Jornada de expiação – “Suor Angelica” no Teatro Castro Mendes

A apresentação abriu a temporada 2024 da série “A Caminho do Interior”.

Suor Angelica (1918)
Ópera em ato único
Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Giovacchino Forzano (1883-1970)
Teatro Castro Mendes (Campinas-SP), 09 de maio de 2024
Direção musical: Cinthia Alireti
Direção cênica: Caio Bichaff
Cenografia: Luisa Almeida
Suor Angelica: Mayra Terzian
La Zia Princessa: Nathalia Serrano
Suor Genovieffa: Isabella Luchi
Suor Osmina: Suzy Amaral
La Badessa / La Zelatrice: Rafaela Duria
Suor Dolcina / La Sorella Infirmiera: Alessandra Wingter
Prima Sorella Cercatrice: Renata Fausto
La Maestra delle Novizie/ Seconda Sorella Cercatrice: Simone Luiz
Una Novizia: Cintia Cunha
Le Converse: Nathielle Rodrigues e Carolina Janson
Piano, órgão e celesta: Fernando Carrera
Orquestra Sinfônica da Unicamp

Na quinta-feira, dia 09 de maio, o público campineiro pôde conferir a primeira de uma série de récitas de Suor Angelica (1918), ópera de Gicacomo Puccini, com libreto de Giovacchino Forzano que percorrerá o interior do estado de São Paulo dentro do projeto outrora denominado A caminho do interior, encabeçado pela Cia. Ópera São Paulo – que apresentou, nos últimos dois anos, respectivamente “Paggliaci” (música e libreto de Ruggero Leoncavallo, 1892) e “Cavalleria Rusticana” (música de Pietro Mascagni e libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, 1890).

Essas obras têm como característica comum o fato de serem curtas. Embora isso não signifique que sejam musical e cenicamente fáceis, sua menor duração serve bem ao propósito do projeto, de montar um espetáculo de custo reduzido, permitindo não apenas que jovens cantores tenham espaço de atuação num gênero cujo mercado é ainda bastante restrito, mas também que plateias desacostumadas com espetáculos operísticos possam tomar contato com tais produções, ampliando os seus gostos artísticos. Esta Suor Angelica teve o seu elenco formado por participantes de diversas edições do Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, outra iniciativa importante da Cia. Ópera São Paulo por revelar talentos brasileiros e estrangeiros.

Volto a repisar uma questão que já discuti ao resenhar O Barbeiro de Sevilha, montado pela Uniopera em abril deste ano: num momento em que artistas são surpreendidos com uma sequência de produções operísticas sendo canceladas de norte a sul do Brasil, é salutar ver um projeto como este ser viabilizado e encontrar o público, que é a razão de ser do teatro. Portanto, de antemão o projeto merece ser congratulado, sobretudo o responsável pela Cia. Ópera São Paulo e diretor geral e artístico deste espetáculo, o incansável Paulo Esper, mas também o Consolato Generale d’Italia em São Paulo e o Istituto Italiano di Cultura San Paolo, responsáveis pelo seu fomento.

A obra em questão integra o Trittico, conjunto de três óperas em um ato de Puccini estreadas no Metropolitan de Nova York em 1918, e agora representadas muitas vezes separadamente – as demais são Il Tabarro e Gianni Schicchi, esta última uma obra-prima de comédia e a mais encenada das três.

Suor Angelica se passa num convento nas imediações de Florença em fins do século XVII. O libreto aponta como indicação cênica a existência de uma igrejinha, do claustro e do cemitério. Trata-se, portanto, de um pequeno mundo que subsiste em si mesmo, do qual as internas não precisariam ou poderiam sair. Fabiana Crepaldi faz uma pormenorizada apresentação do enredo em texto que antecede a primeira exibição da ópera, cuja leitura recomendo. Limito-me aqui a trazer os elementos do enredo que colaborem para a leitura que faço da encenação objetivo desta resenha.

