OFMG, Sinfônica de Goiânia e FAO são os exemplos mais recentes de como os desmandos políticos afetam diretamente as instituições.
O Brasil não é para principiantes. Que o digam músicos profissionais de formação clássica, cantores líricos e administradores de orquestras, teatros de ópera e festivais da área país afora.
Ainda no começo de março, a notícia do cancelamento do Festival Amazonas de Ópera (FAO), dada em primeira mão por Notas Musicais, pegou o meio musical brasileiro de surpresa. Até então, já se sabia que a programação da edição de 2024 do Festival seria mais enxuta em relação àquela pensada originalmente. De uma hora para outra… cancelado! Tratamos do assunto nesta notícia e neste artigo.
Agora, no último fim de semana, o site da Revista Concerto reportou mais duas péssimas notícias, praticamente concomitantes:
- O então secretário municipal de Cultura de Goiânia, Zander Fábio, de saída do cargo para concorrer nas próximas eleições (essa gente não perde a chance de conseguir uma “boquinha”), exonerou o elogiado regente Eliseu Ferreira do cargo de regente titular da Orquestra Sinfônica de Goiânia.
- O governo do estado de Minas Gerais, por meio da Codemig (Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais), estabeleceu um “Acordo de Cooperação Técnica” com o SESI (Serviço Social da Indústria) para que a gestão da Sala Minas Gerais (atual sede da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – OFMG), passe a ser exercida pelo SESI Minas a partir do meio do ano. O Instituto Cultural Filarmônica, uma associação civil sem fins lucrativos que gere a OFMG, não foi convidado para o acordo, e alega só ter sabido deste pela imprensa. O documento literalmente afasta os gestores da OFMG da administração do espaço e desaloja o grupo.
Como sempre acontece nessas ocasiões, as “justificativas” são as mais alienantes (para não dizer imbecilizantes) possíveis. As referidas notícias disponíveis no site da Revista Concerto relatam tais “justificativas” e explicitam bem o nível de mediocridade das “autoridades”.
Neste artigo, mais do que me ater a casos específicos, interessa-me apontar o nível de fragilidade das instituições musicais clássicas brasileiras. Todas, sem exceção, dependem totalmente de recursos públicos. Até mesmo os patrocínios que angariam junto a empresas privadas são, em última análise, públicos, uma vez que derivam de incentivos fiscais.
Não haveria qualquer problema nisso se, no Brasil, recursos públicos fossem utilizados pelos políticos com seriedade. Sabemos, no entanto, como eles, os políticos, tratam o erário: quando não para o seu próprio benefício (como no caso do ladrão confesso Sérgio Cabral Filho no Rio de Janeiro), é sempre em prol do seu grupo político, visando a manutenção do poder desse grupo ao longo do tempo. Praticamente nenhum político brasileiro está realmente interessado em fortalecer instituições, a não ser que tal “fortalecimento” venha acompanhado da garantia de manutenção de tais instituições sob a tutela do seu grupo por um longo período.
A podridão política não impede, é verdade, que de tempos em tempos surjam boas iniciativas. E no campo da música, a OSESP ainda é o melhor exemplo que temos. O problema é que esses bons exemplos duram apenas pelo tempo que eles, os políticos, permitem. Se, de uma hora para outra, um eventual governador de São Paulo cismar que deve acabar com a OSESP, ele acaba e pronto. Fim de papo.
Ah, mas existe um contrato de gestão, dirão alguns inocentes ou pseudo-inocentes. “Bela porcaria”, pensaria esse eventual governador: basta esperar que o prazo do contrato vigente (que se renova periodicamente) se encerre, para que então o estado opte por não renová-lo ou por descaracterizá-lo.
É, ou não é, o que está acontecendo com a OFMG? É evidente que é: um contrato está chegando ao seu vencimento (aquele entre a Codemig e o Instituto Cultural Filarmônica) e não será renovado. Simples, cristalino, óbvio.
Além disso, também já está mais do que provado que, mesmo quando a gestão de instituições culturais acontece por meio de Organizações Sociais (as chamadas OSs), se o governo quiser interferir na gestão, ele vai interferir e pronto. Já vimos isso acontecer em mais de uma instituição de São Paulo em algumas oportunidades. E sempre que a intervenção aconteceu, a OS de plantão aceitou-a quietinha, sem reclamar, ou no máximo jogando algum “verde” para a imprensa, para que esta, quem sabe, lhe comprasse as dores. Some-se a isso o fato de que nem todas as OSs sabem realmente o que estão fazendo (vide o histórico de “gestões” do TMSP), e o cenário não é lá muito animador.
Para piorar, o meio musical clássico não se destaca por ser exatamente unido. Afinal, quando a farinha é pouca, cada um cuida de garantir primeiro o seu pirão. Nesse caso da OFMG, o Fórum Brasileiro de Ópera, Dança & Música de Concerto até emitiu, é verdade, uma carta aberta a Leonidas de Oliveira, secretário de Cultura e Turismo de Minas Gerais. Se é melhor que nada, a carta é também tão branda, mas tão branda, que só faltou a quem a redigiu pedir desculpas ao secretário por tê-la emitido.
