Um Mozart bem cantado e bem encenado

Belíssima encenação e ótimas vozes garantem o sucesso da montagem de “O Rapto do Serralho” no Theatro São Pedro.

Die Entführung aus dem Serail (O Rapto do Serralho), 1782
Ópera em três atos

Música: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Libreto: Johann Gottlieb Stephanie (1741-1800)
Base do libreto: Belmont und Constanze, libreto de Christoph Friedrich Bretzner (1748-1807)

Theatro São Pedro-SP

14 de abril de 2023

Direção musical: Cláudio Cruz
Direção cênica: Jorge Takla e Ronaldo Zero

Elenco:
Konstanze: Ludmilla Bauerfeldt, soprano
Belmonte: Daniel Umbelino, tenor
Blonde: Ana Carolina Coutinho, soprano
Pedrillo: Jean William, tenor
Osmin: Luiz-Ottavio Faria, baixo
Paxá Selim: Fred Silveira (papel falado)

Orquestra do Theatro São Pedro

Curioso, muito curioso: num intervalo de apenas 13 dias, aconteceram em São Paulo a última récita de Così Fan Tutte (Assim Fazem Todas) no Theatro Municipal e a estreia de O Rapto do Serralho no Theatro São Pedro – duas obras do mesmo compositor (Mozart) que, dentre outros temas e de forma contrastante, abordam a fidelidade das mulheres. E o mais curioso de tudo é que isso certamente só aconteceu porque os dois teatros não combinaram nada.

Se, em Così, as fidelidades de Fiordiligi e Dorabella são testadas à enésima potência, até que as suas resistências sejam vencidas, no Serralho, Konstanze e Blonde se mantêm firmes o tempo todo. Obviamente, são obras criadas em períodos distintos da carreira de Mozart, com a parceria de libretistas diferentes, que por sua vez tinham intenções diferentes, mas não deixa de ser interessante esse contraste entre elas, sobretudo quando as observamos com os olhos de hoje, uma depois da outra, seja em que ordem for.

Die Entführung aus dem Serail (O Rapto do Serralho) é um Singspiel (gênero teatral alemão que mescla números musicais com diálogos falados) em três atos de Wolfgang Amadeus Mozart, sobre libreto de Johann Gottlieb Stephanie, com base em outro libreto de Christoph Friedrich Bretzner.

A peça conta a história do resgate de Konstanze (por acaso o mesmo nome da então futura esposa de Mozart) e dos criados Blonde e Pedrillo por parte de Belmonte, amado da protagonista. Os três primeiros foram capturados por piratas e vendidos como escravos ao Paxá Selim, que os mantém cativos em seu serralho (daí o título) – uma espécie de palácio turco, onde normalmente senhores importantes mantinham um harém. O serralho de Selim é severamente vigiado pelo fiel Osmin, sem dúvida o personagem mais bem trabalhado da obra sob o aspecto psicológico. A ópera começa com a chegada de Belmonte ao palácio.

A obra, estreada em Viena em julho de 1782, é considerada a primeira grande ópera cômica em estilo alemão, e antecede as três principais obras-primas cômicas do gênio de Salzburg: As Bodas de Fígaro, Don Giovanni e Così Fan Tutte. Sob o aspecto musical, possui grande valor, e o compositor alterna momentos de alegria e melancolia, bem como contrasta o canto mais sério de Belmonte e Konstanze àquele mais alegre e popular de Blonde e Pedrillo, passando pela linha mais caricata e (por que não?) bufa de Osmin. Muito bem delineada também é a diferença entre culturas, retratada especialmente no dueto do segundo ato entre Osmin e Blonde.

Cenários de ópera

Luiz-Ottavio Faria e Ana Carolina Coutinho

A produção que acaba de estrear no Theatro São Pedro, onde fica em cartaz até o dia 30 de abril, tem concepção e encenação de Jorge Takla. O diretor transporta a trama da Turquia para Paris, e a posiciona em tempo presente. Em vez de um palácio, temos um hotel de luxo (inspirado no Ritz), utilizado também como residência pelo seu dono, o Paxá Selim. Por sua vez, o assédio dos paparazzi ao “casal” Selim e Konstanze tem como inspiração o assédio sofrido por outro casal que estava no Ritz antes de um fim trágico: o egípcio Dodi Al-Fayed e a inglesa Diana Spencer, Princesa de Gales. Não por coincidência, o pai de Dodi é o dono do Ritz.

