“Ainadamar”: Direito, Liberdade e Igualdade em um drama flamenco​

Yo soy la Liberdad porque el amor lo quiso!
Pedro! La Liberdad, por la cual me dejaste.
Yo soy la Liberdad, herida por los hombres!
Amor, amor, amor, y eternas soledades!

(Federico García Lorca, em Mariana Pineda, 1924).

Na próxima sexta-feira, 15 de setembro, Ainadamar, ópera do argentino Osvaldo Golijov com libreto de David Henry Hwang volta ao palco do Theatro Municipal de São Paulo. A obra estreou em 2003 e passou por uma revisão em 2005. Sua estreia paulista aconteceu dez anos mais tarde, em 22 de março de 2015.

Por uma feliz coincidência, Ainadamar traz um diálogo entre diferentes épocas: a época atual, na qual estão inseridos os autores; a primeira metade do século XX, época de Margarita Xirgu e de Federico García Lorca; e o início do século XIX, época em que viveu Mariana Pineda. Unindo todos esses momentos, está o desejo de liberdade: liberdade para se expressar, liberdade para amar.

mariana_pineda.jpg
Cena do ato final de Mariana Pineda, de Lorca, com Margarita Xirgu e cenário de Salvador Dali.

A trama se passa em um teatro do Uruguai, nos últimos momentos da vida da célebre atriz catalã Margarita Xirgu (1888-1969), e toma como base os escritos da própria Xirgu sobre a efemeridade da vida do ator. Para ela, quando a voz do ator se cala e quando os que o ouviram morrem, o ator também morre. Aqui, a morte se confunde com o momento em que a atriz veterana percebe que não poderá mais atuar, e começa a ensinar a futura geração de atores. Ela vai, pela última vez, representar Mariana Pineda, uma das primeiras peças de teatro escritas por Federico García Lorca (1898-1936). Foi quando Xirgu representou Mariana pela primeira vez, em 1927, em Barcelona, com cenário de Salvador Dali, e depois Madrid, que a carreira de Lorca deslanchou e ele se tornou conhecido. A imagem acima mostra a cena do ato final de Mariana Pineda, com Xirgu e o cenário de Dali.

Escultura na Pl. Mariana Pineda, em Granada

Desde a infância, a figura de Mariana Pineda (1804-1831) fez parte da vida de Lorca. Próximo à casa em que morava com seus pais, em Granada, há um monumento à ativista liberal, morta estrangulada pelo regime totalitarista do rei Fernando VII.

Mariana gozava de respeito social e era cortejada pelo chefe da polícia de Granada, Ramón Pedrosa Y Andrade. Em 1828, ela ajudou na fuga de Pedro de Sotomayor, um preso condenado à morte por conspiração. Foi para Pedro que Mariana bordou uma bandeira com as palavras “Ley, Libertad, Igualdad”. Por essa bandeira, Pedrosa a prendeu; por ter se recusado a entregar os conspiradores liberais, executou-a.

Bandeira bordada por Mariana Pineda

Na peça de Lorca, Mariana ama a Liberdade através de Pedro, que argumenta não poder dar um coração que não lhe pertence: “Mariana, ¿qué es el hombre sin libertad? ¿Sin esa luz armoniosa y fija que se siente por dentro? ¿Cómo podría quererte no siendo libre, dime? ¿Cómo darte este firme corazón si no es mío?“ Para ela, amor e liberdade se confundem: “Yo soy la Liberdad porque el amor lo quiso!” É curioso que, justamente no dia da estreia de Ainadamar em São Paulo, em 2015, a emissora espanhola Cadena SER publicou uma série de documentos, que oficializam a versão de que Lorca foi preso e fuzilado por motivos políticos.

Segundo os documentos, redigidos pela ditadura franquista 30 anos após a morte de Lorca e mantidos em sigilo até 2015, o poeta era acusado de ser socialista, maçom e homossexual, e foi morto após ter “confessado”. Lorca dizia não ser político, mas se considerava um revolucionário: “Eu nunca serei político. Eu sou revolucionário, porque não há verdadeiro poeta que não seja revolucionário”. Preso pelo fascista Ramón Ruiz Alonso (um dos personagens da ópera) no dia 16 de agosto de 1936, quando a sangrenta Guerra Civil Espanhola estava apenas começando, ele foi conduzido a Vizir, cidade próxima a Granada. Lorca foi fuzilado junto com dois toureiros e um professor, no local conhecido como Fuente Grande, fonte da água que chega a Granada por meio do canal construído pelos árabes no século XI. Os árabes chamavam essa fonte de Ainadamar, que significa “fonte de lágrimas”. Mal sabiam eles que, séculos mais tarde, em 18 de agosto de 1936, essas lágrimas jorrariam por Federico García Lorca. Como diz o libreto da ópera, “Que tragédia quando a carne jovem se desgarra e brota uma torrente de sangue quente”.

Na mesma época, Margarita Xirgu estava em turnê pela América Latina com obras de Lorca. Após a ascensão de Franco ao poder em 1939, Xirgu se exilou, vivendo na América Latina e se naturalizando no Uruguai, onde morreu em 1969. Além de atuar, a atriz foi diretora da Escuela Multidisciplinaria de Arte Dramática, em Montevidéu. Em Ainadamar, a nova geração de atores por ela formada ou influenciada é representada por Nuria, uma discípula de Xirgu.