Mais consistente foi outra carta aberta, esta de autoria da Academia Brasileira de Música (e assinada também pelos músicos das orquestras do Rio de Janeiro) para o governador do estado de Minas Gerais, Romeu Zema. Na carta, a ABM afirma que “Ao expulsar a orquestra de sua sede e abrir espaço para que a Sala Minas Gerais receba espetáculos não condizentes com uma sala de concertos, o Governo do Estado de Minas Gerais comete um grave erro e uma tremenda injustiça, interferindo deleteriamente no desenvolvimento artístico da orquestra (…)”.
A esta altura, ainda não é possível dizer se há ou não alguma boa vontade mínima que possa reverter a situação de despejo da OFMG, ou ao menos inserir o Instituto Cultural Filarmônica na gestão compartilhada da Sala Minas Gerais. No caso do Festival Amazonas de Ópera, no entanto, já está certo que ele não se realizará em 2024, e há até quem tema que não volte a se realizar com o governo amazonense atual. O tempo dirá se o temor procede.
O que se sabe – e os últimos acontecimentos deixam isso por demais evidente – é que chega a ser assustadora, ainda que não surpreendente, a fragilidade das instituições musicais clássicas brasileiras, assim como a sua total dependência dos políticos de ocasião, sem quaisquer salvaguardas legais que lhes garantam sustento e continuidade a longo prazo. Contratos, como já mencionamos, podem não ser renovados ou até mesmo rescindidos.
A probabilidade de mudança nesse cenário é mínima, pois, para haver mudança, seria necessário que houvesse melhorias na legislação vinculada à gestão das instituições culturais. E, como sabemos, o meio musical clássico não tem lá muita força para isso, ao mesmo tempo em que a política que se faz no país – à direita, à esquerda e ao centro – é cada vez mais populista, cada vez mais voltada para agradar exclusivamente a turba que lhe sustenta eleitoralmente.
Notas Musicais repudia com veemência as decisões políticas tomadas única e exclusivamente com o intuito evidente de prejudicar, quando não de simplesmente destruir, as instituições musicais clássicas brasileiras. As recentes decisões referentes ao FAO, à OFMG e à Sinfônica de Goiânia são, na melhor das hipóteses, burras, intelectualmente limitadas pela estupidez de indivíduos que não têm a menor preparação para exercer os cargos que exercem; ou, na pior das hipóteses, seriam mesmo decisões mal-intencionadas, com o intuito de arruinar o que se levou anos para erguer e desenvolver.
P.S. 1: nesta terça-feira, 09 de abril, a Folha de São Paulo informou que um abaixo-assinado contra a nova gestão da Sala Minas Gerais “já somava 35 mil assinaturas”, e que o “Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais determinou a intimação do diretor presidente da Codemig, Thiago Toscano, para prestar esclarecimentos sobre o plano da nova gestão”. Boas notícias, pois, sem pressão forte, nada acontece. Vamos observar se isso resultará em algum efeito prático de reversão.
P.S. 2 (com doses cavalares de ironia): enquanto isso, no Rio de Janeiro… a prefeitura desta cidade perfeita, impecável, em que não falta nada, em que a população vive maravilhosamente bem e em perfeitas condições de segurança e mobilidade urbana, resolveu aportar R$ 10 milhões em patrocínio ao show da cantora pop Madonna na praia de Copacabana, previsto para o começo de maio. Mais uma decisão política populista – isso se não for coisa pior.
Foto: redes sociais da OFMG (OFMG na Sala Minas Gerais).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Leonardo, você pode comentar a falta de respeito da Sala Cecília Meireles no Rio de Janeiro para com seu público? Fechou para obras e até agora só se manifestou para dizer que haverá um concerto no início de maio. Nada de programação. E a OPES abriu mão de suas séries clássicas e virou orquestra de música popular.
Olá, Luiza! A programação, digamos, “clássica” da OPES decaiu muito, é verdade. São poucos concertos ao longo do ano, enquanto uma vertente mais popularesca tem prevalecido. É pena. Já quanto à Sala Cecília Meireles… bem, como você certamente sabe, no ano passado o governo do estado tirou da sua gestão um profissional, para colocar em seu lugar um protegido político. Difícil esperar muita coisa.
Sim, é isso. Mas me dá angústia que a sociedade nem os músicos se mobilizem contra isso. Sei que você não está na grande mídia, mas o blog tem bastante visibilidade e poderia ser bom fazer um resumo do deserto cultural do Rio de Janeiro. Em poucos anos, perdemos praticamente uma orquestra (a OPES), a OSB também deixou de ter as quatro séries de antigamente, a situação da Sala Cecília Meireles está péssima e do Theatro Municipal já há muito tempo não se pode esperar grande coisa. Mas essa conjunção de fatores em 2024 está fazendo com que este seja certamente o pior ano da música clássica no Rio de Janeiro depois de 2020. Mesmo em 2021, quando a Sala reabriu, pelo menos para música de câmara, tínhamos alguma coisa.