem a voz adequada para a sua parte; uma soprano ainda muito verde, que parece ter saído da escola anteontem; outra que, aparentemente, não tem no momento condições vocais de cantar profissionalmente; um barítono e um baixo-barítono que não possuem uma boa técnica de agilidade escalados para partes que exigem essa técnica; dois baixos donos de vozes sabidamente pouco expressivas e de técnica questionável. Ou seja, erro em cima de erro.

Algumas questões se tornam obrigatórias: quem escalou o elenco? Foi, isoladamente, o diretor artístico do TMRJ, Eric Herrero? O regente e o diretor cênico da produção foram ouvidos e opinaram na escalação? Se sim, as suas ponderações foram consideradas? Como será escalado o elenco da ópera O Barbeiro de Sevilha, prevista para novembro deste ano? Do mesmo jeito?

É sabido, no meio lírico brasileiro, que o diretor cênico de Don Giovanni tem por hábito opinar bastante sobre os elencos das produções que dirige, mas, ao mesmo tempo, como eu disse acima, quem responde em última instância sobre a qualidade musical de uma produção lírica é o regente e o diretor artístico. Além disso, também podemos cobrar pelo menos dos cantores mais experientes do elenco: por que aceitaram os convites que lhes foram feitos? Por acaso não sabiam que não poderiam entregar um trabalho de alto nível?

Essas questões precisam ser respondidas. Ou melhor, precisariam, uma vez que é pouco provável que alguém se dê ao trabalho de respondê-las. Da mesma forma, a imprensa cultural brasileira tem por hábito deixar esse tipo de coisa para lá: não cobra, não questiona e, muitas vezes, finge não ver e não ouvir. E, mesmo quando cobra, o faz praticamente pedindo desculpas por tê-lo feito.

Por fim, uma observação geral sobre a temporada 2022 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro: o site da instituição, que deveria divulgar essa programação, somente o faz poucos dias antes da estreia de cada produção. Por que o site do TMRJ na internet não traz a agenda própria da casa para o restante do ano, pelo menos com as datas e os horários dos espetáculos? Seus pares de São Paulo, Theatro Municipal e Theatro São Pedro, estão desde o início do ano não apenas divulgando a sua programação até dezembro, mas também vendendo ingressos para as suas produções. Como sempre, no Rio de Janeiro tudo fica para depois.

Ludmilla Bauerfeldt e Homero Pérez-Miranda (foto de Alexandre Brum/Agência Enquadrar)

Foto do post: Daniel A. Rodrigues.

14 comentários

  1. Os pobres cantores sempre sofrendo com a facilidade que é criticá-los. É verdade que a orquestra ofereceu uma boa récita, mas uma crítica – que é tão ácida com cantores, a ponto de dizer que uma interpretação foi “insossa” e que a voz de outra cantora “ficou bem pequenininha, quase sumindo”, sem apontar que, justamente nessas duas árias, a orquestra não estava tocando junto entre si – não me parece equilibrada. Talvez seja necessário não ser surdo além de ser crítico.

    1. Prezado Ramon, por favor, não se preocupe com a facilidade de se criticar os cantores, por três motivos: primeiro porque eles não são “pobres”, no sentido de “coitados”, como você sugere; segundo porque eles continuarão sendo escalados e, por vezes, mal escalados, já que é assim que a coisa funciona na meio lírico brasileiro, e não será uma resenha que mudará isso; e, por último, mas não menos importante, estamos falando de cantores profissionais que aceitaram convites para cantar uma ópera de Mozart – eles devem (ou deveriam) estar 100% seguros das suas capacidades de executar vocalmente as suas partes de maneira minimamente satisfatória, tendo ainda ciência de que, em caso contrário, isso poderia ser motivo de avaliações não exatamente positivas. Por fim, sugiro que você leia o comentário que deixei abaixo para o maestro Colarusso, que complementa este aqui.

      1. Antes de chegarmos a discutir escalação de elenco como se estivéssemos na estrutura social e econômica do Metropolitano ou do Royal Opera House – e podemos até fazê-lo, porque temos cantores com nível pra cantar nessas casas – gostaria de saber se o senhor ouviu ou não que a orquestra teve um pequeno problema de desencontro que pode ter influenciado nas árias a que o senhor reservou as críticas mais ácidas? E se ouviu, parece-lhe justo tamanha acidez aos cantores sem apontar um problema – embora aceitável no calor da performance – da orquestra?

        Se a crítica é tão exigente, se se pretende tão séria e dura, por que escolhe alvos de forma tão desequilibrada? Fica para a decisão dos leitores, não é mesmo?

