Gente Humilde

Bruno de Sá brilha no encerramento da temporada do Theatro São Pedro-SP.

Foi um encerramento de temporada digno do belo trabalho realizado pelo Theatro São Pedro. Na sexta-feira, 15 de dezembro, no acolhedor palco da Barra Funda, além dos músicos da Orquestra do Theatro São Pedro e da Orquestra Jovem da casa, dirigidos por Gabriel Rhein-Schirato, estavam, lado-a-lado, os membros da Academia de Ópera e uma grande estrela do canto lírico internacional, um artista imenso, que carrega consigo uma voz que é um milagre: Bruno de Sá. No programa, opera seria e bel canto.

Quando propôs a sua reforma, Christoph Willibald Gluck (1714-1787) sabia muito bem o que queria reformar: também ele já havia composto opera seria. Um exemplo disso é La Clemenza di Tito, que estreou em 1752, dez anos antes do início da famosa reformulação. O libreto, de Pietro Metastasio, o ícone da opera seria, é o mesmo que viria a ser adaptado, cinquenta anos mais tarde, por Caterino Mazzolà para a ópera de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791).

Foi com a abertura da obra de Gluck e com a bela interpretação de Bruno de Sá para Opprimete i contumaci que o concerto se iniciou, mas foi, sem dúvida, Lunge da te, mio bene, de Mitridate, Re di Ponto, de Mozart, com trompa obbligato, que permitiu que Bruno colocasse em ação a sua musicalidade, o seu fraseado requintado, com belo legato, e, sobretudo, a sua profunda sensibilidade. Como aliado, Bruno teve o solo de trompa executado com maestria por Henrique Alves. Antes, duas cantoras da Academia, a soprano Anastasia Liàntziris e a mezzosoprano Marcela Vidra, interpretaram de forma correta o belo dueto Ah, guarda, sorella, de Così Fan Tutte.

O grande sucesso de público da primeira parte do concerto, no entanto, veio com o virtuosismo de Furie di donna, de La Buona Figliuola, de Niccolò Piccinni (1728-1800). Foi o único número da noite, aliás, que integra o álbum Roma Travestita e que Bruno já havia cantado no concerto que fez há um ano no mesmo teatro. Foi o momento em que o sopranista estava totalmente à vontade.

Bastaram os vinte minutos de intervalo para passarmos do século XVIII para o início do XIX. Para começar, nada melhor que Gioachino Rossini (1792-1868) e o famoso finale primo da ópera L’Italiana in Algeri (1813), no qual Bruno liderou e deu segurança a outros oito solistas.

Os grandes momentos de bel canto, contudo, ainda estavam por vir com a bela Eccomi in lieta vesta, de I Capuleti e I Montecchi, de Vincenzo Bellini (1801-1835), e com a incrível cena do confronto da ópera Maria Stuarda, de Gaetano Donizetti (1797-1848), ao lado de cantores da academia. Se Bruno interpretou a primeira com toda a delicadeza e profundidade, com sentimento e belo fraseado, sem deixar que se instalasse a monotonia que sempre acomete essa ária quando interpretada com mediocridade, a segunda foi simplesmente eletrizante. Tentarei descrever o indescritível:

Bruno começou Figlia impura di Bolena no grave e, não contente com a ascensão natural da linha, soltou um sobreagudo em oscena e outro em piè, criando uma tensão extra. Foi uma escolha duplamente inteligente, pois, além de incendiária, levou a linha para uma região mais favorável à sua tessitura. Isso tudo com direito a um expressivo piano em Parli tu di disonore. Ao fim desse confronto, no meio da ária, alguém do público soltou um grito de ‘bravo!’ e começou a aplaudir, como se fazia antigamente quando, na pele de Stuarda, grandes divas disparavam a sua ira diante de uma Elisabetta perplexa.

De bis, Bruno preparou algo tocante e significativo – e nenhum olho saiu seco do teatro. Após ter lembrado que há apenas sete anos ele estava lá, na Academia do São Pedro, cantou, com participação de um coro formado pelos alunos dessa mesma Academia, um arranjo com trechos de Gente Humilde, de Garoto, Chico Buarque e Vinícius de Moraes, De Volta para o Aconchego, de Dominguinhos e Nando Cordel, e Na Carreira, de Chico Buarque e Edu Lobo (parte de O Grande Circo Místico).

Bruno de Sá, falando com o público

Se, ao longo do concerto, ao interpretar peças do barroco e do início do Romantismo, Bruno já havia dado uma demonstração de versatilidade, a qualidade de sua interpretação de obras da MPB apenas confirmou que para um grande artista não há barreiras de estilo. As três canções escolhidas não poderiam ter sido mais apropriadas. Na primeira, toda a singeleza que Bruno demonstrou não somente durante o concerto, mas na forma como tratou os membros da Academia, ao ter passado uma semana ensaiando com eles; na segunda, essa falta que ele sente de casa e da família, e a acolhida que recebe cada vez volta ao Brasil; e na terceira, a carreira frenética, o corpo que quer ficar enquanto a “alma de artista quer partir”“Ir deixando a pele em cada palco / E (…) jamais / Jamais dizer / Adeus”.

A orquestra, formada por músicos da Orquestra do Theatro São Pedro e da Orquestra Jovem da própria casa, embora por vezes um pouco forte demais, respondeu muito bem à regência dinâmica e precisa de Gabriel Rhein-Schirato. O desempenho foi bom tanto no Barroco como, principalmente, nas árias de Bellini e Donizetti.

Para o concerto no São Pedro, Bruno de Sá usou o elegante figurino que usa nos mais importantes palcos europeus, nos quais se apresenta ao lado dos mais prestigiados artistas. Para ele, o palco em que a sua carreira começou não vale menos que aqueles em que se consagrou. O público que o acompanha desde as primeiras notas não vale menos que aquele que paga muitos Euros para vê-lo. Bruno chegou discretamente, espreitando, e, na saída, para receber os cumprimentos, apareceu de mansinho, sem pompa, sem estardalhaço. Deu um abraço cheio de gratidão e humildade nos que lá estavam para abraçá-lo. Bruno-gente. “É gente humilde, que vontade de chorar”.

E fica a dica: o concerto será repetido neste domingo, 17 de dezembro, às 17h. No momento da publicação desta resenha, ainda havia ingressos (poucos) à venda.

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Fotos: a própria autora.

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