O sagrado e o profano

Um duplo bicentenário na abertura da temporada 2024 do TMSP. 

Theatro Municipal de São Paulo, 27 de janeiro de 2024

Se tivéssemos que eleger um monumento musical da humanidade, não tenho dúvidas de que a Nona Sinfonia de Beethoven seria uma forte candidata a levar o título. Ela é um divisor de águas, é um símbolo humanista, um símbolo de união e uma obra-prima. Esse monumento estreou há exatos duzentos anos, no dia 7 de maio de 1824, em Viena. No mesmo ano, em Ansfelden, também na Áustria, no dia 4 de setembro nasceu Anton Bruckner, um compositor cujas sinfonias viriam a marcar a juventude vienense do fin de siecle.

Para abrir a sua temporada 2024 e celebrar, no dia 25 de janeiro, os 470 anos da cidade de São Paulo, o Theatro Municipal apresentou um programa que teve o Te Deum de Bruckner na primeira parte e, na segunda, a Sinfonia nº 9 de Beethoven. Um programa bem elaborado, uma escolha feliz. E o mérito do programa vai além da comemoração dos dois bicentenários: as duas obras contam com coro e o mesmo quarteto de solistas, e começam com intervalos de quinta e quarta. No Te Deum, isso aparece na forma de um ostinato – algo que, aliás, Bruckner já havia utilizado em suas sinfonias. É impossível ouvir as notas iniciais do Te Deum e não lembrar da Nona de Beethoven.

Com duas obras de tão grande densidade musical, verdadeiramente transcendentais, também foi feliz o título dado ao concerto: “Catedrais sonoras”. Isso já indicava com precisão qual deveria ser a atitude diante dessas duas obras sagradas: de devoção, de contemplação. 

No entanto, lamentavelmente, não foi bem assim. Não foi, como o leitor verá, um concerto sem méritos musicais, mas houve certo viés circense. Isso agradou aqueles que foram ao teatro para ver um espetáculo, ao mesmo tempo que causou incômodo na parcela do público que estava em busca do sagrado.

O numeroso corpo coral – uma união do Coro Lírico Municipal e do Coral Paulistano (dirigidos, respectivamente, por Mário Zaccaro e Maíra Ferreira) – não estava no fundo do palco, perto da (problemática) concha acústica, como de costume, mas ocupou todo o Balcão Nobre. Do lado par ficaram os naipes femininos e, do ímpar, os masculinos. Consequentemente, o maestro Roberto Minczuk regeu o Te Deum de frente para a plateia.

Para quem, como eu, estava no centro do Foyer, um andar acima do coro, embora tenha ficado mais difícil de ouvir tenores e contraltos, a colocação do coro fora do palco foi benéfica, uma vez que diminuiu a reverberação causada pela concha acústica: durante o Te Deum, foi o som dos metais que sofreu mais com essas distorções. Amigos habituados a frequentar concertos, porém, reportaram um som bem problemático em lugares não tão centrais como o meu.

Na parte traseira do palco, onde deveria ficar o coro, estava um público que, segundo me foi dito, pouco ouviu. Uma das pessoas que adquiriu esses ingressos (que o teatro chamou de “especiais”) mudou de lugar no intervalo, reclamou que a concha acústica “reverbera o som de uma maneira bastante incômoda” – coisa que, mesmo da plateia, já constatei, no ano passado, na Tosca em forma de concerto.

No entanto, a justificativa dada pelo maestro Minczuk para o deslocamento do coro não foi a reverberação. No início da segunda parte, antes da Nona Sinfonia, ele se dirigiu ao público — atitude sempre louvável quando utilizada para instruir o público e aproximá-lo das obras. Após apresentar-se, fez propaganda da orquestra, dos coros, da temporada e das assinaturas, pediu para que os assinantes levantassem as mãos, para que se manifestassem os que haviam gostado do Te Deum de Bruckner, saudou o público que estava no fundo do palco e falou dos duzentos anos de Bruckner, cuja sétima sinfonia será tocada no próximo concerto. E a Nona?! O maestro nem lembrou dos duzentos anos da obra, mas apenas que é tocada com certa frequência, então “a ideia desse concerto era fazer uma coisa diferente” que, segundo ele, era esse “efeito surround”. Ele falou, também, que gostava de novidade e que da próxima vez provavelmente iria inventar outra coisa – “o coro sempre topa tudo!”

