Série Vozes 2022 – Noite de Música Francesa
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 12 de agosto de 2022
Gabriella Pace, soprano
Marcelo Salles, violoncelo
Felipe Prazeres, regência
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresentou nesta sexta-feira, 12 de agosto, mais um concerto da sua Série Vozes 2022, com o tema Noite de Música Francesa, que serviu também como estreia oficial para o novo regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, Felipe Prazeres.
Antes da apresentação, breves falas da presidente da casa, Clara Paulino, e do diretor artístico, Eric Herrero, deram as boas-vindas a Prazeres, que também falou brevemente, lembrando que a sua estreia no posto ocorria no mesmo dia do aniversário de cinco anos da sua filha, e dedicando o concerto ao seu amigo Gustavo Menezes, violinista da própria orquestra que faleceu há cerca de um ano.
O concerto, incluindo o bis, abordou o período entre 1859 e 1888, e o seu grande destaque foi a atuação, na segunda parte, da soprano Gabriella Pace. Depois de o Municipal do Rio oferecer ao público um Don Giovanni em que a qualidade das vozes da maioria dos solistas esteve aquém de níveis mínimos de exigência, ouvir uma das principais cantoras brasileiras da sua geração foi um prazer para os ouvidos.
Pace começou a sua apresentação com a ária Elle a fui, la tourterelle, da personagem Antonia na ópera Les Contes d’Hoffmann (Os Contos de Hoffmann), de Jacques Offenbach: e logo no breve recitativo que a antecede, a soprano já mostrou o seu cartão de visitas, exibindo o seu controle preciso do vibrato. Na ária propriamente dita, a delicadeza do canto, aliada a médios claros e agudos seguros, rendeu uma excelente interpretação.
Em seguida, a artista abordou a ária Adieu, notre petite table (precedida de importante recitativo), da ópera Manon, de Jules Massenet. Apesar de ter sido encoberta pela orquestra por uma breve frase durante o recitativo, aqui ficou evidente toda a beleza da sua voz, com a emissão precisa, a afinação perfeita e, sobretudo, uma generosidade expressiva capaz de demonstrar de maneira cristalina os conflitos internos de Manon, dividida entre o amor sincero pelo amado e a possibilidade de uma vida “de rainha”.
Na terceira e última ária prevista no programa original, Comme autrefois dans la nuit sombre, da ópera Les Pêcheurs de Perles (Os Pescadores de Pérolas), de Georges Bizet, precedida de recitativo como as demais, Gabriella Pace reuniu todas as qualidades apresentadas até então e ainda caprichou na riqueza do fraseado.
No bis, a soprano concluiu a sua bela apresentação com a chamada ária das joias (Ah! je ris de me voir), da ópera Faust (Fausto), de Charles Gounod, em uma interpretação leve e jovial, um pouco superior em relação àquela de quando cantou a personagem completa na montagem de 2019 no próprio TMRJ. E aqui, uma vez mais, foi encoberta pela orquestra em algumas frases (leia mais sobre isso alguns parágrafos adiante).
Uma orquestra em reconstrução
Os corpos artísticos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Orquestra, Coro e Ballet) estavam já há algum tempo desfalcados, e o período da pandemia de Covid-19 piorou ainda mais a situação. No caso da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, a contratação de músicos por evento vinha sendo a solução paliativa para que as já poucas produções da casa não parassem de vez. Somem-se a isso as constantes trocas de regente titular desde a saída do último que exerceu o cargo por um tempo considerável (Silvio Viegas), e mais o período sem ninguém no posto desde a saída de Ira Levin, e o que tínhamos era um problema grave.
Diante da impossibilidade de se realizar concursos públicos neste momento, devido ao governo do estado do Rio de Janeiro integrar um regime de recuperação fiscal, a direção da casa conseguiu recentemente realizar um processo seletivo para contratação temporária por 12 meses, prorrogável pelo mesmo período, não só de artistas para os três corpos artísticos, como também para as áreas técnica e administrativa da casa. Era a solução possível, é o que foi feito e merece ser louvado.
No concerto desta sexta-feira, foi muito fácil notar os novos rostos na Orquestra. Se por um lado o conjunto perdeu em experiência, por outro, a chegada de novos integrantes, ainda que temporários, mas com um período mínimo garantido, pode injetar ânimo novo ao grupo. Junto desses novos integrantes, chegou também o novo regente titular, Felipe Prazeres, que terá muito trabalho pela frente em sua missão de reconstruir a OSTM.
Essa necessidade de reconstrução ficou muito evidente no concerto. Já na Abertura da ópera Le Roi d’Ys (O Rei de Ys), de Édouard Lalo, primeira peça da noite, os problemas de sonoridade e de articulação do conjunto ficaram bastante expostos, assim como uma evidente falta de refinamento nos acabamentos. Há muito o que evoluir nesse sentido. Diga-se, porém, que Prazeres cuidou bem do ritmo, e merece especial menção o violoncelista Pablo Uzeda, responsável por um belo e expressivo solo quase no final da peça.
