A soprano Ludmilla Bauerfeldt foi o grande destaque do concerto que homenageou o centenário de nascimento de Renata Tebaldi no TMRJ.
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
& Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB)
25 de outubro
Renata Tebaldi e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Priscila Bomfim, regente
Ludmilla Bauerfeldt, soprano
Mariana Lima, soprano
Tatiana Carlos, soprano
Na última terça-feira, 25 de outubro (Dia Mundial da Ópera), o concerto Renata Tebaldi e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro prestou homenagem aos 100 anos de nascimento da célebre soprano italiana – uma das maiores cantoras líricas do século XX e, por que não?, da história da ópera. O leitor interessado encontra um resumo sobre a carreira de Renata Tebaldi (1922-2004) em texto assinado por Marcos Menescal no programa de sala do concerto, disponível em PDF no site do TMRJ (acesse-o aqui). No mesmo artigo, o autor fala brevemente sobre a histórica rivalidade entre Tebaldi e Maria Callas.
A apresentação de terça-feira resultou de uma parceria entre o Municipal e a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), e deveria contar com a participação de quatro solistas (Flávia Fernandes, Ludmilla Bauerfeldt, Marianna Lima e Tatiana Carlos), todas sopranos, cada qual com a responsabilidade de interpretar duas árias de óperas cantadas por Tebaldi no próprio Theatro Municipal do Rio de Janeiro entre 1951 e 1954. A soprano Flávia Fernandes, no entanto, teve uma indisposição e não pôde participar do concerto.
Marianna Lima iniciou a sua apresentação com a ária Vissi d’arte, da ópera Tosca, de Giacomo Puccini. Seu timbre é bonito, e tal beleza desfilou por toda a região média da sua voz. Na região aguda, porém, essa beleza se perdeu, e a qualidade da afinação oscilou. Era visível o esforço da soprano para entoar as notas mais altas, emitidas sem muito apuro técnico.
Não muito diferente foi o desempenho de Tatiana Carlos, a primeira das solistas a cantar. Em Pace, pace, mio Dio!, da ópera La Forza del Destino, de Giuseppe Verdi, a soprano apresentou problemas de afinação nos agudos e médios inseguros, para dizer o mínimo. Mesmo assim, era nítido que havia ali uma senhora voz. Cabe à artista domá-la, aperfeiçoá-la tecnicamente, para que possa enfim explorá-la em alto nível.
Fiquei com uma impressão muito forte de que tanto Marianna Lima quanto Tatiana Carlos, cientes dos problemas que enfrentaram em suas primeiras árias, voltaram inseguras para a segunda metade do concerto.
Lima literalmente “enfrentou” a partitura de Umberto Giordano na ária La mamma morta, da ópera Andrea Chénier. A dificuldade que lhe foi proporcionada pela peça mostrou-se claramente além das suas possibilidades vocais e interpretativas, pelo menos no estágio atual do seu desenvolvimento. Já Carlos ofereceu uma O patria mia, da ópera Aida, de Verdi, que merece as mesmas observações já apontadas em sua ária anterior.
De Violetta a Mimì, não necessariamente nessa ordem
O brilho maior do concerto em homenagem à Renata Tebaldi pôde ser observado na voz preciosa e na arte de Ludmilla Bauerfeldt. Com a mencionada indisposição de Flávia Fernandes, Bauerfeldt assumiu uma das árias da colega e acabou apresentando no Municipal três peças, em vez das duas previstas.
Percorrendo um caminho cronologicamente inverso na história da ópera italiana, a soprano se apresentou ao público oferecendo com expressividade – e o devido apuro – Donde lieta uscì, solo de Mimì no terceiro ato da ópera La Bohème (1896), de Puccini. Ainda na primeira parte do concerto e voltando nove anos no tempo, Bauerfeldt interpretou a refinadíssima Ave Maria, de Otello (1897), de Verdi. Sua abordagem a este momento tão íntimo, em que Desdemona pressente o seu destino trágico, foi delicada, com uma voz à altura do desafio, ainda que talvez tenha faltado a profundidade que a cena requer. Em um concerto, não chega a comprometer.
Outro desafio a aguardava, e dando um verdadeiro salto no tempo, voltando nada menos que 44 anos até 1853, ano de estreia de La Traviata, do mesmo Verdi. Violetta Valéry é uma das mais cobiçadas personagens dentre todas as óperas, verdadeiro sonho de consumo de incontáveis sopranos. A sequência final do primeiro ato da ópera (que inclui o recitativo È strano…, a ária Ah, fors’è lui, e a cabaletta Sempre libera) foi a passagem escolhida para encerra a noite.
A segurança com que a Bauerfeldt cantou a ária e a sua arrebatadora interpretação da cabaletta deixaram transparecer uma artista completa, de amplos recursos. Todas as notas estavam lá, alcançadas sem esforço aparente, e a sua voz “correu” maravilhosamente pelas frases que exigem agilidade. A emissão impecável e a ótima projeção completaram os predicados dessa soprano de alto nível: uma linda “Violetta” oferecida à memória de Renata Tebaldi.
Registre-se que o tenor Eric Herrero, diretor artístico da casa, cantou de um camarote ao lado do palco os versos do personagem Alfredo durante a passagem da Traviata. Uma brevíssima participação em uma noite em que as estrelas eram as mulheres.
Sonoridade coesa e dinâmica imprecisa
A Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência de Priscila Bomfim, de modo geral acompanhou bem as solistas. Uma sonoridade coesa, com destaque para a segurança dos metais, e boa articulação foram os pontos fortes do conjunto. Faltou à regente uma atenção maior ao volume da orquestra, que em algumas passagens estava desnecessariamente alto. Fez falta também, em alguns momentos, uma dinâmica mais acurada.
Assim, a Abertura de La Forza del Destino recebeu interpretação correta, mas sem o emprego de maior personalidade, o mesmo se podendo dizer do Prelúdio do terceiro ato de Tosca. Já a música do balé da cena triunfal de Aida funcionou muito bem, mas foi o Prelúdio do quarto ato de Adriana Lecouvreur, de Francesco Cilea, que recebeu intepretação criteriosa e expressiva do conjunto e da regente.
A OSB apresentou também uma verdadeira curiosidade: a música do balé do terceiro ato do Otello verdiano. Talvez alguém se pergunte: e desde quando essa ópera tem balé? Verdi compôs um bailado para a apresentação parisiense de 1894, como era habitual naquele tempo na capital francesa. E ele mesmo, com extrema sinceridade, se referiu a essa inserção na ópera como uma “monstruosidade”. Não vou desmenti-lo: a música não tem absolutamente nada a ver com o restante da obra.
Priscila Bomfim é regente titular do Coro do Municipal
Sem muito alarde, Priscila Bomfim assumiu recentemente a função de regente titular do Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, substituindo Jésus Figueiredo, que, segundo pude apurar, tinha uma licença para tirar e está se dedicando à conclusão de alguns estudos. Figueiredo permanece como uma espécie de “regente colaborador” do Municipal, mas sem cargo fixo.
Fotos (de Daniel A. Rodrigues) cedidas pelo Theatro Municipal. Na foto principal, ao centro, a soprano Ludmilla Bauerfeldt.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
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