Se eu soubesse desse desejo de inovação, teria enviado ao teatro a minha sugestão: fazer com que o público lançasse um olhar diferente sobre a obra a partir da reflexão sobre o seu bicentenário, mas, como o concerto já passou, deixo a sugestão para o que podem inventar da próxima vez: explorar a partitura, ver os detalhes, as nuances, a dinâmica, os andamentos… coisas que não foram feitas dessa vez, ou, pelo menos, não foram perceptíveis na interpretação da Orquestra Sinfônica Municipal. Ainda: buscar uma sonoridade mais uniforme (apesar da concha…), tentar fazer com que as trompas toquem com mais precisão. Podem, ainda, buscar uma interpretação mais introspectiva e menos espetacular – o que seria significativamente inovador.

De todo o concerto, o primeiro movimento da Nona foi o que mais deixou a desejar, com mais problemas de afinação e praticamente sem nuances. Do Scherzo em diante, as coisas entraram bem nos eixos, com direito a belos momentos.

E foi em um desses momentos transcendentais, de grande beleza, durante o quarto movimento, que o sagrado se fez presente por um breve instante, para, em seguida, ser varrido pelo profano. Und der Cherub steht vor Gott (e o querubim está diante de Deus), cantava o coro, com um belo som que tomou conta do ambiente. Nos rostos dos solistas, que por alguns instantes libertaram-se de suas posturas austeras e se puseram a contemplar o coro que envolvia o teatro, era visível o êxtase causado pela música de Beethoven, todos os intérpretes estavam em comunhão. Porém, após a fermata (vor Gott), um corte marcado com largos gestos e, em vez de o som continuar ecoando durante a pausa que precede o Allegro assai vivace, o público se pôs a gritar e aplaudir. Nos rostos dos solistas, a alegria do êxtase musical deu lugar a uma expressão de choque de realidade. E o profano espírito de espetáculo mostrou-se mais forte que o sagrado.

Um ponto forte do concerto veio do quarteto de solistas, sobretudo do baixo Savio Sperandio e da mezzosoprano Luisa Francesconi. Se Sperandio se sobressaiu especialmente com o seu impecável solo inicial no Presto do quarto movimento da Nona (O Freunde, nicht diese Töne!), apesar de os dois compositores não terem contemplado a mezzosoprano com um solo de maior destaque, Francesconi fez-se ouvir o tempo todo, tanto no Te Deum quanto na Nona, transmitindo segurança e dando densidade ao quarteto. É muito significativo ter solistas do porte deles nessa dupla celebração de bicentenário e aniversário da cidade.

Quanto às vozes agudas do quarteto, a jovem Isabella Luchi exibiu um belo timbre, mas uma voz ainda imatura e com pouca projeção. Já Anibal Mancini, apesar de ter enfrentado dificuldades em um repertório que não é o ideal para a sua tessitura, teve um desempenho satisfatório na Nona Sinfonia.   

Anibal Mancini, Luisa Francesconi, Isabella Luchi e Savio Sperandio (foto retirada das redes sociais dos cantores).

4 comentários

  1. Suas críticas são sempre impecáveis, Fabiana. Vamos torcer para que nosso maestro inovador, sempre muito vaidoso, as ouça e preste mais atenção na música e menos no seu próprio espetáculo.

  2. Estive no dia 26 e, felizmente, ninguém gritou ou aplaudiu antes da hora. Todavia, como me sentei no meio da plateia, junto ao corredor central, na fila J, foi muito difícil ouvir a orquestra nos momentos em que o coro – ou melhor, os dois lados do coro – cantava. Uma espectadora atrás de mim não se conteve e, lá pelas tantas – quando o coro esteve “exultante” -, reclamou da “barulheira”. (E ela, no fundo, não estava errada.)

  3. Infelizmente esta “nona” foi a pior que ouvi em meus 65 anos. Sentado sobre o coro feminino, mal conseguia ouvir as cantoras, mormente quando os dois coros cantavam juntos. Não diria que a orquestra desafinou, muitos músicos já devem conhecê-la de cor, mas o Maestro Mincksuk só fazer um ensaio geral porque estava de férias é no mínimo descaso a este monumento em seu bicentenário. Beethoven é paixão, o homem estava totalmente surdo ao escrever uma das maiores obras sinfônicas de todos os tempos. E paixão foi o que mais faltou à orquestra.
    Nunca ouvira o Tedeum ao vivo, portanto não vou opinar. Mas, depois desta “nona” fico feliz por não ter assinado aos concertos. E, pelo amor de Deus, desmiontem aquela coisa imitando bambú que chamam de ” concha acústica” . Para mim, concha acústica se utiliza para amplificar o som ( algo desnecessário no Municipal), não tolhê-lo.

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