Produzir uma ópera em forma de oratório pode ser perigoso. A menos que o público esteja muito familiarizado com a partitura e suas melodias, corre-se o risco de entediar a plateia, que, mesmo dispondo das legendas, sente falta da movimentação teatral tanto para entender melhor a trama quanto para atrair a sua atenção.
Isso não ocorreu, entretanto, com a apresentação, na Sala São Paulo, de A Kékszállú Herceg Vára (literalmente O Castelo do Duque Barba Azul) de Béla Bartók, que, além de ser muito pouco conhecida, tem uma estrutura tal que não deixa espaço para uma ária sequer, é um encadeamento contínuo de recitativos acompanhados.
Ao contrário! Na récita que presenciei, a última de três, os entusiasmados aplausos do público – e muita gente estava ouvindo a ópera pela primeira vez – equivaleram àqueles que ouvimos ao final de uma encenação bem-sucedida de La Traviata.
A receita para tal sucesso é simples, embora muitas vezes os produtores de espetáculos líricos se esqueçam que ela existe: escalar artistas de primeira linha, e estabelecer uma perfeita harmonia entre eles. Foi o que aconteceu nessa edição de O Barba Azul.
À frente de uma OSESP em estado de graça, o diretor musical convidado, Sir Richard Armstrong – e aqui conto com a benevolência do leitor, porque o trocadilho se faz irresistível –, empunhou sua batuta com braço forte, embora sensível, conduzindo a orquestra através dos difíceis meandros da escrita bartókiana.
Armstrong, pelo visto, conhece a obra profundamente, e compreendeu que Bartók, nesta que é a sua primeira e última ópera, com a habilidade que tinha de combinar instrumentos para emoldurar situações com total domínio timbrístico, atribui à orquestra a função de uma “terceira voz”, fazendo-a complementar a narrativa, ajudando a contar a história.
Entre tantos momentos orquestrais fascinantes, um foi particularmente belo: o pequeno intermezzo orquestral com perfume a Debussy que se ouve na abertura da quarta porta, descrevendo a profusão colorida das flores do jardim secreto do Barba Azul.
Duas pequenas alegrias estavam reservadas a esse escriba logo no início da apresentação.
A primeira, foi a recuperação do prólogo, frequentemente eliminado das representações contemporâneas, que se ouviu em gravação, pela voz do baixo Saulo Javan, não totalmente compreensível, provavelmente em função do timbre extremamente grave do narrador. A produção cometeu aqui um erro comum que temos visto em montagens em que se fala português, que foi a de não incluir legendas durante o prólogo.
O libretista de O Castelo de Barba Azul foi o talentoso poeta simbolista magiar Béla Balázs, entusiasta dos valores folclóricos tradicionais dos povos húngaros. Balázs concebeu o prólogo para ser apresentado por um regős, ou bardo antigo típico das canções húngaras, que abre a sua fala com o verso tradicional “Oh, história antiga”. É muito importante, portanto, que o prólogo seja bem entendido antes de a ópera começar.
Balázs, querendo dar a seu texto uma estrutura folclórica autenticamente magiar, construiu o poema em tetrâmetros trocaicos, versos de quatro sílabas que alternam, como faziam em suas baladas os antigos menestréis, uma sílaba longa com uma curta. Esse balanço é bastante prejudicado pelas traduções. E esse foi o motivo da minha segunda alegria inicial, este Barba Azul foi cantado em húngaro, e não na versão alemã, como aconteceu no TMSP em 2008.
O Castelo do Barba Azul tem apenas dois solistas, um barítono que faz o Barba Azul, e um soprano (ou mezzosoprano) que canta a parte de Judith, a esposa.
Nesta produção, tivemos duas vozes wagnerianas, muito adequadas, cujos timbres se combinaram muito bem e representaram, vocalmente, seus papeis com propriedade, dosando as emoções e enfatizando os momentos de tensão.
É bonita a voz do barítono inglês David Stout, com colorido e densidade típicos de seu registro. Não é uma voz italiana; sua técnica e sua emissão lembram os grandes barítonos alemães do passado, e embora tenha tido algumas pequenas dificuldades – seus graves extremos perdem um pouco de volume e tendem a ser ofuscados, em certos momentos, pela vigorosa massa orquestral –, logrou ter uma apresentação muito convincente, de qualidade, durante o espetáculo como um todo.
Seu grande momento vocal aconteceu quando da abertura da quinta porta, aquela que conduz ao magnífico reino de Barba Azul, quando este exclama “Lásd ez az én birodalmam, messze nérö szép könyöklöm” (“Veja agora meu reino, contemple a paisagem”), versos em que Stout conseguiu expressar todo o orgulho solene do personagem.
Karen Cargill, natural da Escócia, é uma força da natureza, dona de uma voz grande e dona de uma grande voz.
Especialista em papéis graves wagnerianos (Erda, Fricka, Brangäne), sua classificação vocal oficial é de mezzosoprano, mas arrisco dizer que é um tipo de voz que se situa naquela região um tanto indefinida em que se confundem os sopranos dramáticos com os mezzos, pois embora seus graves sejam sonoros e não temam a competição com a orquestra volumosa, é dotada de agudos intensos e muito brilhantes, que também sabem ser cortantes quando o momento dramático assim o exige.
Cargill é uma verdadeira artista da voz. Ela combina uma técnica sólida com uma interpretação cheia de nuances, de cores e de dinâmicas, que podem ir de um respeitável fortissimo até passagens de delicado lirismo. Não houve um momento sequer, durante toda a apresentação, em que ela não tenha estado magnífica.
Uma grande experiência, a desse Barba Azul da OSESP, um daqueles espetáculos que enriquecem o espectador que teve a sorte de presenciá-lo.
Fotos: redes sociais da OSESP.