No TMRJ, um “Pagliacci” bem dirigido

Baixo-barítono Licio Bruno, encenação eficiente e boa regência são os pontos fortes da montagem da ópera de Leoncavallo. Antes, em 12/09, “O Caixeiro da Taverna” alcançou bom resultado geral.

Pagliacci (Palhaços), 1892
Ópera em prólogo e dois atos

Música e libreto: Ruggero Leoncavallo (1858-1919) 

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2023

Direção Musical e Regência: Victor Hugo Toro
Direção Cênica: Menelick de Carvalho

Canio/Pagliaccio: Enrique Bravo, tenor
Tonio/Taddeo: Licio Bruno, baixo-barítono
Nedda/Colombina: Marianna Lima, soprano
Beppe/Arlecchino: Guilherme Moreira, tenor
Silvio: Fernando Lorenzo, barítono

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
Coro do Theatro Municipal

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O Caixeiro da Taverna, 2006
Ópera de câmara em ato único

Música e libreto: Guilherme Bernstein (1968-) 

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2023

Direção Musical e Regência: Guilherme Bernstein
Direção Cênica: Daniel Salgado

Manuel: Homero Velho, barítono
Angélica: Adalgisa Rosa, mezzosoprano
Francisco: Geilson Santos, tenor
Deolinda: Carolina Morel, soprano
Sargento Quintino: Murilo Neves, baixo
Antônio: Ludoviko Vianna, ator

Ensemble OSTM

Em Pagliacci (Palhaços), ópera em prólogo e dois atos de Ruggero Leoncavallo, Canio é o chefe de uma trupe de saltimbancos da qual faz parte também a sua esposa, Nedda. O grupo chega a uma aldeia onde encenará uma comédia, e Canio convida a população para a apresentação. Nedda é desejada por Tonio (um dos artistas do grupo), que, depois de ser humilhado por ela, jura vingança e acaba descobrindo que Nedda mantém um caso com Silvio, um aldeão. Como desforra pela humilhação que sofreu, Tonio denuncia a Canio a traição de sua esposa.

O líder da trupe percebe o ato de traição, mas não reconhece o amante da esposa. Com violência, ele exige que ela lhe diga o nome do amante, mas Nedda se nega a falar. Aproxima-se a hora do espetáculo, e Tonio convence o chefe a se preparar para a apresentação. Transtornado pela traição, mas tendo a obrigação, por ofício, de fazer o público rir, Canio entoa uma das mais célebres e formidáveis árias do repertório de tenor lírico dramático: Vesti la giubba.

Chegada da trupe à aldeia, com o tenor Enrique Bravo ao centro

Após o intermezzo, tem início a comédia (a peça dentro da peça), na qual Canio interpreta Pagliaccio, que é traído por sua esposa Colombina, por sua vez interpretada por Nedda. A arte imita a realidade, ou seria o contrário? Canio não suporta ver a sua própria história ser retratada diante de todos, “sai” do personagem e exige o nome do amante de Nedda. Esta ainda tenta seguir o texto da comédia, mas é em vão. Canio mata Nedda e, em seguida, Silvio, que se revela ao ver a amante agonizando.

O libreto que o próprio Leoncavallo escreveu para Pagliacci é riquíssimo, a começar por um maravilhoso prólogo, tido por muitos como o manifesto do Verismo. A maneira como o autor insere na trama figuras da Commedia dell’Arte, utilizando música no estilo do século XVIII para acompanhá-las, é ideia de gênio. Toda a música da ópera, a propósito, é primorosa. Como, no ano passado, Fabiana Crepaldi escreveu um belíssimo artigo sobre a ópera, deixo aqui o link para quem quiser se aprofundar na análise desta obra-prima.

Pagliacci no Municipal do Rio

Pagliacci foi o principal dentre os três títulos que integraram a primeira edição do Festival Oficina da Ópera, uma interessante iniciativa do Theatro Municipal do Rio de Janeiro que tem como principal objetivo formar equipes criativas do setor na cidade, com ênfase ao trabalho de jovens diretores cênicos.

O material de divulgação distribuído pelo TMRJ era dúbio em relação a Pagliacci: se deixava claro que as outras duas obras do Festival seriam apresentadas em forma de concerto cênico, a apresentação da ópera de Leoncavallo era apontada ora como “montagem completa”, ora como “concerto cênico”. Afinal, como deveria este autor considerar a sua forma de exibição? Resolvi a questão simplesmente comparando a apresentação de Pagliacci com a recente produção da casa para Carmen, de Bizet, e a conclusão a que cheguei é que se tratou, sim, de uma montagem completa: a orquestra estava no fosso, e a encenação foi, inclusive, mais eficiente que a de Carmen.

O assassinato de Nedda, por Canio (Marianna Lima e Enrique Bravo), aos olhos do povo (coro) e de Tonio (Licio Bruno)

O diretor Menelick de Carvalho captou bem a essência da obra e concentrou esforços em uma bastante eficiente direção de atores, que valorizava o efeito cômico aqui, destacava o drama ali, e alcançou o seu melhor efeito no segundo ato, quando drama e comédia se confundem.

