Com “Tosca” liderada por Carmen Giannattasio, Atalla Ayan e Leonardo Neiva, temporada do TMSP dá um salto de qualidade.
Tosca (1900) Ópera em três atos |
Música: Giacomo Puccini (1858-1924) Libreto: Luigi Illica (1857-1919) e Giuseppe Giacosa (1847-1906) Base do libreto: drama homônimo de Victorien Sardou (1831-1908) |
Theatro Municipal de São Paulo, 11 de agosto de 2023 |
Direção musical: Roberto Minczuk |
Floria Tosca: Carmen Giannattasio, soprano Mario Cavaradossi: Atalla Ayan, tenor Barão Scarpia: Leonardo Neiva, barítono Cesare Angelotti / um carcereiro: Andrey Mira, baixo Sacristão / Sciarrone: Leonardo Pace, baixo-barítono Spoletta: Ricardo Gaio, tenor Um pastor: Isabella Luchi, mezzosoprano |
Orquestra Sinfônica Municipal Coro Lírico Municipal |
Caro leitor, preciso começar com uma advertência: o presente texto se refere apenas ao segundo e ao terceiro atos da Tosca apresentada, em forma de concerto, no último dia 11 de agosto no Theatro Municipal de São Paulo. Não, eu não cheguei atrasada. Meu lugar era bem lateral e, como sempre faço desde janeiro de 2017, quando a fila A da parte central do foyer, onde comprava todos os meus ingressos e assinaturas, passou a ser bloqueada, pesquei uma poltrona central na plateia. Visão excelente, no corredor, no meio do teatro. No meio do teatro… pois é, assim que Angelotti atacou o seu “Ah! Finalmente!”, vi que estava em um lugar em que havia uma terrível reverberação, em que todo o som chegava embolado, duplo, impossível de distinguir uma única palavra. Habituada a frequentar o teatro nas óperas, mas não nos concertos, quando há aquela concha no fundo do palco rebatendo o som, nunca tinha vivenciado esse tipo de problema: a configuração acústica que me é familiar é outra. Pela primeira vez, descobri que eram verdadeiras as histórias sobre distorções pontuais de som na casa, que eu já havia ouvido de antigos frequentadores e jurava que eram lendas urbanas. No intervalo, claro, mudei de lugar, e aí, para mim, a ópera começou de verdade.
Mesmo assim, não poderia deixar de escrever algo, já que, musicalmente, que eu me lembre, foi o melhor espetáculo que vi no TMSP desde o início de 2017. Houve, nesse período, é verdade, uma ou outra produção de bom nível – por exemplo, O Cavaleiro da Rosa, O Amor das Três Laranjas, ou, recentemente, La Fanciulla del West (com Martina Serafin!) –, mas sempre com um ou mais cantores mal escalados, que comprometiam o resultado. Nessa Tosca, eu não diria que o trio de protagonistas foi homogêneo, mas que os três foram de ótimo nível, de um nível digno de um grande teatro. Em outras palavras, o trio formado pela italiana Carmen Giannattasio e pelos brasileiros Atalla Ayan e Leonardo Neiva poderia interpretar Tosca, Cavaradossi e Scarpia em qualquer importante teatro do mundo.
Aliás, Ayan e, sobretudo, Giannattasio já o fizeram. A soprano já foi Tosca em Berlim, Roma, Bolonha, Stuttgart, Viena… Ayan, por sua vez, estreou como Cavaradossi recentemente, em 2022, em Stuttgart. É bom lembrar que a sua voz está mudando, ganhando peso, e que, há poucos anos, esse era um papel impensável para ele. Dos três, o único que estava estreando e que cantou lendo a partitura foi o barítono Leonardo Neiva. E este demonstrou o que, mesmo lendo, um artista é capaz de fazer.