Em seguida, no Concerto para Violoncelo n° 1, em Lá menor, Op. 33, de Camille Saint-Saëns, o regente conseguiu imprimir uma mais bem cuidada leitura dinâmica, controlando o volume da orquestra e dando o devido destaque ao solista. Ao violoncelo, Marcelo Salles demonstrou expressividade, principalmente no movimento central (Allegretto com Motto). Nos momentos de maior energia, no entanto, a música extraída do instrumento careceu de maior refinamento.
O controle do volume, acima elogiado, careceu de maior cuidado no acompanhamento da soprano: em pelo menos quatro momentos (dos quais dois foram citados acima) ela foi encoberta. A falta de experiência do regente no acompanhamento de solistas vocais restou evidente.
Um ponto positivo é que o próprio Felipe Prazeres reconhece isso. Em suas primeiras declarações após o anúncio do seu nome como o novo titular da OSTM, ele reconheceu que, como regente, não tem nenhuma experiência com balé, e quase nenhuma com ópera. Sabe, portanto, que precisa se aprimorar nesse sentido. Reconhecer as próprias deficiências é o primeiro passo para o aprimoramento em qualquer atividade humana.
Ingressos baratos = público presente e renovado
Depois de dois anos (2020 e 2021) de pouca produção artística devido às limitações impostas pela pandemia de Covid-19, um dos fatores que tem chamado a atenção no retorno das atividades presenciais do Theatro Municipal do Rio de Janeiro é a presença do público.
No concerto de sexta-feira o Municipal não estava lotado, mas estava cheio. Lotado ou praticamente lotado ficou nas apresentações do balé O Lago dos Cisnes e da ópera Don Giovanni. É muito bom ver a casa cheia, sobretudo considerando que as minhas últimas lembranças do TMRJ pré-pandemia remontam à presença de apenas meia plateia nas óperas Orphée e Ievguêni Oniéguin, apresentadas no último trimestre de 2019.
Parece-me que a estratégia do teatro de cobrar ingressos em conta (um ingresso de plateia para a ópera no TMRJ custa menos da metade que o mesmo ingresso no TMSP, por exemplo) neste ano de retorno às atividades, aliada talvez a uma demanda reprimida do público, que foi forçado a ficar longe dos espetáculos presenciais devido à pandemia, tem surtido um efeito muito positivo. Não apenas pela boa presença de público, mas também porque este público está, pelo menos parcialmente, renovado.
Assim, não foi apenas a OSTM que se apresentou com novos rostos na sexta-feira, mas também o público: havia gente de todas as idades interessada em música – o que é bom demais.
Por fim, renovo um alerta: a página de programação do site do TMRJ precisa ser atualizada com mais frequência. Por exemplo: a casa apresentará um novo concerto da OSTM na sexta que vem, dia 19, e, em setembro, o balé Macunaíma. Nada disso consta da referida página. Por que esses eventos ainda não estão lá, com datas e horários? Se o público está comparecendo bem mesmo com esse tipo de problema, imaginem se o Municipal cuidasse com mais carinho da sua página de programação.
Fotos: Daniel A. Rodrigues (na foto principal, Gabriella Pace, Felipe Prazeres e a OSTM).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Obrigado por esta crítica bem equilibrada. Eu também estava presente e isso mostra dedicação para escrever no dia seguinte ao show. Concordo com a maioria dos comentários. E gostei muito de Gabriela Pace, como você disse uma cantora apaixonada após a rotina medíocre de Don Giovanni. Mas tenho que corrigir um fato. O Felipe Prazeres fez sua estrela no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no dia 16 de abril com um concerto dedicado a Mozart. Se estes dois concertos são uma indicação do tipo de maestro que ele é, não vejo um bom futuro para o Theatro. A começar pela atitude provinciana e arrogante de apadrinhar o público com um discurso antes do concerto. 20 minutos em abril e 15 minutos ontem que deveria ter dedicado para preparar a orquestra. Em vez disso, ele deu tempo para a maioria das pessoas (pelo menos a que estava sentada perto de mim..)olhar para seus celulares…….
Obrigado por deixar seu comentário, Giuseppe. A menção que fiz à estreia de Felipe Prazeres foi em relação à sua estreia como regente titular da OSTM, cargo para o qual ele foi nomeado há cerca de duas semanas. Quanto aos discursos antes do concerto, via de regra sou contra, mas como dessa vez tratava-se de uma apresentação oficial dele como o novo regente titular da OSTM, o palavrório não chegou a me incomodar, até porque achei que não demorou muito. Obviamente, espero que isso não se torne uma rotina.
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