Um “Barbeiro” divertido salva o ano do TMRJ

Produção da ópera de Rossini redime o Theatro Municipal do Rio de Janeiro de um Mozart vocalmente desastroso; mas cenário é o seu ponto fraco.

Il Barbiere di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha, 1816)
Ópera-bufa em dois atos

Música: Gioachino Rossini (1792-1868)
Libreto: Cesare Sterbini (1783-1831)

Theatro Municipal do Rio de Janeiro

18 e 20 de novembro de 2022 (o autor assistiu às duas primeiras récitas, mas a resenha tem como base a récita de estreia)

Direção musical: Felipe Prazeres
Direção cênica: Julianna Santos

Elenco
Figaro: Vinícius Atique, barítono
Rosina: Lara Cavalcanti, mezzosoprano
Conde de Almaviva: Anibal Mancini, tenor
Don Bartolo: Saulo Javan, baixo
Don Basilio: Murilo Neves, baixo
Berta: Rose Provenzano-Páscoa, soprano
Fiorello: Leonardo Thieze, baixo
Oficial: Flávio Mello, barítono

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
Coro do Theatro Municipal

Quem entende um pouquinho de voz (basta um pouquinho) saiu decepcionado do Theatro Municipal do Rio de Janeiro quando a casa montou, em julho último, a ópera Don Giovanni, de Mozart, com um elenco desgraçadamente mal escalado. Em um ano em que o único teatro de ópera da cidade oferece ao seu público apenas duas produções líricas com encenação completa, 50% dessa “temporada” ridiculamente pequena já havia sido desperdiçada (pelo menos para quem não se contenta com qualquer coisa).

Daí, havia a expectativa sobre como seria a nova montagem de Il Barbiere di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha), ópera-bufa em dois atos de Gioachino Rossini sobre libreto de Cesare Sterbini, com base na comédia Le Barbier de Séville, de Pierre Augustin Caron de Beaumarchais. Esse Barbeiro redimiria o TMRJ, ou afundaria de vez o seu ano lírico? Fico com a primeira opção. E, ainda que a presente produção também tenha sofrido com alguns senões, como se verá abaixo, havia agora um elenco bem mais adequado (mesmo que não em sua totalidade) às exigências da partitura.

Encenação divertida, mas não isenta de problemas

Rose Provenzano-Páscoa, Murilo Neves, Saulo Javan, Vinicius Atique, Anibal Mancini e Lara Cavalcanti

A concepção de Julianna Santos para a produção do Municipal transporta a trama para um período pós-Segunda Guerra, e procura ressaltar, por meio de Rosina, a situação das mulheres, ao longo dos séculos privadas de educação e, principalmente, liberdade – o que ocorre assustadoramente até os dias atuais em algumas sociedades. A qualidade da direção de atores de Santos é alta, detalhista e extremamente respeitosa para com a música de Rossini. Em seu trabalho não há, como se viu no último Don Giovanni, trechos em que a cena “briga” com a música. Talvez tenha faltado à diretora apenas caracterizar melhor o temperamento de Rosina.

Por outro lado, o trabalho da encenadora conta com um calcanhar de Aquiles: o péssimo cenário de Giorgia Massetani. Pequeno, em dois níveis, com escadas que rangem quando os cantores sobem os seus degraus, confeccionado em material que não contribui em nada para auxiliar a projeção das vozes dos solistas, e mantendo as coxias totalmente abertas, é um cenário que não funciona em um palco enorme como o do TMRJ, onde a acústica não é das mais amigáveis. Evito até mesmo cair na tentação de chamá-lo de “funcional”, porque não pode ter nada de funcional um cenário que exige que uma tropa de técnicos invada o palco várias vezes durante a apresentação para reposicioná-lo.

Com base em trabalhos seus que vi em São Paulo, posso afirmar que Massetani é uma profissional competente, mas aqui claramente errou a mão, ao não dimensionar o tipo de cenário que criou às proporções do palco ao qual ele se destinava. Em outras palavras, criou para um palco enorme uma ambientação que serviria apenas a um palco pequeno.

Como resultado, há nítida perda de qualidade na projeção das vozes dos solistas sempre que estes cantam na parte de cima do cenário, ou então quando não cantam na frente do palco – e, em ambas as situações, especialmente se eles não estiverem posicionados de frente para a plateia. Eu fico impressionado como, muitas vezes, ninguém da equipe criativa pensa nessas questões. Isso é ópera! E sendo ópera, a ambientação cênica deve ser pensada, elaborada e realizada para facilitar o trabalho dos cantores, e não para lhes criar dificuldades.

Descontada essa questão referente aos cenários, é importante registrar que, no geral, Julianna Santos alcança um resultado final divertido e homogêneo. Para isso, contribuem os caricatos figurinos de Olintho Malaquias e o correto desenho de luz, realizado a quatro mãos por Fabio Retti e Paulo Ornellas. A propósito, não se sabe por que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro precisou contratar dois profissionais para criar a iluminação dessa montagem, enquanto economizava no cenário.

