Uma “Cavalleria Rusticana” itinerante

Cavalleria Rusticana (1890)
Ópera em um ato

Música: Pietro Mascagni (1863-1945) 
Libreto: Giovanni Targioni-Tozzetti (1863-1934) e Guido Menasci (1867-1925)

A Caminho do Interior: temporada 2023 (junho a setembro)

Teatro Sérgio Cardoso, 30 de junho e 1º de julho de 2023

Direção Musical e Regência: Abel Rocha
Direção Cênica: André di Peroli
Direção Geral e Artística: Paulo Abrão Esper

Elenco:
Turiddu, jovem soldado: Alan Faria, tenor
Mamma Lucia, sua mãe: Mayra Terzian, soprano
Santuzza, aldeã: Lucrezia Venturiello, mezzosoprano / Marly Montoni, soprano
Alfio, carroceiro: Vinicius Atique, barítono
Lola, sua mulher: Marcela Bueno, mezzosoprano

Orquestra Sinfônica de Santo André
Madrigal Vivace de Jundiaí (regência: Vasti Atique)

Realização:
Consulado Geral da Itália em São Paulo,
Istituto Italiano di Cultura di San Paolo,
Cia Ópera São Paulo,
Amigos da Ópera de Jacareí,
Orquestra Sinfônica de Santo André, e
Vinicius Atique Produções

A Cia Ópera São Paulo, comandada por Paulo Esper, que no ano passado realizou uma montagem bastante competente de Pagliacci (ópera que estreou na capital e rodou uma dúzia de cidades do interior do estado de São Paulo), este ano produz a obra-prima de Pietro Mascagni, Cavalleria Rusticana (1890).

A respeito do projeto, patrocinado Consulado Geral da Itália em São Paulo e do Istituto Italiano di Cultura di San Paolo, eu falei enquanto analisava “Paggliacci”, e Fabiana Crepaldi escreveu no texto que antecedeu a estreia da produção, no qual ela igualmente trata, com a sua erudição costumeira, a respeito do Verismo, além de apresentar detalhes do enredo. Desejo compartilhar aqui, sobretudo, as impressões que tive assistindo às duas récitas da Cavalleria que introduziram a sua concepção cênica e o seu elenco ao público paulistano, antes de sua itinerância propriamente dita começar.

Conforme Esper explicitou em um de seus discursos que antecederam os espetáculos, para a viabilização deste projeto somam forças artistas profissionais e amadores. Os papéis solistas cabem a artistas profissionais. Enquanto isso, o fundamental e contundente coro da Cavalleria, a voz daquele povo dos rincões da Itália que goza e sofre com ferocidade análogas, cabe ao coro amador Madrigal Vivace de Jundiaí. Todos acompanhados, ao longo de sua itinerância, pela Orquestra Sinfônica de Santo André, sob a batuta do maestro Abel Rocha.

Penso que a análise crítica de qualquer obra artística deve levar em consideração as suas condições de produção. É inviável compararmos uma produção organizada pelos teatros de ópera consolidados ao redor do Brasil e um projeto como este, feito com uma verba bem mais enxuta, que de saída deve ser louvado pelo papel fundamental de descentralização cultural que desempenha.

Nascida e criada em Valinhos, cidade situada a meros 100 km de São Paulo, assisti a um concerto pela primeira vez quando criança, no Ginásio de Esportes da cidade, graças a uma iniciativa como esta. Os rincões de São Paulo (Assis, Araras, Cruzeiro, Ribeirão Preto são algumas das cidades pelas quais a produção passará) merecem descobrir que existe música além do sertanejo universitário.

Cavalleria Rusticana é uma excelente porta de entrada ao gênero operístico, porque é curta, traz um drama de amor com contornos bem marcados e a sua “tessitura” musical parece não poucas vezes querer resvalar à canção em dialeto, sobretudo à cançoneta napolitana, que esse público-alvo tem em sua memória afetiva, já que esta produção irá refazer a itinerância dos primeiros colonos europeus (em especial italianos), que deixaram vasta descendência pelo interior do estado.

