Uma “Fanciulla” equilibrada no Theatro Municipal de São Paulo

Ópera de Puccini, que levou mais de 100 anos para ser reapresentada em São Paulo, estreou com boas vozes e encenação regular.

La Fanciulla del West (A Garota do Oeste), 1910
Ópera em três atos

Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Guelfo Civinini (1873-1954) e Carlo Zangarini (1873-1943)
Base do libreto: The girl of the golden West, drama de David Belasco (1853-1931)

Theatro Municipal de São Paulo

14 de julho de 2023

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Carla Camurati

Elenco:
Minnie: Martina Serafin, soprano
Jack Rance: Licio Bruno, baixo-barítono
Dick Johnson: Gustavo Lopez Manzitti, tenor
Nick: Paulo Queiroz, tenor
Ashby: Andrey Mira, baixo
Sonora: Johnny França, barítono
Trin: Eduardo Góes, tenor
Sid: Isaque Oliveira, barítono
Bello: Márcio Marangon, barítono
Harry: Fernando de Castro, tenor
Joe: Eduardo Trindade, tenor
Happy: Diógenes Gomes, barítono
Larkens: Max Costa, barítono
Billy Jackrabbit: Rafael Thomas, baixo
Wowkle: Andreia Souza, mezzosoprano
Jack Wallace: Sérgio Righini, baixo
José Castro: Marcelo Ferreira, barítono
Um postilhão: Miguel Geraldi, tenor

Coro Lírico Municipal
Orquestra Sinfônica Municipal

Atualização/Correção: esta resenha foi atualizada para corrigir uma informação incorreta divulgada pelo Theatro Municipal de São Paulo, segundo a qual a presente produção da ópera “La Fanciulla del West” seria a primeira montagem brasileira da ópera. Conforme nos alertou o leitor Wilson Aguiar Filho, “La Fanciulla” foi apresentada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1932, 1947 e 1964. Consultado, o TMRJ confirmou a informação do leitor, e ainda afirmou que em tais ocasiões as produções foram nacionais, sendo encenadas aquelas de 1947 e 1964. Além desta resenha, nossa matéria de divulgação da atual produção do TMSP também foi atualizada.

Obra fora da curva na produção do grande mestre italiano Giacomo Puccini – não por ser melhor ou pior, mas por ser diferente das suas irmãs – La Fanciulla del West (A Garota do Oeste) estreou bem na última sexta-feira no Theatro Municipal de São Paulo.

Composta por encomenda da Metropolitan Opera, de Nova York, onde estreou em 10 de dezembro de 1910, La Fanciulla conta uma história de redenção na época da chamada “corrida do outro”. Minnie, a jovem dona do saloon Polka, na Califórnia, é praticamente a única mulher em uma comunidade formada basicamente por garimpeiros tomados pela “febre do ouro” – trabalhadores que deixaram as suas casas e suas famílias para tentar a sorte na mineração do metal precioso.

Nesse clima de “velho oeste”, Minnie é cortejada por vários homens, mas em especial pelo garimpeiro Sonora e pelo xerife Jack Rance, sem se interessar por nenhum deles. Mesmo nesse ambiente bastante masculino, todos demonstram grande respeito por ela – exceto o inescrupuloso Rance, que parece cobiçar mais um “troféu” para exibir que alguém para amar verdadeiramente.

Quando entra em cena Dick Johnson (na verdade, o bandido Ramerrez), este desperta em Minnie um sentimento que ela nunca havia experimentado: a paixão. Ambos se lembram imediatamente de terem se encontrado brevemente no passado, na estada de Monterey, e demonstram nunca terem se esquecido um do outro. A partir desse ponto, tudo gira em torno dessa paixão e do ciúme de Rance, e, entre enganos e trapaças, é pelo amor de Minnie que o bandido alcança a sua redenção final.

Cenário do primeiro ato – à esquerda, Martina Serafin entre garimpeiros na cena da leitura da Bíblia; à direita, sentados à mesa, Andrey Mira e Licio Bruno

Como eu dizia, La Fanciulla del West é uma ópera diferente na produção pucciniana. Aqui, não há números musicais destacados, como árias e duetos (exceto por uma pequena passagem de Johnson no último ato, Ch’ella mi creda, que até pode ser considerada uma ária, mas é ligada diretamente à cena subsequente – tal qual Nessun dorma em Turandot).

Sem tais passagens musicais de mais fácil memorização, não surpreende que a ópera passe longe de ser popular – o que é uma pena, pois a música de Puccini é maravilhosa. A orquestração, especialmente, é rica e bastante expressiva: acompanha e evidencia cada passagem do drama, e um exemplo definitivo é a intensidade do acompanhamento do verso que Minnie repete algumas vezes no final do segundo ato: “Ah! È mio!”.

Cá entre nós, considerando a forma como a ópera é tratada no Brasil, e como os nossos teatros são (mal) administrados, também não chega a surpreender que uma obra como La Fanciulla, de um dos maiores compositores da história do gênero, tenha levado 108 anos (desde 1915) para voltar a ser encenada em São Paulo (no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a ópera foi apresentada em 1914, 1932, 1947 e 1964, com produção nacional nas três últimas oportunidades).

Encenação bela, mas não isenta de incongruências

Gustavo López Manzitti e Martina Serafin no segundo ato

A produção assinada por Carla Camurati para o Theatro Municipal de São Paulo é esteticamente muito bonita. Tal estética, segundo um dos textos do programa de sala, é inspirada em histórias em quadrinhos e busca trazer para a cena um visual mais pop. Como muitas vezes ocorre em HQs, isso resulta em um visual bastante colorido e atraente, como se pode observar nos figurinos variados de Ronaldo Fraga e nos belos cenários de Renato Theobaldo – e eu friso aqui o plural, porque realmente estamos falando de três cenários, três quadros diferentes que são expostos aos nossos olhos.

E, ainda que o fundo do palco tenha uma base única, o inspirado desenho de luz de Wagner Pinto e Carina Tavares completa o serviço, com contrastes entre cenas mais abertas (e mais claras) e outras mais intimistas. Por outro lado, em alguns momentos de pausa da orquestra, a luz gera um efeito cinematográfico de troca de cena. É diferente, sem necessariamente ser impactante, e, na primeira vez em que ocorre, o espectador menos avisado pode pensar que é uma falha da iluminação.

Apesar desse visual chamativo, há uma grande incongruência na concepção de Carla Camurati que não pode deixar de ser notada: a diretora afirmou à imprensa que a sua encenação não está fixada em um período de tempo específico, mas fez questão de, antes de a música começar a ser executada, projetar uma informação sobre a “corrida do ouro” na Califórnia, que aconteceu exatamente na metade do século XIX (entre 1848 e 1855), e, além disso, a “roupagem” geral do espetáculo é tradicional. Assim, sob um olhar mais atento, alguns elementos que aparecem em cena e que ainda não existiam naquela época (uma jukebox, dois fliperamas, letreiros em neon e até um carro) acabam dando uma desagradável impressão de gratuidade, de que foram postos ali somente para agradar os olhos.

A direção de atores de Camurati funciona bem na maior parte da encenação, e uma parcela considerável do elenco responde com atuações boas ou, no mínimo, razoáveis, mas há uma questão que precisa ser levantada: a maneira extremamente estereotipada como os personagens nativos (Wowkle e Billy Jackrabbit) são apresentados. Aqui, cabe um aparte.