Leonardo Neiva é dono de um belíssimo timbre, redondo, aveludado. Confesso que eu não imaginava que ele pudesse dar voz a Scarpia. Mais uma vez: tudo é possível a um artista. O mais interessante é que ele o fez com toda a naturalidade, parece ter usado uma receita simples: se deixou guiar pela música e pelo texto – ao qual, aliás, deu forte ênfase. Há quinze dias, Neiva estava em outra ópera: Carmen, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Teve pouco tempo para migrar de Escamillo para Scarpia, enquanto se recuperava de uma laringite que o impediu de participar da última récita de Carmen – justamente aquela a que assisti. E isso em meio aos preparativos para ir, no fim do mês, para Viena, onde passará a fazer parte do elenco estável da Wiener Staatsoper. Desse modo, o surpreendente não é que ele tenha cantado lendo, mas que tenha conseguido construir um personagem consistente, seguro, e que tenha sido o grande destaque da noite.
No Scarpia de Neiva, não havia lugar para exageros, e em momento algum ele flertou com um personagem caricato, mas seu Scarpia foi firme, não vacilou jamais, seja do ponto de vista musical, seja do ponto de vista expressivo. Sua voz soou o tempo todo homogênea e muito bem colocada, repleta de nuances, com cores que se alteravam em função das situações pelas quais o personagem passava. Como eu gostaria de vê-lo com o papel perfeitamente pronto, de cor, em uma produção encenada!
Como Cavaradossi, Atalla Ayan provou que está se consolidando a voz mais escura, mais pesada, que ouvimos recentemente em seu Peri, no Il Guarany produzido no mesmo TMSP. É claro que, algumas vezes, pareceu estar no limite de sua vocalidade, mas a sua atuação foi bastante boa e, segundo relatos, cresceu na récita seguinte, no domingo, confirmando a sensação de que a tendência de seu Cavaradossi é crescer cada vez mais. No segundo ato, seu agudo correu facilmente em “Vittoria! Vittoria!”, e, no terceiro, interpretou E lucevan le stelle com um legato e uma sensibilidade que renderam insistentes gritos de “bravo!” e “bis!” na plateia.
E chegamos à diva da noite, Carmen Giannattasio ou, na sexta-feira à noite, Floria Tosca. Não pude deixar, vendo a sua atuação, de me lembrar de sua maestra, a grande soprano italiana Giovanna Casolla, que tive a oportunidade de ver, dez anos atrás, em um recital no Theatro São Pedro. Casolla já estava com idade avançada para uma cantora, mas o seu estilo estava lá: voz enorme, com agudos pesados e impetuosos. Giannattasio parece ter assimilado um pouco esse estilo tipicamente verista de Casolla. Sua voz é poderosa, seus agudos são irrepreensíveis, mas às vezes falta a leveza que daria mais sensibilidade à personagem. Sua Tosca, no entanto, passou longe da diva artificial e fútil, armadilha na qual caem muitas intérpretes e que pouco tem a ver com as atitudes tomadas pela heroína do segundo ato em diante. Além disso, tínhamos, para nos deleitar, o seu belo timbre, a sua técnica sólida e o seu total domínio da partitura de Puccini.
Saiu-se bem o restante do elenco: Andrey Mira, como sonoros Cesare Angelotti e o carcereiro, Ricardo Gaio como Spoletta, Isabella Luchi como o pastor e, sobretudo, Leonardo Pace nos papéis de sacristão e Sciarrone.
Pouco tenho a dizer sobre o coro, já que a sua principal participação é no Te Deum do primeiro ato, e, nesse momento, o coro se posicionou no corredor central, de modo que eu fiquei praticamente dentro dele. Tudo o que posso dizer é que havia um tenor com voz rouca, meio gritada, um pouco atrás de mim. A saúde vocal dos coralistas requer atenção.
Enquanto assistia à Tosca do TMSP, me veio à mente uma que vi em 2019 no Metropolitan Opera, na companhia de muitas poltronas vazias. Ali, o trio de protagonistas foi bem problemático, deu errado, foi muito diferente do ótimo trio paulistano. No papel-título, a desinteressante (para falar o mínimo) Jennifer Rowley; como Cavaradossi, Joseph Calleja, cujos problemas de canto são proporcionais ao tamanho de sua voz. O caso de Scarpia foi mais complicado: Wolfgang Koch, ótimo barítono, mas com a voz aparentemente um pouco gasta e difícil de ser ouvida no Met, deixando o Scarpia apagado e quase inofensivo. Mesmo assim, não foi uma experiência desastrosa, porque em Tosca a força da orquestra é muito grande, e a orquestra do Met, dirigida por Carlo Rizzi, conseguiu se impor sobre todos os problemas do elenco.