A luz é um dos grandes trunfos da montagem, contribuindo na construção dos caracteres. Por exemplo, os tons de vermelho associados a Santuzza antecipam o desfecho trágico. Já a cenografia é prática: um telão pintado ao fundo apresenta a pequena vila onde se desenrolará o drama. À direita fica a bodega de Mamma Lucia, mãe de Turiddu. À esquerda, alguns elementos cênicos alusivos à religião, pela qual a passional Santuzza nutre uma relação ambivalente de amor e ódio. Estes, uma mesa e algumas cadeiras são os poucos itens em cena. A utilização de telões pintados é histórica e torna-se um elemento facilitador da itinerância – como bem lembra a maravilhosa burleta de Arthur Azevedo, O Mambembe, de 1904 (que Fernanda Montenegro reencenaria com reverência nos anos de 1950), na qual a companhia itinerante torna-se a incubadora que transforma a jovenzinha Laudelina, apaixonada por teatro, em uma atriz.

O canto, agora. O coro esteve melhor no segundo dia que no primeiro: mais seguro e solto. O fato de não se tratar de um coro profissional explica o nervosismo que, embora seja comum àqueles que sobem à cena, nesses casos acaba se tornando perceptível ao público. Estou certa de que, à medida que o interior for sendo vencido, o conjunto progredirá. No que concerne aos figurinos, é preciso que se destaque um descompasso entre o vestuário dos homens (casual, mais alusivo a elementos da urbanidade) e das mulheres (mais assemelhado aos trajes de época e campestres). Como as roupas contribuem na composição dos personagens, suponho que uma alteração nos trajes masculinos poderia ajudá-los a estarem mais desenvoltos em cena.

Marly Montoni (Santuzza) e Alan Faria (Turiddu)

Quanto aos solistas, o tenor Alan Faria foi um bom Turiddu, sobretudo no sábado (01/07), quando ele pôde cantar o papel todo entre o palco e a primeira fileira da plateia – próximo, portanto, da orquestra. A Lola da mezzosoprano Marcela Bueno foi também bem composta, explicitando-se a coqueteria da mulher que é a ex-namorada e o fruto do amor de Turiddu – papel pequeno que ela defendeu com graça do ponto de vista vocal e cênico.

Além desse par romântico malogrado, a ópera tem outros três solistas. A mãe de Turiddu, Mamma Lucia, coube à soprano Mayra Terzian, que o fez com segurança vocal, além de uma compreensão profunda da personagem – essa mãe italiana proverbial que se estraçalha pelo filho. O papel de Alfio, o marido traído de Lola, coube ao barítono Vinícius Atique, artista que há bastante tempo desempenha um trabalho consistente nos palcos do Brasil e da América Latina. Seu desempenho nesta Cavalleria não foi exceção à regra: além da interpretação contundente do ponto de vista cênico, exibiu belos timbre e fraseado.

Nesta presente montagem, houve alternância apenas da personagem Santuzza, cantada na sexta-feira (30/06) pela mezzosoprano italiana Lucrezia Venturiello, e no sábado (01/07) – e no restante da itinerância – pela nossa Marly Montoni, soprano. Venturiello exibiu um timbre bonito que o tempo ainda lapidará. Jovem, construiu uma Santuzza frágil, alquebrada pela traição.

Já o desempenho de Montoni deixou claro que Santuzza é o ponto focal desta obra de Mascagni. Acompanho o trabalho dessa cantora desde que me mudei para São Paulo, e vejo com alegria o quanto ela está evoluindo. Tão logo ela subiu ao palco, foi perceptível que tínhamos em cena uma artista.

A maturidade que Marly Montoni vem adquirindo como cantora e atriz resvalou de forma benfazeja à sua Santuzza, personagem originalmente composta como uma mistura de amor, abandono, solidão e egoísmo – lembremo-nos que ela denuncia abertamente Turiddu a Alfio quando se dá conta de que não pode ter para si o homem que ela ama de forma tão arrebatada. De sua chegada cambaleante à vila, à humildade com que ela aborda Mamma Lucia, à sua exaltação mística quando ela se une ao coro que glorifica a ressurreição do Senhor, ao seu rasgar-se inteira diante do homem que a abandona – Santuzza estava toda em cena, no corpo e na voz de Marly, que realizou um trabalho de tocante beleza.

Vida longa ao projeto A caminho do interior!

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