No Municipal de São Paulo, uma obra-prima e um complemento dispensável

“O Castelo do Barba-Azul” recebeu bela encenação e boa interpretação, enquanto a contemporânea “Eu, Vulcânica” revelou-se uma obra rebuscada e enfadonha.

A Kékszakállú Herceg Vára (O Castelo do Príncipe Barba-Azul), 1918
Ópera em prólogo e ato único

Música: Béla Bartók (1881-1945)
Libreto: Béla Balázs (1884-1949)
Base do libreto: La Barbe Bleue, conto de Charles Perrault (1628-1703)

I, Volcanic (Eu, Vulcânica), 2023
Obra em prólogo e ato único

Música: Malin Bång
Libreto: Mara Lee
Base do libreto: argumento original

Theatro Municipal de São Paulo

27 de julho de 2024

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Wouter Van Looy
Cenografia: Wouter Van Looy e Carl Bellens
Figurinos: Laura Françoso
Iluminação: Aline Santini

Elenco:
Judith (O Castelo do Barba-Azul): Denise de Freitas, mezzosoprano
Barba-Azul: Hernán Iturralde, baixo-barítono

Judith (Eu, Vulcânica): Alexandra Büchel, soprano
Judith (duplo): Gilda Nomacce, atriz
Escuridão 1: Laiana Oliveira, soprano
Escuridão 2 (voz): Flavio Mello, barítono
Escuridão 2 (atuação): Flávio Karpinscki, ator

Orquestra Sinfônica Municipal

A Kékszakállú Herceg Vára – em húngaro, O Castelo do Príncipe (ou Duque) Barba-Azul – é uma ópera em ato único (precedida de um prólogo falado) de Béla Bartók, sobre um libreto do poeta Béla Balázs ligeiramente baseado em um conto de Charles Perrault. Composta em 1911, mas só estreada em 1918, é uma das mais instigantes obras-primas do século XX escritas para o teatro lírico.

Na trama da ópera, Judith, a nova esposa de Barba-Azul, insiste em abrir as sete portas de uma grande sala no castelo do marido, com a justificativa de trazer luz àquele lugar sombrio. Barba-Azul a adverte de que ela não deve abri-las, mas Judith insiste, e vai abrindo uma a uma (uma câmara de torturas, um depósito de armas, uma sala do tesouro, um jardim, uma ampla paisagem, um lago prateado), até que a última porta revela as esposas anteriores do personagem-título, e este faz com que Judith se junte a elas.

Esse enredo não deve ser interpretado apenas pelo seu “exterior” de tintas um tanto macabras, pois a sua verdadeira substância está nas entrelinhas do maravilhoso libreto de Balázs, no qual se encontram referências às próprias relações humanas, à descoberta recíproca entre os dois protagonistas. A obra pode, também, ser entendida como uma alegoria da solidão – quando termina, Barba-Azul está novamente sozinho.

E outra “chave” de interpretação, talvez a mais interessante (lembremo-nos de que, na época da sua composição, a psicanálise começava a influenciar fortemente as artes), é aquela segundo a qual Barba Azul seria uma espécie de arquétipo do homem, e o seu castelo seria a sua mente, cujas profundezas (o seu subconsciente) poderiam ser acessadas pelas sete chaves. A ópera praticamente não tem ação, e o que se desenvolve é um intenso drama psicológico, magistralmente musicado por Bartók.

O espetáculo O Olhar de Judith, uma parceria entre o belga Muziektheater Transparant, a sueca Folkoperan e o Theatro Municipal de São Paulo, propõe unir à obra-prima de Bartók/Balázs uma obra contemporânea, encomendada à compositora sueca Malin Bång e à libretista sueca/sul-coreana Mara Lee. Segundo texto disponível no site do TMSP, as autoras da nova obra “reescrevem a história do ponto de vista da personagem-título. Judith não quer mais abrir as portas do castelo de Barba Azul, quer destrancar as suas próprias. Viajando ao subconsciente (ou ao seu próprio castelo), Judith encontra seus medos e desejos e a ópera revela a subjetividade dessa personagem que viveu à sombra e escuridão do marido”.