Música bem defendida, com ressalvas

Vinicius Atique

Uma característica marcante do estilo de Rossini é a energia da sua orquestração. Muitas vezes, o efeito dramático proporcionado pela sua música é atingido por meio da união entre melodia e ritmo, com um apoio orquestral enérgico, inabalável. Coube ao novo regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, Felipe Prazeres, cuidar dessa energia orquestral na estreia de 18 de novembro, e ele o fez, na maior parte do tempo, com competência, trabalhando bem a dinâmica e dosando o volume do conjunto para não encobrir os cantores, exceto nos concertati.

Exatamente nesses trechos em que o coro canta junto com os solistas, e nos quais a orquestra cresce de maneira natural, houve desequilíbrio sonoro: frases como “Alternando questo e quello pesantissimo martello” (do concertato que encerra o primeiro ato) restaram inaudíveis. Felipe Prazeres pecou, portanto, no trabalho de equalização do som nesses momentos, mas é muito difícil apontar até onde vai a responsabilidade do regente, quando, no palco, havia uma ambientação cênica que não dava qualquer suporte aos solistas para que estes projetassem as suas vozes.

A OSTM apresentou os deslizes de sempre em termos de sonoridade e articulação, mas em nível menor em relação a apresentações recentes. Ao cravo, esteve o sempre competente Eduardo Antonello. O Coro do Theatro Municipal, preparado por Priscila Bomfim e representado nesta ópera por um grupo de vozes masculinas, apresentou-se bem em suas intervenções, mas também aqui faltou capricho na dosagem do volume vocal do conjunto em relação aos solistas.

Dentre os personagens terciários, Roberto Lima deu vida ao mudo Tabelião; Leonardo Thieze foi um Fiorello vocalmente discreto, sem qualquer destaque; Flávio Mello soube aproveitar mais as suas poucas frases como o Oficial da guarda; e Rose Provenzano-Páscoa, apesar dos deslizes vocais, encarnou bem a criada Berta, cuja caracterização foi claramente inspirada no célebre pôster norte-americano “Rosie the Riveter”, que acabou se transformando em um símbolo feminista.

No elenco principal, a única decepção foi o Don Basilio do baixo Murilo Neves – que, não por acaso, participou do desastre vocal mozartiano de julho último. Diga-se, para ser justo, que Neves ofereceu uma performance cênica impecável, sem dúvida uma das melhores atuações cênicas da sua carreira, mas a sua voz é (na verdade, sempre foi) por demais problemática, com emissão opaca, afinação oscilante, domínio técnico de qualidade para lá de duvidosa, e uma região aguda para a qual nem devem existir adjetivos. E sendo assim, o solista não conseguiu interpretar em condições vocais mínimas aceitáveis a maravilhosa ária La calunnia. É uma pena, mas é o que é.

O baixo Saulo Javan viveu Don Bartolo com ótima presença e voz razoável, que correu bem pelas frases aceleradas da sua ária, A un dottor della mia sorte. Pode-se dizer que Javan conseguiu pronunciar quase todas as palavras da ária – fato raro, já que muitos cantores acabam “comendo” várias delas. Para além disso, contribuiu bem nos números de conjunto, e, em algumas passagens em concertato, a sua era a única voz nitidamente audível.

A maior incógnita do elenco desse Barbeiro, pelo menos para mim, era a mezzosoprano Lara Cavalcanti, já que eu não fazia ideia sobre o que esperar da sua Rosina, e o resultado foi, em geral, satisfatório. Em termos vocais, a artista somente deixou a desejar na região mais grave da tessitura da personagem – dificuldade notada justamente na sua cavatina, Una voce poco fa –, mas, em geral, demonstrou um bom domínio técnico, inclusive em termos de agilidade, e cantou bem a sua ária do segundo ato, Contro un cor che accende amore.

O barítono Vinicius Atique interpretou Figaro com desenvoltura. A celebérrima cavatina do barbeiro mais famoso do mundo, Largo al factotum, chegou a me preocupar no começo da récita, pois não rendeu tão bem, com a voz sem muito brilho, mas a preocupação acabou ali. Já a partir do seu número musical seguinte, o dueto com o tenor All’idea di quel metallo, o artista se soltou, e ofereceu uma performance consistente sob todos os aspectos: voz firme, boa técnica de agilidade, bela presença e a cereja do bolo: foi o próprio Atique que tocou o violão (muito bem, a propósito) que acompanha o tenor durante a canção Se il mio nome saper voi bramate.

E, por fim, exatamente ele, o tenor. Afinal de contas, o que é a voz de Anibal Mancini? Rossiniana até a medula, essa voz correu maravilhosamente por toda a duração da ópera, com um domínio técnico assombroso, agilidade impecável e um timbre belíssimo. A cavatina do Conde de Almaviva, Ecco, ridente in cielo, e a já citada canção, acompanhada ao violão pelo barítono, foram interpretadas com extrema precisão e com expressividade ímpar.