O cenário de Mariana Marton mostrou-se bastante funcional e esteticamente atraente, apesar de não ter conseguido resolver um problema constante nas encenações do TMRJ: os indefectíveis panos pretos das laterais do palco.

Os belos e adequados figurinos de Rebecca Cardoso cumpriram bem a sua função, enquanto a luz de Jonas Soares e Isabella Castro, se não chegou a ter muito destaque, tampouco atrapalhou o espetáculo. Complementaram bem a encenação palhaços profissionais do Unicirco Marcos Frota.

Na récita de 17 de setembro, o Coro do Theatro Municipal, preparado por Edvan Moraes, ofereceu uma performance razoável, e, como já havia ocorrido no concerto em homenagem aos 90 anos do conjunto, as vozes femininas mostraram-se um tanto descalibradas, com uma certa estridência nos agudos que é desagradável ao ouvido. Como não é a primeira vez que noto problema semelhante, cabe perguntar: será que alguém está cuidando disso?

A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal também apresentou uma performance que se pode considerar razoável, apesar de terem se feito notar os desencontros e os constantes problemas de articulação e acabamento que o conjunto parece não se esforçar muito para resolver – e de novo cabe perguntar: alguém está cuidando disso? Por sua vez, o regente chileno Victor Hugo Toro soube trabalhar bem a dinâmica e, mostrando-se atento à ação dramática, conseguiu extrair da orquestra uma expressividade que esteve ausente na recente Carmen, quando a OSTM foi conduzida pelo seu titular.

Como aldeões, Calebe Faria e Gabriel Senra não comprometeram, ao contrário do barítono Fernando Lorenzo, que comprometeu bastante: para além de problemas de afinação, seu Silvio mostrou-se totalmente desprovido de musicalidade.

A soprano Marianna Lima teve uma tarde irregular. Interpretando Nedda/Colombina, apresentou uma boa performance cênica, centrada no sofrimento de uma mulher que vive um relacionamento abusivo. Ao mesmo tempo, sua performance vocal foi pouco consistente, sobretudo nos agudos – região em que a sua afinação oscilou bastante. É pena, pois relatos confiáveis davam conta de que a sua primeira récita havia sido bem melhor.

O tenor chileno Enrique Bravo deu a impressão de cantar, durante o primeiro ato, a parte de Canio no limite das suas possibilidades. Se não foi perfeito, também não fez feio, e ofereceu uma correta Vesti la giubba (a grande ária da ópera). Suas forças, tudo indica, ficaram concentradas na primeira parte, e a sua voz perdeu brilho no segundo ato, quando Canio passa a se confundir com o seu personagem na comédia, Pagliaccio. A qualidade da sua projeção decaiu em sua segunda ária, No, Pagliaccio non son, que restou bastante opaca, apesar dos seus esforços.

Licio Bruno (Tonio) e Marianna Lima (Nedda)

O também tenor Guilherme Moreira fez o caminho oposto do colega. Se a pequena parte de Beppe não chamou a atenção no primeiro ato, a canção do Arlechino foi o “pequeno grande” momento musical do segundo ato, em que o artista pôde exibir uma voz leve, de lindo timbre e muito bem colocada.

Resta o baixo-barítono Licio Bruno, e não resta pouco. Para quem, como este autor, viu o artista interpretando Tonio/Taddeo na então última apresentação desta obra-prima de Leoncavallo no TMRJ, em 1997 (há 26 anos, portanto), reencontrá-lo mais maduro e senhor da sua arte nesses personagens foi uma grande alegria. Com voz potente e um domínio de palco impressionante, Licio Bruno mostrou o seu cartão de visitas já durante o célebre prólogo da ópera, interpretado com precisão e sentimento. Depois, por meio de gestos, olhares e movimentos estudados, expressou o desejo de Tonio por Nedda, assim como toda a crueldade do personagem na preparação e na aplicação da sua vingança contra a mulher que o rejeitara. Em suma, uma performance eletrizante, incandescente.

Terminada a récita, tal qual já havia acontecido no ano passado na ópera Don Giovanni, foram projetadas no quadro das legendas informações sobre casos de feminicídio no Brasil. A diferença básica entre esta vez e a anterior é que, aqui em Pagliacci, tudo fez mais sentido, pois há um feminicídio em cena.

Também depois da récita, diretores e funcionários do Theatro Municipal subiram ao palco para entregar certificados aos profissionais que participaram do Festival Oficina da Ópera. Considerando o objetivo do Festival, esse foi um dos raros momentos em que a presença de diretores no palco para algum falatório (péssimo hábito que a casa tem cultivado) não foi em vão.

Na contabilidade final, e apesar dos apontamentos que fiz acima, foi bom ver Pagliacci no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Depois de uma Carmen que passou longe de entregar o que prometia, traz algum alento poder conferir na casa uma encenação mais bem elaborada e uma efetiva regência de ópera.