Ora, há cerca de dois meses o Theatro Municipal de São Paulo viu-se em meio a uma polêmica envolvendo a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, cuja encenação teve um enfoque “decolonial”, segundo as palavras de profissionais ligados àquela produção. E agora, na presente encenação da Fanciulla de Puccini, os dois personagens de origem indígena são retratados da forma mais caricata possível – e, a meu ver, de uma maneira até pior em relação ao que poderia ocorrer com os personagens indígenas em uma encenação tradicional da ópera de Carlos Gomes. Assim, tudo indica que, na visão da alta direção do TMSP e de quem mais tem responsabilidade em relação a essas questões na casa, sobre os indígenas brasileiros não pode haver visão “colonial” ou estereotipada, ou caricata; mas os indígenas norte-americanos podem ser retratados de qualquer jeito. Em outras palavras, parece que o discurso vigente dentro do TMSP dura apenas até a página 2, ou então varia de acordo com o vento ou com as probabilidades de gerar manchetes.

Uma Minnie hipnotizante

Garimpeiros – em destaque na escada, Sérgio Righini

Na récita de 14 de julho, o Coro Lírico Municipal, preparado por Mário Zaccaro, apresentou-se bem, exibindo boa sonoridade. A Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Roberto (ad nauseam) Minczuk, não começou muito bem, com o regente “sentando a mão”, sem piedade dos cantores, na primeira metade do primeiro ato. Aos poucos, Minczuk foi ajustando o volume, e até conseguiu destacar algumas nuances dramáticas da partitura ao longo da récita – coisa rara em sua atuação em óperas. (Nota do Autor: ad nauseam porque, tudo indica, é expressamente proibido que outro regente seja convidado para reger óperas importantes nas temporadas líricas do TMSP).

A mezzosoprano Andreia Souza e o baixo Rafael Thomas, que interpretaram os indígenas Wowkle e Billy Jackrabbit, exageraram na dose caricatural de suas interpretações, talvez orientados pela direção. O tenor Paulo Queiroz interpretou o garçom Nick com desenvoltura cênica e com uma voz que já apresenta grande desgaste e pouca expressão.

O barítono Max Costa e o baixo Sérgio Righini souberam aproveitar bem mais as pequenas partes de Larkens e de Jack Wallace. Já o baixo Andrey Mira, recuperando-se de um Don Antonio irregular em O Guarani, apresentou-se desta vez bastante seguro como Ashby. E o barítono Johnny França foi um Sonora de luxo, exibindo bela presença e uma voz sempre expressiva e muito bem projetada.

O baixo-barítono Licio Bruno também se recuperou do seu Cacique pouco convincente em O Guarani, e, agora, ofereceu um Jack Rance bem mais seguro. Apesar de alguma inconsistência nos agudos, o artista aproveitou bem as suas principais cenas, como aquelas com Sonora, Minnie (Minnie, dalla mia casa son partito) e Johnson no primeiro ato, além da cena com a soprano no segundo ato.

O tenor argentino Gustavo López Manzitti não chegou a ser vocalmente perfeito (vacilou em um agudo no primeiro ato, por exemplo), mas agradou como Dick Johnson, e cantou bem durante a maior parte da noite, inclusive abordando com bastante segurança a única ária da ópera, Ch’ella mi creda, assim como as suas importantes cenas com Rance e Minnie (Minnie… Che dolce nome!).

A soprano austríaca Martina Serafin também não foi perfeita como Minnie, pois faltou-lhe, em algumas passagens, certo “peso” na voz. Ainda assim, a sua atuação foi bastante convincente, pautada em técnica apurada e em um domínio de palco hipnotizante. A artista soube construir muito bem a paixão avassaladora que, em pouquíssimo tempo, domina a personagem. E o seu desempenho no segundo ato, especialmente na sua conclusão, foi marcante.

Cenário do terceiro ato, com Gustavo López Manzitti ao centro (Johnson capturado)

Completaram o elenco Eduardo Góes (Trin), Isaque Oliveira (Sid), Márcio Marangon (Bello), Eduardo Trindade (Joe), Fernando de Castro (Harry), Diógenes Gomes (Happy), Marcelo Ferreira (José Castro) e Miguel Geraldi (Carteiro).

Apesar dos senões acima relatados, no fim das contas, a estreia de La Fanciulla del West mostrou-se equilibrada e bem defendida, e, até este momento, a ópera de Puccini é a produção que alcançou o melhor resultado em 2023 no Theatro Municipal de São Paulo.