Diante desse aggiornamento proposto pelo encenador, é impossível não pensar também em ditaduras, como as de alguns países árabes, que procuram “suavizar” a sua imagem por meio da compra de instituições populares (como times de futebol, por exemplo) em países europeus.

Praticamente tudo funciona muito bem no palco do São Pedro, pois a essência da obra é mantida. Os trechos falados (em português) são reduzidos ao essencial, e a sua tradução (de Irineu Franco Perpetuo) flerta com a coloquialidade da linguagem atual. Dentre os números musicais, o único cortado foi a ária de Pedrillo no ato final.

Duas ressalvas, no entanto, são obrigatórias, ainda que passem bem longe de tirar o brilho do espetáculo. A gritaria dos seguranças em perseguição aos paparazzi no trecho final da abertura da ópera, além de desnecessária (bastariam apenas gestos), abafa consideravelmente o som da orquestra. A segunda ressalva é quanto à divisão do segundo ato da ópera em duas partes, para que se pudesse inserir nesse ponto o único intervalo da apresentação. Essa “quebra” faz com que o fim da primeira parte reste pouco eficiente dramaticamente.

A direção de cena, realizada a quatro mãos por Jorge Takla e Ronaldo Zero, obtém excelente rendimento do elenco, incluídos aí os solistas e também o coro – que, durante a apresentação, interpreta seguranças do Paxá, funcionários e hóspedes do hotel.

Ludmilla Bauerfeldt e Fred Silveira

Um grande mérito desta montagem são os cenários de Nicolás Boni, que conseguem ser, ao mesmo tempo, funcionais e belíssimos! Eles representam muito bem três ambientes ao longo ópera: o saguão principal do hotel, com sofás, elevadores, recepção e as portas de entrada ao fundo; o quarto de Konstanze, separado por uma porta do corredor dos elevadores, e com a passagem para uma varanda ao fundo; além do exterior do hotel.

(Aqui, é necessário abrir um aparte. Esse talentosíssimo profissional argentino, que há alguns anos colabora com as produções brasileiras, destaca-se sempre por criar o que eu gosto de chamar de “cenários de ópera de verdade”. As criações de Boni sempre são completas e efetivamente criam ambientes, dentre outros motivos porque ele sabe que isso é importante para ajudar os cantores a projetar as suas vozes. Em seus trabalhos, nunca vemos apenas sugestões de ambientes por meio da aglomeração de adereços de cena, como costuma acontecer em muitas produções brasileiras.

Não à toa, o talento de Nicolás Boni começa a ser percebido na Europa, e ele tem atuado em teatros da Eslovênia, da Itália e até de Mônaco – neste último, a Opéra de Monte-Carlo, a diretora artística é ninguém menos que Cecilia Bartoli. E serão de Boni também os cenários da montagem de Madama Butterfly, que a encenadora brasileira Livia Sabag dirigirá em novembro no Teatro Colón, de Buenos Aires).

Aparte feito, prossigamos. Completam muito bem essa encenação de O Rapto do Serralho os excelentes figurinos de Fábio Namatame (com destaque para aqueles de Konstanze) e o correto desenho de luz de Ney Bonfante.

Regência eficiente e equilíbrio vocal

Jean William, Ana C. Coutinho, Ludmilla Bauerfeldt e Daniel Umbelino

Muito bem conduzida por Cláudio Cruz, a Orquestra do Theatro São Pedro apresentou uma bela sonoridade ao longo da récita de estreia, em 14 de abril, com destaque especial para as cordas. O regente demonstrou ter a ópera nas mãos, e conduziu toda a récita com grande segurança. Profissional sério e discreto, Cruz “fala” através da arte, ao contrário de certos regentes que dão mais atenção à marquetagem que ao trabalho.

O coro, formado por Higla Noel, Maria Rubio, Tati Reis, Fernanda Nagashima, Larissa Guimarães, Luiza Girinos, Bruno Costa, Juan Becerra, Rodrigo Morales, Athos Bueno, Pedro Côrtes e Renan Messina, tem apenas duas intervenções vocais ao longo da ópera e se saiu muito bem.

