Cancelamento do “FAO”: silêncio e perda de credibilidade

Gestores do Festival preferem o silêncio, secretário não cumpre o que promete, e artistas ficam sem receber.

Quem cala consente, afirma o dito popular.

Desde que chegou a notícia do cancelamento da edição deste ano do Festival Amazonas de Ópera (FAO), dada em primeira mão por Notas Musicais ainda na noite de 07 de março, os principais gestores do evento (o diretor artístico, Luiz Fernando Malheiro, e a diretora executiva, Flávia Furtado) preferiram o silêncio.

Por um lado, tal silêncio é compreensível. Afinal, sabemos como funciona a política brasileira, na base do “quem não é por mim é contra mim”, e todos os nossos teatros de ópera estão, direta ou indiretamente, sob o guarda-chuva de governos estaduais ou municipais. Qualquer declaração contra uma decisão política pode resultar em perdas: de cargos, salários, contratos, visibilidade, prestígio, etc.

Por outro lado, e sempre há outro lado, não soa razoável essa falta de manifestação por parte dos gestores: trata-se do cancelamento do mais importante evento lírico do país – na verdade, o único evento de ópera no Brasil que alcança alguma repercussão internacional –, e que tem a mesma gestão há pouco mais de duas décadas. Não estamos falando de teatros do Sudeste, que costumeiramente são afetados por mudanças políticas (inclusive aqueles administrados por OSs, pois já foi mais do que provado que estes também estão sujeitos às vontades políticas de ocasião). A gestão do FAO sobreviveu a várias mudanças de governo, mantendo-se intocada.

Essa gestão longeva deveria ter um capital político e moral para abrir neste momento, ao menos, uma divergência. Ou não deveria? Procurados por jornalistas, os principais gestores do FAO preferiram ficar calados, talvez, quem sabe, esperando que a gritaria de terceiros fizesse algum efeito sem que precisassem se indispor. Mas…

Quem cala consente.

Secretário de Cultura perde credibilidade

Era bom demais para ser verdade!

Em novembro de 2022, o Festival Amazonas de Ópera fez vários anúncios: a programação da edição seguinte (em 2023, cumprida); a criação do Fundo Festival Amazonas de Ópera, com a pretensão de arrecadar R$ 50 milhões (isso inicialmente…) de futuros patrocinadores; e até mesmo as óperas que pretendia montar nos anos seguintes, como Die Meistersinger von Nürnberg, em 2025, e Guillaume Tell, em 2027. Tudo muito animador.

Em 2023, durante o Festival, foi anunciada a programação de 2024, e o secretário de Cultura do Amazonas, Marcos Apolo Muniz, chegou a afirmar que os interessados poderiam “se planejar para vir ao nosso estado. Além disso, a gente consegue prospectar mais apoio para que possamos ter uma cultura, acima de tudo fortalecida, com ainda mais geração de oportunidade e renda para os trabalhadores da cultura”.

Há algumas semanas, no entanto, e diante da necessidade da redução de gastos determinada por um decreto de agosto de 2023 do governo amazonense, já se sabia que a programação prometida não seria mais cumprida, e a nova previsão era de uma programação mais enxuta (com apenas uma ópera encenada, em vez das cinco pensadas originalmente; e com duas em forma de concerto para complementar o Festival). Não era o ideal, claro, mas era um caminho, uma possibilidade de se evitar o que aconteceu em 2015: o cancelamento do FAO. E aqui parece ter faltado força política ao secretário Muniz, porque nem isso ele conseguiu.

Com o cancelamento consumado da edição de 2024, a secretaria de Muniz emitiu uma nota oficial na qual, dentre outras coisas, afirma que se buscou “nos últimos meses a captação de recursos, junto à iniciativa privada, dentre outras possibilidades de parcerias que viabilizassem a produção do evento deste ano, porém sem conseguir chegar aos valores necessários”.

Ora, mas a redução da programação já não cumpria o objetivo da redução de gastos? Afinal, segundo a mesma nota supracitada, o decreto do governo determinava “redução de gastos”, e não suspensão. Poder-se-ia discutir também se dinheiro utilizado em Cultura é “gasto” ou “investimento”, mas isso é outra história.

Além disso, há uma pergunta obrigatória: e o tal Fundo que seria criado? Em que pé está? Já foi efetivamente constituído? Já captou alguma coisa? Ninguém tocou no assunto para esclarecer nada sobre isso.

Com todas essas questões, é muito difícil continuar acreditando em um secretário que não cumpre o que promete; e que, mesmo sabendo desde agosto de 2023 sobre a contenção de gastos, não tomou providências em tempo hábil para evitar o pior. E ainda: com o cancelamento da edição deste ano, claro, aquela projeção de óperas para os próximos festivais, citada ali em cima (Meistersinger e Guillaume, dentre outras), provavelmente deverá ser bastante afetada. Tudo…

Era bom demais para ser verdade!

E daí?

E os(as) artistas convidados(as)? Ao aceitarem as propostas de trabalho do FAO, pelo menos alguns(mas) deles(as) devem ter recusado outros convites para o mesmo período e devem ter se dedicado a aprender as suas partes. Há garantias contratuais (segurança jurídica) para que tais artistas recebam, ao menos, um percentual do valor inicialmente combinado?

Ouso dizer que não: até as paredes dos teatros brasileiros sabem que, por aqui, via de regra e salvo exceções, contratos são assinados pouco antes de os ensaios começarem – isso quando a sua formalização não acontece com os ensaios já em andamento. Essa prática administrativa tem nome: amadorismo. E esse amadorismo, claro, afeta mais profissionais (artistas e técnicos) que são contratados(as) por projeto (no caso em questão, por ópera, ou pelo período do Festival).

No que diz respeito às equipes de criação, o problema é o mesmo: faltando cerca de um mês para a abertura prevista do FAO que não mais acontecerá, os(as) profissionais muito provavelmente já estavam com os seus processos criativos (como, por exemplo, a criação/elaboração de cenários e figurinos) em andamento, talvez até mesmo em fase avançada. Do contrário, não teriam tempo hábil para desenvolver trabalhos realmente de qualidade.

Até agora, ninguém falou nada sobre adiar as óperas de 2024 para 2025, ninguém se manifestou sobre a situação dos(as) profissionais que ficarão sem receber, ninguém sequer sugeriu que os convites para este ano seriam honrados no ano que vem. É muito provável, portanto, que esses(as) profissionais – ou pelo menos alguns(mas) deles(as) – tenham trabalhado de graça.

E daí?


Nota do autor: o espaço está aberto para o caso de algum responsável se dignar a responder as perguntas do artigo, embora seja pouco provável que alguém o faça. De qualquer forma, nunca é demais lembrar: quem cala consente.


Foto: Michael Dantas.

Um comentário

  1. […] Ainda no começo de março, a notícia do cancelamento do Festival Amazonas de Ópera (FAO), dada em primeira mão por Notas Musicais, pegou o meio musical brasileiro de surpresa. Até então, já se sabia que a programação da edição de 2024 do Festival seria mais enxuta em relação àquela pensada originalmente. De uma hora para outra… cancelado! Tratamos do assunto nesta notícia e neste artigo. […]

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