Em São Paulo, a situação foi exatamente a inversa: se o trio de protagonistas brilhou, a Orquestra Sinfônica Municipal, sempre sob a regência de Roberto Minczuk, que se promoveu de regente titular a regente exclusivo, se acomodou a um acompanhamento burocrático, rotineiro, com uma sonoridade em alguns momentos agressiva – o que, aliás, já pode ser considerado uma característica da OSM. Os tempi tenderam ao rápido, mas após ter visto, recentemente, algumas óperas com execuções um tanto arrastadas, com cantores no limite e o público pestanejando, não me queixo disso: antes assim, mais rápido, mais fluente, que lento demais. No final da ópera, quando Cavaradossi está sendo executado – Ecco un artista! – é a orquestra, com aquele misto de esperança, suspense e marcha fúnebre, que dá o páthos, e, pelo menos na sexta-feira, o romantismo pucciniano não veio.
Para encerrar, uma palavra sobre ópera em forma de concerto. Já adianto: não é a minha preferência: o teatro faz parte da ópera. Essa conversa de que encenação não faz falta, que só atrapalha, é uma visão reduzida e ranzinza da ópera, no entanto a ópera em forma de concerto tem a sua importância, ela coloca em primeiro plano o aspecto musical, é um interessante exercício para o público e para os intérpretes, e é praticada no mundo inteiro. Somente neste ano, esta foi a quinta vez que assisti a uma ópera nesse formato – todas mais ou menos seguindo a mesma linha: às vezes as estantes estão lá, às vezes não, mas os artistas se movimentam, interagem, a ópera tem vida, não é engessada. Não consta nome de um diretor cênico no programa do TMSP, mas houve algumas indicações cênicas. Dentre elas, destaco, no fim do primeiro ato, a entrada de Scarpia pelo corredor central, de onde já atacou o seu autoritário e sonoro “Un tal baccano in chiesa!”, antes de subir ao palco – e digo Scarpia, porque quem passou, com passos pesados, ao lado da minha poltrona, não foi Leonardo Neiva, foi Scarpia: Scarpia perante nós, e Scarpia avanti a Dio!
No ano que vem, celebraremos o centenário da morte de Puccini. Neste ano, o Theatro Municipal de São Paulo fez duas obras do compositor: La Fanciulla del West, encenada, e Tosca, em concerto. Sabemos que o teatro não tem um planejamento de longo prazo: ao contrário de todos os teatros sérios do mundo, a programação do 2023 foi feita em 2022, e, agora, está sendo elaborada a programação do ano que vem. Com certeza, quando a Fanciulla, que deveria ser o último título de 2022, foi adiada para 2023, e a Tosca também foi programada, ninguém estava pensando no centenário de Puccini, no longínquo ano de 2024 – se é que alguém sabia disso.
Agora resta a pergunta: o que teremos no ano que vem para celebrar a efeméride? A resposta ideal seria: a remontagem, com elenco digno da data, de Turandot, última ópera de Puccini, cuja composição foi interrompida pela morte do compositor (e que, por isso, só foi estreada dois anos depois, em 1926). Essa resposta quase óbvia é reforçada pelo fato de que o teatro tem a obrigação legal de fazer uma remontagem a cada temporada, mas como nem tudo é racional, provavelmente só ficaremos sabendo no ano que vem. Turandot? Outra ópera de Puccini? Uma gala digna de um grande teatro, com elenco internacional (o que inclui, claro, os brasileiros do primeiro time), como foi a Gala Tebaldi, no ano passado? Ou, quem sabe, uma gala digna de um teatro provinciano, com elenco “a ser anunciado”, formado pelos cantores brasileiros que estiverem desocupados no momento, convidados um mês antes, e com o maestro saltitando para animar a galera (como, ao que tudo indica, será a Gala Callas deste ano, ainda com “solistas a serem anunciados”)? No ano que vem, saberemos se o que vimos na Tosca foi, realmente, uma mudança de rumo do teatro, um salto de qualidade, ou mero acidente. Oremus!
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Fotos: Fabiana Crepaldi e Rui Porto.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
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