O ator e cantor Fred Silveira, que possui grande experiência em musicais, interpretou com ótima presença o Paxá Selim (parte falada). Alternando-se entre momentos mais ou menos autoritários, Silveira compôs muito bem a figura desse homem bajulado pelos empregados, assediado pelos paparazzi e rejeitado por Konstanze.

O tenor Jean William deu vida ao jovem criado Pedrillo com grande desenvoltura e bom domínio do palco. Exibiu uma voz clara e bem colocada, cantou bem a sua ária Frisch zum Kampfe, frisch zum Streite!, além de contribuir nos números de conjunto, como no divertido terceto do fim do primeiro ato junto a Belmonte e Osmin, Marsch! Trollt euch fort!

Revezando a parte de Blonde ao longo das récitas com Raquel Paulin, a até então para mim desconhecida jovem soprano Ana Carolina Coutinho revelou-se uma bela joia. Ex-integrante da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, Coutinho migrou para a Alemanha para concluir os seus estudos, e fez agora a sua estreia profissional no Brasil, exibindo uma bela voz mozartiana. Aproveitou bem as suas árias, Durch Zärtlichkeit und Schmeicheln e Leb wohl, guter Pedrillo!, e também o dueto com Osmin, Ich gehe, doch rate ich dir.

Daniel Umbelino, dono de uma voz privilegiada de tenor lírico-ligeiro e de uma técnica apurada, foi um Belmonte vocalmente convincente, e interpretou muito bem todas as suas quatro árias, especialmente Wenn der Freude Tränen fließen, quase no fim do segundo ato. O artista ainda se destacou nos números de conjunto, como o já citado terceto ao lado de Pedrillo e Osmin, o dueto com Osmin ainda no começo da ópera, e o recitativo e dueto com Konstanze quase no fim da representação, Welch ein Geschick!

O excelente baixo carioca Luiz-Ottavio Faria, de importante carreira internacional, interpretou a parte do sisudo e mal-humorado Osmin exibindo bastante carisma, e ganhou o público do São Pedro desde a sua canção inicial, Wer ein Liebchen hat gefunden, que evolui para um dueto com Belmonte. Roubou cenas durante toda a récita, se destacou junto com Jean William no dueto do vinho, Vivat Bacchus! Bacchus lebe!, e desceu às saborosas profundezas da sua voz em sua ária derradeira, a triunfante O, wie will ich triumphieren, em que tripudia da desgraça dos amantes. Como é bom ouvir um baixo de verdade!

Ludmilla Bauerfeldt e Daniel Umbelino

Para o fim, teria que ficar a Konstanze de Ludmilla Bauerfeldt. Uma das cantoras brasileiras mais completas da atualidade, a soprano, de maneira semelhante ao que já havia acontecido quando ela cantou, no mesmo teatro em 2019, a Elvira da ópera L’Italiana in Algeri, começou atacando a sua ária do primeiro ato, Ach ich liebte, war so glücklich, com muita “vontade”, e o resultado não foi satisfatório, pois chegou muito “pesado” ao ouvido.

Qualquer ressalva, porém, começou e terminou nessa primeira ária, pois o que viria a seguir foi uma aula de domínio técnico e expressividade. Em um verdadeiro tour de force, a Bauerfeldt cantou praticamente em sequência, intermediadas apenas por uma cena falada, duas longas e difíceis árias: a sentida Traurigkeit ward mir zum Lose e a grande ária de toda a ópera, Martern aller Arten. A precisão da afinação, o cuidado com os acabamentos, a nobreza do fraseado, o sentido de cada gesto e de cada olhar, tudo contribuiu para uma verdadeira suspensão do tempo durante aqueles minutos, e para proporcionar ao público presente um belo momento de arte.

Depois desse momento em que o tempo parou, vieram apenas números de conjunto, todos muito bem defendidos pela artista, como o quarteto Ach, Belmonte! Ach, mein Leben!, o já citado dueto com Belmonte, e o vaudeville final, que exalta a bondade do Paxá: Nie werd’ ich deine Huld verkennen.

Assim foi a estreia de O Rapto do Serralho no Theatro São Pedro, uma bela e divertida noite de ópera. Depois de um início de temporada não muito satisfatório com Dido e Eneas, a qualidade da ópera que se faz na casa da Barra Funda não demorou para voltar aos trilhos.

Fotos: Heloísa Bortz.

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