        1. Vamos lá, Ramon, então o que você acha, já que, aparentemente, você também estava no teatro? Que foi uma apresentação excepcional e acima da média das produções nacionais? Que este seria um elenco pronto e ajustado para cantar “Don Giovanni” nos dois teatros estrangeiros que você citou? Como você acha que esse elenco seria recebido nesses locais? Com pedidos de bis, talvez?

          Me perdoe, mas não concordo em absoluto com que devamos discutir outra coisa antes de discutirmos a escalação do elenco. Ora, quando se decide apresentar determinada ópera, a primeira coisa em que se tem que pensar é em um elenco adequado. Afinal, estamos falando de ópera, e não me parece que exista absolutamente nada mais importante em uma ópera do que as vozes que extraem a obra da partitura e, claro, o regente, que vai organizar e dar unicidade à interpretação musical. Então, sim, temos que discutir escalação de elenco, porque muito provavelmente os problemas deste “Don Giovanni” começaram lá atrás, na escalação. Fosse essa escalação realizada com mais cuidado, e visando a adequação das vozes às exigências da partitura, também muito provavelmente não estaríamos aqui agora debatendo sobre isso.

          Partindo dessa premissa, vêm outras questões: por que cantores experientes não declinaram do convite? Por acaso não tinham consciência de que não conseguiriam apresentar um trabalho minimamente qualificado e de acordo com o estilo da obra? Por que colocar uma jovem cantora (claramente bastante promissora) para fazer a sua estreia em um palco dito importante em uma ópera em que há somente personagens principais? Se ainda fosse o caso de termos dois elencos, e ela estivesse no segundo, seria muito mais compreensível. Então, há erros primários, erros que aconteceram antes de os ensaios começarem, erros que ocorreram muito antes dos desencontros que você cita, seja de quem escalou, seja de alguns dos cantores que aceitaram convites que não deveriam ter sido aceitos porque, como profissionais, eles deveriam saber o que podem e o que não podem entregar.

          Tendo esclarecido esses pontos, para mim primordiais quando um teatro decide montar qualquer ópera (e algo semelhante, mas não tão grave quanto no Rio, aconteceu recentemente em São Paulo na produção de “Aida”), respondo enfim a sua pergunta: sim, eu percebi o “pequeno problema de desencontro” que você cita em algumas passagens, da mesma forma que, tal qual você, considerei que, no geral, a orquestra “ofereceu uma boa récita”. Os desencontros que observei agora no TMRJ não são, por exemplo, tão graves quanto os que observo quase sempre nas óperas do TMSP. Apesar do referido problema, em meu entendimento ele não foi primordial para o desempenho geral dos cantores, mas sim as inadequações mencionadas em minha resenha, seja por má escalação, seja por deficiências técnicas. Se estivéssemos diante de um elenco com vozes mais bem preparadas tecnicamente (no caso de alguns) e mais adequadas estilisticamente à obra (no caso de outros), é muito provável que, mesmo havendo desencontros, as vozes “correriam” de maneira mais satisfatória, chegando em muito melhores condições ao ouvinte.

          Um exemplo perfeito disso é o desempenho da mezzosoprano do primeiro elenco na referida produção de “Aida” no TMSP (vide minha resenha a respeito): lá, ela sofreu com desencontros mais graves que os observados no TMRJ e, pelo menos no meu entendimento, não tinha exatamente a voz mais adequada à parte de Amneris, mas o seu domínio técnico é tão sólido, tão sólido, que mesmo assim ela conseguiu se destacar muito positivamente. E o próprio desempenho da intérprete de Donna Anna neste Don Giovanni pode servir de exemplo: como escrevi, ela não esteve tão bem quanto em outras oportunidades em que pude apreciar o seu trabalho (no Rio e em São Paulo), mas, dentre os cantores experientes do elenco, foi a que mais se destacou, exatamente por ter apresentado no dia 16 um domínio técnico superior àqueles dos seus pares – e aqui concordo que isso talvez não tenha ficado tão claro na resenha.