O trecho inicial do finale do primeiro ato, quando o Conde se disfarça de soldado (Ehi di casa… buona gente…), e o dueto do começo do segundo ato, quando se disfarça de professor de música (Pace e gioia sia con voi), também merecem ser mencionados, pela perfeita união dessa já citada qualidade vocal com uma ótima atuação cênica, de presença cômica impagável. A voz maravilhosa de Anibal Mancini é o que é desde que a ouvi pela primeira vez, mas o artista tinha ainda um caminho a trilhar para desenvolver a sua performance cênica. Neste Barbeiro do Municipal do Rio, ele mostra o quanto pode render em cena quando bem dirigido. E, com um cantor deste calibre à disposição, cabe discussão sobre o corte tradicional da ária e da cabaletta do Conde quase no final da ópera, Cessa di più resistere / Ah, il più lieto, il più felice.

Rose Provenzano-Páscoa, Lara Cavalcanti e Coro

Nas óperas cômicas de Rossini, os números de conjunto têm grande importância, e dentre eles, os que mais se destacaram na récita de estreia foram exatamente aqueles que reuniram o tenor, o barítono e a mezzosoprano, todos muito bem interpretados: os duetos All’idea di quel metallo (Figaro e Conde) e Dunque io son… tu non m’inganni? (Rosina e Figaro), além do terceto Ah! Qual colpo inaspettato (Rosina, Conde, Figaro).

No fim das contas, soma-se aqui, subtrai-se ali, e o que temos é uma montagem de O Barbeiro de Sevilha que está longe de ser perfeita, mas que possui valores e merece ser conferida.

Ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no entanto, resta um longo caminho pela frente para retomar temporadas líricas minimamente dignas em termos quantitativos e qualitativos. Os seus dirigentes, artistas e funcionários costumam ter o fetiche de recorrer à história da casa para louvar as suas glórias. A história é muito importante, mas não servirá para nada se não inspirar o presente e o futuro.

“Joia da coroa”

A secretária de Cultura do estado do Rio de Janeiro, Danielle Ribeiro Barros, costuma se referir ao Theatro Municipal como a “joia da coroa” da cultura fluminense, terminologia que foi popularizada por ninguém menos que o ladrão e ex-governador Sérgio Cabral Filho. Cabe perguntar: que “joia da coroa” é essa que, pelo menos há uns seis anos, utiliza uma cortina sem vergonha em seu palco? Por que, nesse tempo todo, nenhum(a) presidente da Fundação Teatro Municipal e nenhum(a) secretário(a) de Cultura mandou restaurar a cortina principal do palco e seu respectivo mecanismo?

Coisas estranhas acontecem na bilheteria do TMRJ

Quando o Theatro Municipal abriu a venda de ingressos para a ópera O Barbeiro de Sevilha, uma parte bastante considerável dos assentos dos seus setores Plateia e Balcão Nobre estavam marcados como “bloqueados” para todas as récitas, e quase não havia bons lugares disponíveis para serem vendidos. Uma fonte informou que esses bloqueios se destinavam ao patrocinador e à Associação dos Amigos do Teatro Municipal.

Questionei o TMRJ oficialmente a respeito desses bloqueios, mas o teatro não respondeu da mesma forma, limitando-se a enviar uma resposta informal, segundo a qual teria ocorrido “um problema com a plataforma” de venda e que tudo já estaria regularizado. Depois disso, realmente foram liberados para a venda alguns assentos que, antes, estavam bloqueados, mas, como foram poucos, tudo indica que estava correta a informação segundo a qual os bloqueios se destinavam ao patrocinador e à AATM.

Nas duas primeiras récitas da ópera, em 18 e 20 de novembro, pude observar uma quantidade não desprezível de lugares vazios na Plateia. Bloquear assentos, reservando-os para quem não vai ao teatro, significa desrespeitar o público que se dispõe a pagar por esses assentos.

Um amigo deste autor, Leonardo Samu, foi pessoalmente à bilheteria do TMRJ no dia seguinte ao da abertura das vendas tentar comprar um ingresso para a última récita (26/11), e me enviou a seguinte mensagem por WhatsApp: “É uma vergonha esse Theatro Municipal. Não há ingressos disponíveis para a Plateia no dia 26, e no Balcão Nobre só há vagas laterais que são péssimas. O restante também está tudo ruim. Você tinha que ver a má vontade do atendente. Parecia que eu estava pedindo favor”.

Verdi em 2023?

Comenta-se nos bastidores que uma das óperas que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro pretende apresentar em 2023 seria La Traviata, de Giuseppe Verdi. Caso isso se confirme, essa poderia ser uma boa oportunidade para a casa voltar a presentar uma ópera com cenários de verdade, até porque a comparação com a última montagem dessa obra na casa (2001) será inevitável. Aguardemos.

Fotos: Daniel A. Rodrigues. Na foto principal, Lara Cavalcanti e Anibal Mancini.

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