Já em texto constante do programa de sala, Andrea Caruso Saturnino e Alessandra Costa afirmam que “esta nova ópera oferece uma perspectiva fresca e provocativa sobre a narrativa de Barba Azul, desvendando as nuances e as profundezas emocionais que permeiam essa história atemporal”. O mesmo texto informa ainda que o projeto foi revisto para a estreia brasileira. Na estreia sueca, em 2023, foi utilizada uma orquestra reduzida sobre o palco. E agora, em São Paulo, para as récitas que aconteceram entre os dias 26 e 30 de julho, como a casa paulistana propôs apresentar a ópera de Bartók com a orquestração original, completa, Malin Bång revisou a sua peça também para grande orquestra. Da mesma forma, a encenação foi revista para se adequar ao palco do TMSP.

Na teoria, a ideia pareceu bem interessante, mas a sua realização acabou prejudicada pela qualidade questionável da nova obra (Eu, Vulcânica), como se verá alguns parágrafos abaixo.

O Castelo do Barba-Azul: bela encenação e dois excelentes intérpretes

Denise de Freitas (Judith), ao centro, e Hernán Iturralde (Barba-Azul), ao fundo

A encenação do diretor belga Wouter Van Looy para a ópera de Bartók funcionou muitíssimo bem. A ambientação em tom cinzento (cenário do próprio encenador em parceria com Carl Bellens) mostrava uma cena bastante clean, mas com a caixa cênica bem fechada: simples, eficiente, enriquecida pela ótima iluminação de Aline Santini e complementada pelos corretos figurinos de Laura Françoso.

Van Looy optou por utilizar uma única e grande porta ao fundo do palco, na sua parte central, para desvendar, aos poucos, os “segredos” do personagem-título. Considerando que as sete portas podem ser interpretadas como uma metáfora para entrar na mente do outro (no caso, do Barba-Azul), a escolha se mostrou bastante acertada.

Em uma obra com apenas dois personagens em cena, no entanto, tudo acaba dependendo muito do nível dos cantores à disposição, e o TMSP finalmente acertou na mosca em uma escalação de elenco neste ano: com dois artistas do calibre da mezzosoprano brasileira Denise de Freitas e do baixo-barítono argentino Hernán Iturralde, o trabalho conjunto entre o diretor e os intérpretes resultou em uma ação fluida, convincente, hipnotizante mesmo.

Se Iturralde construiu um Barba-Azul contido, cerebral, e que somente no final do drama se mostrou ligeiramente mais expansivo, Denise de Freitas deu vida a uma Judith intensa, flamejante e que, a partir da sexta porta, parece começar a entender o seu destino, a sua punição por ter conhecido tão a fundo a mente do homem com quem se casou. Na récita do sábado, 27 de julho, os dois intérpretes cantaram muito bem, com vozes seguras e muito expressivas.

A lamentar, apenas, a utilização de amplificação para os solistas. Não chegou a ser uma amplificação excessiva, não chegou a causar incômodo. Por vezes, até desaparecia, mas estava lá na maior parte do tempo. É bem provável que a direção do espetáculo tenha optado por utilizar a amplificação devido ao efeito conjunto de dois fatores: a densa orquestração de Bartók e a necessidade de os solistas cantarem próximos à porta do fundo do palco, algumas vezes voltados para ela. De qualquer forma, é um expediente que deve ser evitado ao máximo.

A Orquestra Sinfônica Municipal apresentou o seu melhor trabalho neste ano, exibindo uma ótima sonoridade ao abordar a maravilhosa (e complexa) escrita de Bartók, muito bem conduzida por um Roberto Minczuk que sempre se mostra mais à vontade (e mais seguro) quando aborda um repertório pouco comum e que, preferencialmente, passe longe, bem longe, da ópera italiana. E, com a “ajuda” da amplificação dos solistas, que espero não voltar a encontrar no TMSP, o velho problema do alto volume da orquestra não chegou a atrapalhar como em muitas outras ocasiões.

Uma última observação: a substituição do prólogo original (apenas falado) por outro escrito por Mara Lee (e acompanhado, creio, por música de Malin Bång), se não chegou a prejudicar o desenvolvimento da ópera de Bartók/Balázs, também não agregou nada relevante ao espetáculo.