          Muito importante: os cantores não foram, como você sugere, escolhidos como “alvo”. É incorreto da sua parte dizer isso, quando a resenha também faz vários apontamentos sobre a encenação e opções do encenador e do cenógrafo, além de cobranças, em sua parte final, ao diretor artístico do teatro e ao regente, apontados claramente (e em duas passagens do texto!) como responsáveis finais pelo desempenho musical de uma produção lírica. Não há, portanto, apontamentos exclusivos aos cantores, da mesma forma que os demais apontamentos a outros intervenientes passaram longe de serem brandos. Não podemos perder de vista, porém, que são eles, os cantores solistas, o que há de mais importante em uma produção de ópera. São eles que arrebatam ou decepcionam plateias; são eles, especialmente, que despertam o fascínio dos amantes do gênero e que, muitas vezes, salvam encenações mal concebidas. Exatamente por isso, a escalação deve ser pensada com extremo cuidado. E se não for possível escalar adequadamente, seja por que motivo for, a solução pode estar na simples troca do título por outro mais adequado ao elenco disponível – isso, claro, lá atrás, quando a concepção da programação ainda estava sendo definida.

          Por fim, o que fiz, e faço constantemente em minhas resenhas (basta lê-las), é detalhar o desempenho dos solistas principais. Ao contrário de colegas que são extremamente suscintos (direito deles, por preferência ou limitação de espaço editorial), não escrevo resenhas com meia dúzia de parágrafos. Basta conferi-las, pois quando o elogio vem, ele também costuma vir bastante detalhado. Se o desempenho geral do elenco de “Don Giovanni” foi abaixo das expectativas, e a resenha apenas detalha esse desempenho, meu caro, sugiro que você procure encontrar responsáveis em outro lugar.

  2. Sem dúvida este diretor de cena deu pitaco no elenco. Questões de afinidade política. Uma pena Portari se sujeitar a cantar algo que não é mais para ele. Já foi. Impossível cantar Peter Grimes e Don Otávio. O que me chama mais a atenção são essas conotações político/partidárias nas legendas e alusões ao presidente. Coisa de gente “sem eira nem beira”.

    1. Maestro, entendo ser natural que o regente e o encenador sejam ouvidos em relação à escalação de um elenco, auxiliando o diretor artístico, desde, claro, que suas opiniões e sugestões sejam pertinentes. Os teatros, no entanto e por motivos óbvios, não costumam divulgar esses pormenores. Outra possibilidade é que outros cantores, talvez mais adequados às partes de determinada ópera, estejam com outros compromissos para o mesmo período. É o tipo de coisa que acontece, principalmente quando a casa demora mais em relação às suas pares para montar e divulgar a sua programação. Entendo, porém, que quem tem o compromisso de avaliar deve fazê-lo de acordo com o que vê e com o que ouve, nada além disso, procurando ser isento e justo. Essa justeza, por vezes, pode ser expressa de forma mais dura, principalmente quando se está diante de alguns absurdos injustificáveis em termos de escalação. Para encerrar: quando a voz que mais se destaca (ou, o que seria mais correto no caso em questão, quando a voz que menos decepciona) em uma produção de ópera é a da cantora menos experiente em cena, como diriam os italianos, c’è qualcosa che non va. Quanto às “conotações político/partidárias” e às “alusões ao presidente” que o senhor cita, e considerando o momento que o país vive, até as considero entendíveis, mesmo que, ao mesmo tempo, questionáveis.

  3. Sobre a crítica “Um desastre vocal no Rio de Janeiro”, gostaria de salientar dois aspectos. Em primeiro lugar, para nós musicistas, especialmente pianistas, o período denominado Classicismo apresenta uma série de complexidades interpretativas. Uma delas diz respeito à busca por uma sonoridade que a todo instante parece estar descoberta, desprovida de massas sonoras que ocasionalmente poderiam retirar do ouvinte as nuances próprias das melodias propostas. Em Mozart não seria diferente, sobretudo na execução vocal do elenco que precisa atentar absolutamente aos efeitos estilísticos desejados. Um segundo ponto importante ressaltado na crítica refere-se à imprensa cultural brasileira (?). Existe, de fato? Se existir, acredito haver pouquíssimas pessoas preparadas ao exercício da função na referida imprensa! Com isso, muitas vezes temos de nos conformar com récitas operísticas raras no Rio de Janeiro, sendo raras também as qualidades ofertadas ao público!

  4. Li a crítica e comentários e creio que vale uma ressalva acerca da OSM no quesito precisão, mencionado acima: a Ópera Aida foi realizada às custas de muito esforço de todos os integrantes de coro, orquestra e elenco em geral, duramente atingidos pelo surto de inverno de COVID-19, que obrigou à substituição diária de instrumentistas, cantores do Coro e solistas com testagem positiva. Com isso, natural que a precisão tenha sido afetada.

    1. Obrigado por deixar aqui seu comentário, Tania. No caso específico da OSM durante a produção de “Aida”, as substituições que você menciona certamente tiveram um peso considerável – isso, claro, além do fato de a orquestra ter como titular um regente que nunca se destacou na regência de óperas.

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