TMSP na Revista Piauí

Há poucos dias, uma reportagem assinada pela jornalista Angélica Santa Cruz na Revista Piauí apresentou uma retrospectiva sobre a falta de continuidade na gestão do Theatro Municipal de São Paulo (e talvez mais uma mudança já esteja a caminho), lembrando as constantes trocas de Organizações Sociais que gerenciam a casa, as divergências entre OSs e a Secretaria Municipal de Cultura, os editais questionados e as briguinhas por poder. A reportagem é extensa e muito bem elaborada – particularmente, devo concordar com cerca de 90% de tudo o que a jornalista aponta ali, com riqueza de detalhes.

De tudo, o que mais chama a atenção é que, no processo de escolha das OSs, estas parecem não precisar saber o que é exatamente um teatro de ópera, para que ele serve, nem o que devem fazer com ele. Fica a impressão de que somente depois da seleção a vencedora verá o que fazer e pensará nos profissionais que a ajudarão a tocar o trabalho. As duas últimas OSs, Instituto Odeon e Sustenidos (esta a atual gestora), demonstraram muita dificuldade para administrar um teatro de ópera, e apostaram em uma programação difusa, repleta de penduricalhos, desviando muitas vezes o foco da função precípua de uma casa que tem duas orquestras e dois coros, além de outros corpos artísticos.

Um dos principais motivos que remetem ao problema da programação é que, já há muito tempo, o TMSP não tem um diretor artístico que saiba o que está fazendo. Hoje mesmo, nem se sabe direito quem é o(a) diretor(a) artístico(a) da casa, se é que ele(a) existe – um(a) profissional que deveria chamar para si toda a responsabilidade sobre a programação e sobre as escalações de elenco. Nos bastidores, por exemplo, há quem diga que quem escolhe elenco no Municipal de São Paulo não tem preparação para isso, ainda que acerte de vez em quando. É uma pena que, há vários anos, o teatro de ópera mais abastado do país, com os ótimos corpos artísticos que possui, não consiga fazer “decolar” uma programação realmente de encher os olhos e os ouvidos, seja porque falta qualidade nas suas gestões administrativa e artística, seja porque falta um regente que realmente saiba reger óperas, seja porque os elencos deixem a desejar em muitas ocasiões.

Enquanto a OS da ocasião, qualquer que esta seja, não se cercar de profissionais que realmente saibam o que estão fazendo, que entendam o que é (e para que serve) um teatro de ópera, a tendência é que o principal teatro de ópera de São Paulo continue sendo o Theatro São Pedro.

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Fotos: Rafael Salvador (na foto principal, Martina Serafin entre Licio Bruno e Gustavo López Manzitti).

5 comentários

  1. Essa ópera foi apresentada no TMRJ em 1964 tendo Magda Olivero no papel titulo. Antes disso, foi levada nas temporadas do mesmo Teatro em 1932 e 1947. Ou seja, não levou mais de 100 anos para ser reapresentada no Brasil.

    1. Obrigado pelo seu comentário, Wilson. Já estou apurando oficialmente junto ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Caso o TMRJ confirme tal informação, o texto será corrigido. Aproveito para esclarecer que a informação sobre os mais de 100 anos de ausência da ópera “La Fanciulla del West” no Brasil, constante da resenha acima, foi baseada no material de divulgação da produção atual – material este distribuído à imprensa pelo TMSP.

    2. Wilson Aguiar Filho, mais uma vez agradeço pela sua atenção e pelo seu alerta. Consultado formalmente, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro confirmou as suas preciosas informações. Atualizei tanto esta resenha, como também a nossa matéria de divulgação da produção atual do TMSP. Reitero que a informação incorreta sobre os mais de 100 anos de ausência da ópera “La Fanciulla del West” no Brasil, que constava originalmente do texto acima, foi baseada no material de divulgação da produção atual – material este distribuído à imprensa pelo TMSP, que também será alertado por mim sobre esta incorreção.

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