Eu, Vulcânica: somente a música orquestral se salva

Em primeiro plano, a soprano Alexandra Büchel (Judith)

A partir de algum momento durante o intervalo entre as obras, com a cortina principal do palco aberta, a atriz Gilda Nomacce (um duplo de Judith) passa a fazer uma intervenção cênica, com o objetivo aparente de destacar duas frases escritas em uma parede cinza. Foi uma intervenção bem inútil, primeiramente porque era muito difícil conseguir enxergar as frases, e depois porque essas frases viriam a aparecer bem visíveis (talvez devido a uma luz especial) no fim da segunda obra da noite. E esse foi o menor dos problemas que estavam por vir.

Eu, Vulcânica é uma obra bem problemática. Para começo de conversa, parece-me um pouco exagerado chamar de “ópera” uma obra em que a protagonista (seja a soprano, seja o duplo representado pela atriz) fale mais do que cante. Embora seja muito comum na contemporaneidade chamar qualquer coisa de ópera (vide Ritos de Perpassagem, de Flo Menezes, apresentada há poucos anos no Theatro São Pedro: uma bela obra, mas não exatamente uma ópera), isso é algo que me incomoda, pois, antes de mais nada, teríamos que definir a ópera. O que é uma ópera? Quais as características básicas para uma obra ser classificada como “ópera”? Dependendo de com quem se tenha essa discussão, já adianto que ela pode ser infinita. Por isso, paro por aqui, deixando as perguntas no ar, para o leitor chegar às suas próprias conclusões.

O libreto de Mara Lee, organizado em dois prólogos (o primeiro deles, como já mencionado, apresentado antes da ópera de Bartók/Balázs) e “sete sequências de sonhos” – que analiso aqui obviamente pela tradução para o português disponível no programa de sala, e não pelo original em sueco – é bem rebuscado, e, até mesmo por ser dividido em “sonhos”, exige um grande esforço para ser compreendido em sua totalidade à primeira vista. Quantos expectadores será que o compreenderam totalmente? Quantos será que fingiram que entenderam?

Se, para compreender bem o libreto de O Castelo do Barba-Azul, é preciso saber ler nas entrelinhas; para entender o de Eu, Vulcânica é preciso ler, no mínimo, nas entrelinhas das entrelinhas. Dá trabalho. Quantos expectadores presentes às récitas do TMSP o leitor acha que se deram realmente esse trabalho?

Quando esse texto rebuscado se junta à música vocal de Malin Bång – uma música que às vezes é propositalmente arcaica (no caso dos “personagens” chamados de Escuridão), e em outras vezes é simplesmente de qualidade duvidosa (a parte da soprano), o que temos é uma obra de compreensão bastante complexa e, no limite, enfadonha. É muito difícil crer que quem já a viu uma vez pague ingresso e saia de casa para vê-la novamente.

Nada se salva então? Bem, mesmo à primeira audição, a música instrumental e a orquestração de Malin Bång me pareceram bem mais qualificadas que as partes vocais. Não à toa, uma vez mais a Orquestra Sinfônica Municipal, sempre sob o seu onipresente titular, apresentou-se bem.

É difícil avaliar a performance da soprano sueca Alexandra Büchel (Judith), uma vez que ela mais falou, gemeu e sussurrou do que cantou, e, quando cantou, foi de maneira amplificada. Pode-se dizer que esteve no “espírito” da obra.

A atriz Gilda Nomacce (duplo de Judith)

Quem realmente cantou em Eu, Vulcânica foram a soprano Laiana Oliveira (Escuridão 1) e o barítono Flavio Mello (Escuridão 2). Cantaram bem, mas também de maneira amplificada, o que limita maiores observações.

A atriz Gilda Nomacce (intérprete dos dois prólogos e duplo de Judith) ofereceu uma performance pouco convincente, e não é tarefa das mais fáceis definir se a sua atuação foi pouco atrativa pelo seu próprio trabalho, pela maneira como foi dirigida, ou pela própria qualidade da obra. O ator Flávio Karpinscki completou o elenco.

Assim como a obra, a encenação de Wouter Van Looy em uma espécie de escombros de um castelo (agora seria o castelo, ou a mente, de Judith) mostrou-se também enfadonha, arrastada, e não ajudou muito a melhorar o que nasceu dispensável. Se já era evidente que seria arriscadíssimo apresentar uma obra inédita logo depois de uma obra-prima consagrada, a realização dessa ideia serviu apenas para confirmar que O Castelo do Barba-Azul não precisa de qualquer complemento.


Fotos: Larissa Paz (na foto principal, Denise de Freitas, deitada, e Hernán Iturralde).

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