Um Prokofiev imperdível em São Paulo

Produção fluente, muito bem dirigida e com boas vozes está em cartaz no TMSP, que adiou “La Fanciulla del West” para 2023.

L’Amour des Trois Oranges (O Amor das Três Laranjas, 1921)
Ópera em prólogo e quatro atos

Música e libreto em russo: Sergei Prokofiev (1891-1953)
Libreto em francês: Vera Janacópulos (1886 ou 1892*-1955) e Aleksei Stahl
* O ano de nascimento é impreciso

Theatro Municipal de São Paulo

30 de setembro de 2022

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Luiz Carlos Vasconcelos

Elenco:
Rei de Paus: Marco Antônio Assunção, baixo
Príncipe: Giovanni Tristacci, tenor
Princesa Clarice: Lidia Schäffer, mezzosoprano
Leandre: Leonardo Neiva, barítono
Truffaldino: Jean William, tenor
Pantalon: Johnny França, barítono
Mago Tchélio: Anderson Barbosa, baixo
Fada Morgana: Gabriella Pace, soprano
Ninette: Maria Sole Gallevi, soprano
Linette: Nathalia Serrano, contralto
Nicolette: Eleonora Bondar, mezzosoprano
Cozinheira: Gustavo Lassen, baixo
Farfarello: Daniel Lee, barítono
Sméraldine: Fernanda Nagashima, mezzosoprano
Mestre de Cerimônias: Mikael Coutinho, tenor
Arauto: Orlando Marcos, baixo

Orquestra Sinfônica Municipal
Coro Lírico Municipal

Texto atualizado: esta resenha foi atualizada em 05/10 para a inclusão do nome do trombonista que solou no palco durante o prólogo.

Se o leitor ainda não foi ao Theatro Municipal de São Paulo assistir à mais recente produção de ópera da casa, vá – e vá logo! Dividida em prólogo, quatro atos e onze cenas, O Amor das Três Laranjas (em russo, Lyubov k Tryom Apelsinam, ou em francês, L’Amour des Trois Oranges), ópera de Sergei Prokofiev sobre um libreto em russo do próprio compositor, que foi traduzido para o francês por Aleksei Stahl e pela soprano brasileira Vera Janacópulos, é a melhor dentre as montagens líricas realizadas em 2022 pelo TMSP.

A obra tem por base uma adaptação que o encenador russo Vsevolod Meyerhold fez de uma comédia do italiano Carlo Gozzi (L’Amore delle Tre Melarance), por sua vez baseada em um conto de fadas homônimo de Giambattista Basile.

A adaptação de Meyerhold modernizou a influência da Commedia dell’Arte, presente na obra de Gozzi, e acrescentou doses cavalares de Surrealismo: o Rei de Paus, soberano de um reino fictício, preocupa-se com o seu filho hipocondríaco. Para se curar, o Príncipe precisa rir, e inúmeros artifícios são utilizados para tentar alegrá-lo. Amaldiçoado pela fada Morgana, ele parte, acompanhado de Truffaldino, em busca de três laranjas que escondem três lindas princesas. Em meio às peripécias do Príncipe, têm lugar interesses políticos e disputas mágicas. A trama é apresentada com muito humor e ironia fina, e, no final, tudo acaba bem.

Para além desse enredo principal, há outro, secundário, em que um coro de “expectadores” pretende, no princípio, determinar que tipo de drama se verá no palco: tragédia, comédia, quem sabe uma obra romântica? Há até os chamados “cabeças ocas”, que sugerem uma farsa ao melhor estilo “besteirol”, ou seja, que não leve ninguém a pensar em nada. Mais adiante, tal qual o antigo coro grego, esses “expectadores” passam a comentar a ação e, não satisfeitos, chegam até mesmo a influenciar no que acontece na trama principal.

A música de Prokofiev, irresistível, chega com facilidade ao ouvido, e mescla melodias sugestivas a harmonias surpreendentes e ritmos vibrantes. É uma música fluente, por vezes despreocupada, por vezes irônica, em vários momentos enérgica, mas, em momento algum, desprovida de significado.

Excelente direção de atores

Giovanni Tristacci e Jean William

Muito fluente também é a encenação de Luiz Carlos Vasconcelos: o diretor consegue criar no palco do Municipal paulistano uma ação fluida, ágil, ao mesmo tempo inteligente e engraçada, que praticamente hipnotiza a plateia. Merece especial atenção e elogios o excelente trabalho de Vasconcelos na direção de atores: todos em cena sabem exatamente o que fazer – até mesmo o coro (o que costuma ser raro em produções brasileiras). O meio lírico brasileiro pode ter encontrado, quem sabe, um profissional mais ligado ao teatro de prosa e ao cinema com quem valha muito a pena dialogar mais vezes.

Simone Mina e Carolina Bertier respondem pela direção de arte, cenários e figurinos da produção, e tudo é realizado com muita competência. E, falando em cenários, uma comparação é inevitável: no que diz respeito à maneira como o espaço cênico é utilizado, há uma semelhança considerável entre o que foi feito nas produções de Aida e O Cavalheiro da Rosa e, agora, em O Amor das Três Laranjas.

Há/havia sempre alguma coisa ao redor do palco (cordas na ópera de Prokofiev, cubos na de Verdi, fundo preto na de Strauss); há/havia também acessórios que sobem e descem. Nesse sentido, todas utilizaram artifícios muito parecidos. A diferença é que, agora nas Três Laranjas, tudo funcionou melhor, fez mais sentido, estava mais de acordo com a obra em questão.

A luz de Wagner Pinto e Carina Tavares evidencia o contraste entre a claridade do palácio do Rei de Paus e o mundo sombrio da Fada Morgana. E o trabalho de caracterização de Westerley Dornellas complementa com perfeição uma encenação especial.

Vários solistas se destacam

Fernanda Nagashima, Leonardo Neiva e Lidia Schäffer

Em um elenco com nada menos que 16 solistas, é bastante gratificante quando a maioria entrega trabalhos qualificados. Começando por aqueles que estiveram abaixo da média, o baixo Marco Antônio Assunção (Rei de Paus) e a mezzosoprano Lidia Schäffer (Princesa Clarice), mesmo tendo se apresentando bem cenicamente na estreia de 30 de setembro, exibiram vozes de pouca expressão.

Já o baixo Anderson Barbosa (Mago Tchélio) merece um comentário à parte. A voz do artista, que foi indicado por este autor como revelação da temporada 2017, está simplesmente irreconhecível. Desde abril, quando pude conferir a sua interpretação da parte de Capellio na ópera I Capuleti e i Montecchi, de Bellini (produção do Theatro São Pedro), o solista tem apresentado problemas graves de emissão. Considerando a pouca disponibilidade de baixos brasileiros realmente qualificados no mercado, entendo que não podemos prescindir da voz de Anderson Barbosa, e exatamente por isso alguma coisa precisa ser feita. E precisa ser feita agora. As providências e os cuidados necessários devem ser tomados antes que a situação se torne irreversível. O artista e os profissionais que lhe empresariam necessitam estar atentos a isso, e devem agir o mais rapidamente possível.

Seguindo em frente, a soprano Maria Sole Gallevi viveu a princesa Ninette com desenvoltura, enquanto o barítono Daniel Lee interpretou bem o demônio Farfarello. O mesmo se pode dizer da Sméraldine da mezzosoprano Fernanda Nagashima. Os barítonos Johnny França (Pantalon) e Leonardo Neiva (Leandre) empregaram a qualidade de sempre às suas respectivas partes.

O tenor Jean William me parece ter encontrado em Truffaldino o grande momento da sua carreira até aqui. Apresentando uma voz segura do início ao fim e ótima atuação cênica, cativou o público com merecimento. Não ficou atrás o baixo Gustavo Lassen, que deu vida à Creonta, a Cozinheira, com presença e voz hipnotizantes, também deixando marcado um importante momento da sua trajetória profissional.

Gabriella Pace, Giovanni Tristacci e coro

Acostumada a viver “mocinhas” e heroínas nos palcos líricos, Gabriella Pace experimentou o outro lado da moeda: uma vilã! Ao interpretar a Fada Morgana, a soprano, claramente muito bem dirigida, apresentou um dos seus melhores trabalhos cênicos, com grande presença. Vocalmente, esteve sempre bastante segura, como de hábito.

Giovanni Tristacci ofereceu praticamente uma master class como o Príncipe hipocondríaco. Com uma performance vocalmente luminosa, o tenor mais uma vez demonstrou ser um dos artistas mais completos e qualificados da nossa lírica na atualidade – o que vem fazendo, aliás, desde antes da pandemia. Cenicamente, Tristacci reuniu todas as facetas do Príncipe: de deprimido a apaixonado; de um despreparado para assumir o trono ao herói que se aventura enfrentando perigos. Tudo sem abrir mão de um certo tom ridicularizante na medida exata.

Eu poderia indicar uma boa dúzia de cantores que deveriam ser obrigados a assistir a todas as récitas da produção apenas para ver se aprendem alguma coisa na aula de Tristacci.

Completaram o elenco de solistas a contralto Nathalia Serrano (Linette), a mezzosoprano Eleonora Bondar (Nicolette), o tenor Mikael Coutinho (Mestre de Cerimônias) e o baixo Orlando Marcos (Arauto).

O Coro Lírico Municipal, preparado por Mário Zaccaro, apresentou uma performance cênica acima da média para os coros brasileiros, como adiantei alguns parágrafos acima. Sob o aspecto vocal, o conjunto melhorou bastante depois de um início um tanto estridente – talvez por conta do volume excessivo da orquestra.

A Orquestra Sinfônica Municipal apresentou-se muito bem, com sonoridade clara e precisa, especialmente na célebre Marcha. E se é verdade que, em alguns momentos, Roberto Minczuk poderia ter segurado um pouco o volume do conjunto, é verdade também que nesta obra, por suas características peculiares, esse “defeito” costumeiro do regente incomodou bem menos que o habitual. Merece destaque o excelente trombonista  Hugo Ksenhuk, que tocou no palco durante o prólogo e apresentou pleno domínio técnico do seu instrumento.

Dispensável, apenas, foi a subida do elevador do fosso no momento dos aplausos, para que a orquestra (e o regente, é claro) ficassem bastante em evidência. Com isso, o público ficou com a visão encoberta dos cantores que ainda estavam no palco. “Mas e daí?”, deve ter pensado alguém naquele elevador.

La Fanciulla del West adiada para 2023

O zunzunzum começou na mesma sexta-feira da estreia da ópera de Prokofiev. Eu já tinha deixado o teatro quando a informação chegou: a ópera La Fanciulla del West, de Giacomo Puccini, que deveria encerrar a temporada lírica oficial do TMSP com récitas a partir de 25 de novembro, foi adiada para 2023.

O motivo, segundo um comunicado interno emitido pela organização social Sustenidos ao qual Notas Musicais teve acesso, foi “a iminente necessidade de manutenção do sistema de automatização de varas cênicas e elevadores do palco, e tendo em vista ainda uma maior economicidade para fazer frente aos desafios orçamentários (…)”. Como se pode observar, parte desse palavrório empolado sugere, além da questão técnica, também falta de verba.

O TMSP justifica o cancelamento/adiamento exatamente com o propósito de evitar cancelamentos (???): “Essa medida tem o objetivo de evitar transtornos maiores ao público, com o risco de cancelamentos de récitas devido a problemas técnicos”. Acrescenta que o sistema foi instalado na reforma de 2008 e “tem apresentado falhas pelo desgaste da utilização e por falta de atualizações no decorrer do tempo”, mas não esclarece quem deixou de cumprir as suas obrigações com essa manutenção/atualização.

A casa informa ainda que o adiamento da obra de Puccini “não impacta na meta de óperas para 2022, visto que já cumprimos com a quantidade de títulos estipulada em contrato”, embora não deixe claro se os títulos apresentados na série Ópera Fora da Caixa integram essa conta. Por fim, diz que “os concertos seguem confirmados” e que incluirá “novas récitas (SIC) no período em que ocorreria a temporada desta última ópera”.

As informações sobre La Fanciulla del West já foram retiradas da página de programação do site do TMSP, mas, até o presente momento, assinantes da temporada lírica não receberam qualquer comunicado oficial sobre o cancelamento/adiamento da produção, devolução de valores e/ou opção de transferência do crédito para 2023. Isso tem nome: chama-se “falta de respeito”.

Falta transparência pública às audições do TMSP

O Theatro Municipal de São Paulo tem realizado audições para a seleção de cantores para determinados personagens das suas produções líricas. Até aqui, tudo normal. Os problemas começam quando a casa não é transparente com o resultado dessas seleções. Dois exemplos recentes:

1- Em 23 de junho, o TMSP abriu audições para vários personagens da ópera O Amor das Três Laranjas, e prometeu que até 19 de julho seria publicada em seu site a lista de candidatos aprovados para a segunda fase. Essa lista não constou de publicação à parte, mas pelo menos foi incluída na notícia original sobre as audições. A casa prometeu também divulgar em seu site a lista definitiva dos selecionados até o fim de julho, mas até hoje não o fez.

2- Em 15 de agosto, o Municipal paulistano abriu audições para alguns personagens da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, que deverá ser apresentada na temporada 2023. Prometeu divulgar em seu site os selecionados para a segunda fase até 29 de agosto, mas não o fez. O resultado final estava previsto para ser publicado até o final de setembro, mas, de novo, nada consta do site da casa.

O Theatro Municipal de São Paulo, por sua natureza pública, tem a obrigação de dar transparência pública aos resultados dessas audições. Que tal começar a exercer essa transparência?

Fotos: Stig de Lavor.

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