O Caixeiro da Taverna

Homero Velho (Manuel) e Adalgisa Rosa (Angélica)

Antes, nos dias 11 e 12 de setembro, a ópera que abriu o Festival foi O Caixeiro da Taverna, de Guilherme Benstein, também responsável pelo libreto, que segue de perto a comédia original de Martins Pena. Na trama que se desenvolve no Rio de Janeiro, o imigrante português Manuel é o caixeiro (uma espécie de gerente) da taverna de Angélica, uma viúva. Ele pretende se tornar sócio no negócio, e Angélica até concorda com isso, mas com a condição de que Manuel se case com ela.

O problema é que ele já se casou em segredo com Deolinda, uma jovem costureira que é irmã do Sargento Quintino. Este vai até a taverna tirar satisfações com Manuel, que foi visto rondando a sua casa. Daí em diante, o enredo apresenta as reviravoltas de praxe das comédias, com a contribuição de Francisco (amigo do protagonista), até o desfecho favorável a todos.

Assisti à récita do dia 12, e pude verificar que a semiencenação de Daniel Salgado funcionou muito bem, com todos os solistas bem dirigidos. Para isso, contribuíram bastante a boa ambientação cênica de Francisco Ferreira, os corretos figurinos de Renan Garcia e a ótima iluminação de Jonas Soares e Isabella Castro (sim, o desenho de luz da dupla também responsável por Pagliacci alcançou melhor efeito no Caixeiro).

Carolina Morel (Deolinda)

O ator Ludoviko Vianna interpretou bem a pequena parte de Antônio. O baixo Murilo Neves incorporou o Sargento Quintino com boa presença, mas voz bastante irregular, enquanto a jovem soprano Carolina Morel deu vida à Deolinda com desenvoltura e uma voz promissora.

A mezzosoprano Adalgisa Rosa, em que pese alguma oscilação vocal, conseguiu dar à fogosa viúva Angélica uma interpretação precisa, caricata na medida exata. O Francisco do tenor Geilson Santos recebeu a melhor interpretação vocal da noite.

Por fim, o protagonista, Manuel: na pele do caixeiro, o barítono Homero Velho enfrentou um verdadeiro tour de force, já que o seu personagem permanece em cena durante quase toda a obra. Experiente e excelente ator, o artista ofereceu uma performance cênica irrepreensível, com uma voz que correu bem dos graves aos médios, mas que, por vezes, oscilou nos agudos.

Homero Velho (Manuel) e Geilson Santos (Francisco)

O ponto negativo da produção semiencenada de O Caixeiro da Taverna ficou com o pequeno conjunto orquestral formado por músicos da OSTM (flauta, clarinete, fagote, contrabaixo, cinco violinos, duas violas e dois violoncelos). Conduzidos pelo próprio compositor, Guilherme Bernstein, o grupo apresentou os mesmos problemas da orquestra completa que foram observados em Pagliacci, com o agravante de uma falta absoluta de expressividade. Pode ter faltado ensaio, mas é provável que também tenha faltado regente.

A programação do Municipal até o fim do ano, com destaque para a ótima ideia do Festival

Depois de uma longa espera, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro finalmente divulgou, há poucas semanas, a sua programação para o restante do ano. Dentre o que foi anunciado, os espetáculos mais atraentes são a ópera La Traviata, de Verdi, prevista para novembro, e o balé O Corsário, previsto para dezembro.

Dentre tudo, porém, o Festival Oficina da Ópera, motivo principal deste texto, é a ideia mais inovadora implementada até este momento pelo diretor artístico do TMRJ, Eric Herrero, em sua gestão. É muito necessário dar experiência – e ao mesmo tempo experimentar – novos profissionais do setor de criação no Rio de Janeiro.

A casa tem demonstrado dificuldades (seja por falta de condições financeiras, seja por qualquer outro motivo) para trazer profissionais de criação de fora do Rio. Basta verificar que os mesmos encenadores escalados em 2022 para óperas completas (Julianna Santos e André Heller-Lopes) estão sendo repetidos em 2023. Isso deveria ser evitado, considerando que a casa monta tão poucas óperas com encenação completa. O Festival, portanto, pode ser uma saída para fugir da mesmice de se trabalhar sempre com os mesmos profissionais.

Em um passado recente, a casa promoveu outras belas ideias, como um concurso de canto (Concurso Vozes do Brasil, em 2010) e uma academia de ópera (Academia de Ópera Bidu Sayão, entre 2015 e 2017). Ambas as iniciativas se perderam em meio aos problemas financeiros e administrativos que sempre rondaram o TMRJ (isso, claro, para não falar em motivos ainda menos nobres). Resta torcer para que o Festival Oficina da Ópera perdure, e não venha a ter o mesmo destino dessas boas ideias anteriores.

O leitor interessado encontra aqui a programação do TMRJ até o fim de 2023.

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Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, a cena final de “Pagliacci”).

3 comentários

  1. A ideia do festival para novos encenadores é interessante e o resultado foi positivo. No entanto, a temporada de ópera ainda persiste limitadíssima e sem atrativos. Quem sabe em 2024 teremos algo a comemorar…

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