A encenação reduz os elementos cênicos a um painel de Luisa Almeida que ocupa todo o palco ao fundo, representando a arcádia do convento, a partir da qual se advinha o seu interior. No primeiro plano, à esquerda, há a base de uma fonte, e ao fundo, uma escultura de uma mulher assemelhada a uma ninfa, que as internas associam à Virgem Maria – nada mais cabível, dado que o Renascimento italiano, que teve em Florença um dos seus principais palcos, apoiou-se na estética oriunda da Grécia antiga para esculpir estátuas cristãs. Esta imagem será, na porção final do espetáculo, colocada em perpendicular, fazendo com que o espectador divise a criança que está agarrada à ninfa, anunciando-se o vínculo entre Angelica e o filho.

Mayra Terzian na cena final de Suor Angelica

A ação se dá na porção esquerda da cena, dado que o restante do palco é ocupado pela orquestra – a exemplo de tantos teatros do interior, o Castro Mendes não tem fosso. Se isso obriga os músicos a dividirem espaço com a cena, limitando-a, dá ao todo uma grande intimidade, além de desvelar ao público o funcionamento da orquestra, noutras palavras, a magia que faz o espetáculo acontecer. Este posicionamento pode prejudicar o elenco, que terá mais dificuldade de enxergar as indicações de entrada dadas pela regente. Isso, felizmente, não se deu na première de Suor Angelica, cantada por um elenco de onze solistas que primaram pela homogeneidade, com alguns destaques.

No grupo estão postulantes, noviças, irmãs e a abadessa, uma hierarquia religiosa que ocupa das candidatas ao claustro às que se preparam para assumir a identidade de “irmãs” – quando, enfim, adentram efetivamente este mundo, professando votos de pobreza, castidade e obediência. Há entre elas uma melancólica sintonia, denotada desde os suspiros da irmã Genovieffa, cujo singelo desejo é encontrar um filhote de cordeiro e tocar-lhe o focinho frio, até o mal disfarçado sofrimento da irmã Angelica, ante a ausência de contato com a família.

A música do espetáculo, executada com competência pela Orquestra Sinfônica da Unicamp, sob a regência de Cinthia Alireti, é melodramática, de cunho ilustrativo: os sinos a marcarem os tempos lentos e a solidão, os trêmulos da orquestra fazendo emergir os descompassos dos corações. A visita inesperada da tia elucida ao público os motivos que levam Angelica ao claustro: ela vivera uma paixão escusa e tivera um filho, do qual foi afastada logo após o parto, sete anos antes, após o que é obrigada a se internar naquele convento. As indicações cênicas do libreto da ópera matizam as reações da tia, a testamenteira de Angelica, que procura disfarçar a piedade que tem pela sobrinha, a quem visita com o fim prático de fazer a disposição da herança devido ao casamento da irmã da jovem. A encenação de Caio Bichaff procura criar uma tia puramente calculista, mesmo no momento em que narra a morte do filho de Angelica, apesar de ressaltar todos os cuidados dispensados ao menino ao longo da sua doença.

Suor Angelica não conseguirá sobreviver à notícia. Conhecedora dos benefícios e malefícios de toda a sorte de ervas, caberá a ela preparar a poção que acabará com a sua vida e, assim, com o seu sofrimento. Ao ato se sucede a tomada de consciência de que o cristianismo fecha as portas do paraíso aos suicidas, o que a impediria de encontrar o filho. A contrição de Angelica fará, no entanto, com que os céus a perdoem. O libreto aponta como indicação cênica uma mutação: o céu escuro torna-se “resplandecente com luz mística”. Surge em cena a “Rainha do conforto” e, diante dela, uma criança loura vestida de branco, que abraçará a mãe moribunda.

A encenação faz bom uso dos elementos mínimos dos quais dispõe, atingindo alguns resultados admiráveis. Nem todas as freiras vestem hábito, e isto aparentemente independe do seu grau no convento. Se tal escolha dá leveza à cena – Angelica, por exemplo, usa um belo vestido rosado que combina com a atmosfera primaveril –, confunde a leitura do público. Uma delas usa um traje típico de enfermeira, com touca, o que deixa o espaço com a aparência mais de sanatório que de convento. Dentre as jovens há uma que demonstra ter deficiências cognitivas, boa escolha da encenação, uma vez que esses espaços historicamente foram utilizados para a “desova” de mulheres que caminhavam na contracorrente de padrões, a exemplo das mães solteiras e das portadoras de deficiência mental.

Elenco de Suor Angelica

Há, no entanto, soluções menos bem-acabadas, que podem ser aprimoradas ao longo da turnê da companhia. Por exemplo, algumas cantoras e atrizes são mais econômicas que outras no uso de maquiagens. Outras usam mesmo esmaltes coloridos nas unhas, o que é incabível aos papéis que desempenham.

Há, também, um problema de acabamento da encenação que começa na cena em que Angelica prepara o veneno, e perdura até o fim do espetáculo: as demais irmãs continuam no proscênio durante todo o ato, quando, segundo as indicações do libreto, deveriam estar entre o cemitério e a arcádia. Esta opção torna inverossímil a morte de Angelica, pois ela acaba ignorada pelas demais internas enquanto se contorce.

Por fim, a ausência de efeitos de iluminação no espetáculo prejudicou o tableau final. Não fica claro ao público que um milagre aconteceu, uma vez que a parte dos anjos é entoada pelas irmãs do mesmo lugar onde elas desempenharam o restante da cena, sem que se estabeleça qualquer diferenciação entre umas e outros. É preciso um efeito mínimo de iluminação para que a mutação fique clara aos espectadores. Creio que a verossimilhança do quadro teria sido ressaltada se as demais irmãs se situassem ao fundo da cena durante toda a cena do suicídio e expiação de Angelica, ao invés de estarem junto dela, e dali entoassem o coro dos anjos.

Houve mais homogeneidade no que diz respeito ao âmbito vocal do espetáculo. Neste critério, trata-se do melhor espetáculo da Cia. Ópera São Paulo a que já assisti. Estamos diante de onze solistas profissionais, mesmo que algumas sejam bastante jovens.

Destaquem-se Alessandra Wingter, egressa da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, que teve um belo desempenho no espetáculo de final de ano da Academia, em dezembro de 2023, ao lado de Bruno de Sá, e que, em Suor Angelica, desempenha dois pequenos papéis, o da Sorella Infermiera e o de Suor Dolcina; Rafaela Duria, prêmio Toriba Musical no Concurso Maria Callas de 2023, segura no papel de La Badessa; Isabella Luchi, soprano que neste ano se destacou como solista na Nona Sinfonia, de Beethoven, no Theatro Municipal de São Paulo, e, também, como vencedora do segundo prêmio feminino no Concurso Maria Callas, encantadora no papel de Suor Genovieffa, pelo brilho do seu timbre e pela delicadeza com que abordou o papel da irmã que, naquele mundo de abnegação, ainda insiste em ter sonhos; e sobretudo Mayra Terzian e Nathalia Serrano, nos papéis de Suor Angelica e da Zia Principessa.

Serrano, que já frequenta os palcos paulistanos em papéis comprimários e solistas, tem um belo e promissor timbre, e cenicamente esteve bastante bem no papel de uma mulher decênios mais velha que ela – a tia que dará a Angelica a má-nova concernente ao seu filho. O embate de ambas teve força dramática, e imagino que crescerá ao longo da temporada. Já Mayra Terzian, a Mamma Lucia da Cavalleria Rusticana encenada pela Cia. Ópera São Paulo no ano passado, demonstrou grande amadurecimento, arrebatando o público como a irmã primeiramente contida e, enfim, sanguínea, ao procurar a morte para ir ao encontro do filho. Além de ter estado segura vocalmente, exibindo nos momentos mais dramáticos uma marcante voz pontuda, Terzian conseguiu criar uma curva dramática para a sua personagem, algo desusado mesmo entre artistas mais experientes. É uma cantora/atriz que merece ser observada com atenção.

Nathalia Serrano (Zia Principessa) e Mayra Terzian (Suor Angelica)

Após incursionar por cidades como Americana, Araras e Rio Claro, esta Suor Angelica chegará em São Paulo nos dias 25 e 26 de julho deste ano, seguindo carreira pelo interior até fins de agosto. Convido fortemente o público paulista a prestigiá-la!


Consulte aqui a programação da série A Caminho do Interior.


Foto principal: Victor Lessa/CIDDIC/Unicamp. Demais fotos fornecidas pela soprano Isabella Luchi.


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