Por intermédio de Margarita, Nuria entra em contato não só com a obra de Lorca, mas também com os ideais de Direito, Liberdade e Igualdade, palavras bordadas na bandeira de Mariana e escritas na obra de Lorca. Na produção de Caetano Vilela que volta ao Municipal de São Paulo, a bandeira tem três faixas horizontais: vermelha, amarela e roxa, como as da bandeira da Segunda República Espanhola. Margarita aparece envolta por ela, mas no fim a bandeira é passada para Nuria. A foto que abre este artigo mostra Marisú Pavón (que interpretou Margarita Xirgu em 2015) e, com a bandeira, Camila Titinger (a Nuria da montagem original).

No texto que escreveu em 2015 para o programa de sala do Theatro Municipal, Golijov afirma que o seu desejo, ao compor a ópera por encomenda da Sinfônica de Boston, era “poder reproduzir na partitura uma imagem sonora, visual e tátil” que teve. Ele descreve essa imagem como “uma granada flutuante, sangrando melodias de canto flamenco, arábicas, judias, cristãs”. A “granada” a que Golijov se refere é a romã (granada em espanhol), num jogo de palavras com a cidade de Granada – segundo ele, “cidade dos grandes poetas árabes medievais e do grandíssimo poeta Federico García Lorca, no século XX”.

A ópera é dividida em três atos ou, como os chamaram os autores, três imagens: Mariana, Federico e Margarita. Em cada uma delas, o coro feminino canta a balada de Mariana Pineda, com a qual Lorca começou e terminou a sua peça, porém cada vez em um clima diferente, de acordo com o desenrolar d​o drama​:

“¡Oh! Qué día tan triste en Granada,
que a las piedras hacía llorar
al ver que Marianita se muere
en cadalso por no declarar”.

Margarita recorda o seu primeiro encontro com Lorca, o sonho da República e o contato com Mariana Pineda. Na lírica ária Desde mi ventana, Lorca menciona o monumento a Pineda em Granada. No CD da Deutsche Grammophon (disponível no Spotify), o compositor diz ter temido que essa ária, segundo ele à moda antiga, não funcionasse bem.

Logo no início da obra, a rumba reina no canto de Margarita, simbolizando o seu exílio na América Latina. Ela revive a partida da Espanha rumo à América Latina, para a turnê com obras de Lorca, quando tentou convencê-lo a ir junto, a sair da Espanha, mas não conseguiu: ele preferiu ficar. Nesse momento há a referência a Havana, por onde a turnê passaria. O cenário se ilumina, o azul, frio, dá lugar a um tom ocre, mais quente; a música flamenca se torna alegremente latina. Mais que referência política, a passagem alude ao apreço especial de Lorca por Cuba, onde disse ter passado alguns dos melhores dias de sua vida. Segundo Golijov, era necessário um momento como esse antes da tragédia que se seguiria.

Passagem especialmente dramática e impactante é a condenação de Lorca. Ruiz Alonso entra cantando um flamenco no qual a influência árabe fica evidente. No canto, meio chamado, meio lamento, que parece ser referência a um ritual de sacrifício, Ruiz ordena que Lorca seja entregue — por Deus! –, que aquilo acabe logo. A voz aparece ecoando na cabeça de Margarita, em sua lembrança. Questionado sobre quais crimes o poeta teria cometido, Ruiz responde que causou mais dano com sua caneta que muitos com armas: “Hizo más daño, ¡Ay!, con su pluma que muchos otros con su arma”. Dialogando com a memória, Margarita responde que ele amava a poesia e a liberdade. Na ópera, na mente de Margarita, enquanto a orquestra derrama melodias cristãs, o poeta-revolucionário derrama o seu sangue por seu povo. É morto como Cristo: injustamente e entre outros dois condenados, um à esquerda e outro à direita. A cena do fuzilamento, com tiros ritmados que logo viram flamenco, ganhou na montagem paulistana, ao menos em 2015, um jogo de luz que uniu perfeitamente o sonoro e o visual. Os tiros nos atingiam pelos nossos dois principais sentidos.

Enquanto o poeta é morto pela Falange, ouvem-se vozes, representando tantos outros que tiveram a mesma sorte de Lorca. Ainadamar, a Fonte de Lágrimas que testemunhou a morte de Lorca, também se faz presente no canto, em sons de água, e, em 2015, na iluminação de Vilela.

A cena da morte de Lorca seria um fim possível para Ainadamar. Os autores, porém, optaram por fazer uma terceira imagem, que, centrada em Margarita, esfria o drama. Nessa terceira imagem é retomada a ideia de que Lorca e Mariana Pineda viveram através de Margarita, e que esta passa para Nuria e seus alunos a missão de fazer teatro. Fala-se da necessidade de continuar representando e buscando a liberdade. A Margarita de Ainadamar morre como a Mariana de Lorca: meio à la Sócrates, ao concluir que o homem é um cativo e não pode se libertar, prepara-se para deixar a prisão carnal, aspira pela liberdade do alto, a liberdade verdadeira.

–**–

Foto principal: TMSP (2015).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *