A humanidade de “Pagliacci” na cena do Teatro Sérgio Cardoso

Pagliacci (1892)
Ópera em prólogo e dois atos
Libreto e música: Ruggero Leoncavallo (1858-1919) 
Estreia: 21 de maio de 1892, no Teatro dal Verme, Milão (Itália)

Teatro Sérgio Cardoso, São Paulo, 25 e 26 de junho de 2022

Direção Musical e Regência: Abel Rocha
Direção Cênica: André di Peroli
Direção Geral e Artística: Paulo Abrão Esper

Nedda/Colombina (Soprano), atriz e mulher de Canio : Thayana Roverso
Canio/Pagliaccio (Tenor), chefe da cia. de teatro: Alan Faria (25/06) e Lucas Melo (26/06)
Tonio/Taddeo (Barítono), comediante: Rodolfo Giugliani
Beppe/Arlecchino (Tenor), comediante: Anibal Mancini
Silvio (Barítono), um camponês: Vinicius Atique

Orquestra Sinfônica de Santo André
Madrigal Vivace de Jundiaí

No final de semana dos dias 25 e 26 de junho, estreou, no paulistano Teatro Sérgio Cardoso, a montagem de Pagliacci, célebre ópera com música e libreto de Ruggero Leoncavallo que havia subido à cena pela última vez nesta cidade em 2014 (ano em que ela fez, no Theatro Municipal, dobradinha com a Cavalleria Rusticana). A presente montagem é resultante do trabalho conjunto do Consulado Geral da Itália de São Paulo, do Instituto Italiano di Cultura di San Paolo e da Cia Ópera São Paulo, capitaneada por Paulo Esper.

A união de forças é fundamental, à medida que, como o programa nos deixa antever, a produção passará por uma dezena e meia de cidades paulistas, entre os meses de junho e agosto deste ano (Santos, Jundiaí, Piracicaba, Presidente Prudente, Assis, São José do Rio Preto, Araras, Cruzeiro, Campos do Jordão, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Americana, Rio Claro e Jacareí). Na esteira da homenagem verista aos artífices da Commedia dell’Arte que é a ópera Pagliacci, a sua montagem paulista a fará palmilhar as sendas de São Paulo do mesmo modo como os elencos daqueles popularíssimos espetáculos teatrais o fizeram na Europa dos idos dos séculos XV- XVIII.

É obra para se louvar de saída, dado o esforço hercúleo que é, no Brasil espezinhado por um governo que repudia a cultura, mover solistas, coro e equipe técnica pelas centenas de quilômetros que separam nossas cidades; ainda mais com o objetivo de se apresentar uma ópera, “arte elitista”, como preconceituosamente ainda se apregoa. Para a efetividade deste objetivo, o programa do espetáculo nos faz ver que ele é correalizado pela Orquestra Sinfônica de Santo André, pelas prefeituras de algumas das cidades participantes, além do indefectível SESC e pela Atique & Atique Produções Culturais. O espetáculo ainda conta com o consórcio de quatro Orquestras Sinfônicas – as de Santo André, Santos, Ribeirão Preto e Americana – e com a formação coral Madrigal Vivace de Jundiaí.

Neste intento que é de formação de público, a escolha da obra é acertada, dado que, além de ser curta para os padrões do gênero (seus dois atos e prólogo computam menos de 1:30h de duração), Pagliacci tem uma porção de melodias célebres, sobretudo a ária Vesti la giubba – na qual o marido traído Canio apresenta ao público a sua alma torturada à medida que se traveste de Palhaço –, gravada desde sempre pelos principais tenores em atividade.

Escrita em 1892, é uma das primeiras obras do Verismo, corrente artística italiana que estabelecia diálogo indelével com o naturalismo literário de matizes francesas. O Verismo, como o naturalismo, tinha por intuito apresentar o mundo ao público com o máximo possível de realismo – intuito que Pagliacci explicita logo em seu (deslumbrante) prólogo:

“O autor buscou / pintar uma fatia da vida. / Sua única máxima é que o artista / é um homem, / e ele deve escrever / para os homens. / A verdade é a sua inspiração. / No fundo de sua alma, / um feixe de memórias / se agitaram um dia, / e com lágrimas reais ele escreveu, / e marcou o tempo com soluços! / Então, vocês verão / como se amam os seres humanos, / verão os tristes frutos do ódio, / espasmos de dor, / ouvirão urros de raiva / e risos cínicos. / E vocês, mais do que os nossos pobres farrapos de histriões, / devem considerar as nossas almas, / já que somos homens de carne e osso, / que, assim como vocês, / respiramos o ar deste mundo órfão.”

Este intuito de apresentar ao público uma “fatia de vida”, afastando-se tanto dos enredos quanto das convenções cênicas que por tanto tempo marcaram as cenas teatral e operística, une-se, em Pagliacci, ao esforço de desnudamento ao público da maquinaria do teatro.

Afinal, o que o público verá, segundo Tonio, a quem cabe o prólogo, é o fruto da maquinação de um autor: “As lágrimas que vertemos são falsas / não fiquem alarmados por nossa agonia / ou pela nossa violência”. A entidade autoral assim explicitada serve para que, ao mesmo tempo em que desfruta deste mimetismo tão perfeito da realidade, o público o perceba como teatro. Assim, arte e vida entremeiam-se.

O prólogo apresenta desde logo as regras do jogo. Pagliacci fará uma apropriação contemporânea das mascaradas da Commedia dell’Arte. Seu enredo gira em torno de um drama passional: Canio é o marido ciumento que se vinga da esposa Nedda quando ela o trai com Silvio, um campesino da freguesia na qual eles se apresentam.

Cada um desses personagens tem a sua contraparte na Commedia dell’Arte. Na peça-dentro-da-peça apresentada no segundo ato da ópera, Nedda é Colombina, Beppe (sucedâneo de Silvio) é Arlequim – amantes apaixonados, segundo a tradição – e Canio é o triste e por vezes violento (como nos ensina, por exemplo, a obra-prima cinematográfica Les Enfants du Paradis, de 1945) Pierrot. Depois de, pelas mãos de Tonio, flagrar a esposa traindo-o, Canio revê a cena da traição encenada diante do público, no pequeno palco da Commedia dell’Arte. O véu da ficção desvela a realidade. Ao fim e ao cabo, Canio mata Nedda e o amante dela, que vem em seu auxílio quando ela agoniza.

Como sempre ocorre no gênero operístico (afinal, a ópera é uma arte maior), enredos escabrosos acabam tocando as alturas do sublime. O drama envolvendo um duplo assassinato a sangue frio, que seduziria Zola (pai do naturalismo, autor que mergulhou nas sordidezes dos bas-fonds para deles extrair a vida que de lá pulsava), a nós causa apenas asco, desprega-se da sarjeta e alça voo graças ao poder da música, essa feiticeira.

Essa versão de Pagliacci foi cantada e tocada com um amor imenso por um grupo de artistas que conhece a luta que é viabilizar uma produção operística no Brasil de 2022.

Os solistas foram muito bem escalados. Todos têm physique para os papéis e os cantaram a contento. Malgrado a ária mais célebre da obra pertença ao tenor, o papel mais difícil é o de Nedda. A juveníssima e bela soprano Thayana Roverso desempenhou-o com frescor, imprimindo-lhe a ânsia da mocinha que tenta em vão impedir a sua alma de voar para longe do marido bruto. Foi, ainda, ótima atriz, sobretudo na cena em que ela susta as investidas de Tonio.

A Vinicius Atique coube o papel de seu amante, que ele desempenhou com brilho, imprimindo-lhe a leveza necessária, malgrado o seu timbre seja mais pesado do que pede o papel. O tenor Anibal Mancini, que é um passarinho, nasceu para o papel de Arlecchino – era fácil desejar que a sua pequena ária durasse meia ópera, tão perfeito é o seu timbre para o papel.

Rodolfo Giuliani, a quem coube os papéis do “Prólogo” e de Tonio, imprimiu a eles grande densidade dramática. Estávamos ali indiscutivelmente diante de um ator, tanto quanto de um cantor. Leoncavallo não suaviza no tratamento desse último personagem: “lo scemo”, o tolo, corcunda, disforme, besta, fera, vilão. Todos os preconceitos da época em que os deficientes físicos e mentais eram tratados a pauladas estão impressos em Pagliacci. Foi emocionante ver Giuliani fazendo o seu personagem deslizar do encantamento ao ódio por Nedda, da declaração de amor ao momento que se vê repudiado com termos semelhantes aos citados acima. Seu personagem é o mais multifacetado da ópera. Se é o homem cuja disformidade física e mental se imprime em seu caráter, também é aquele a quem o autor atribui por excelência a voz: e ele se dirige ao público justamente para explicitar a identidade que existe entre espectadores e atores/personagens como ele: um e outros, gente de carne e osso que respira “o mesmo ar neste mundo órfão”.

Por fim, o Pagliaccio da obra coube a Alan Faria e a Lucas Melo, respectivamente, no sábado e no domingo. Dois ótimos Canios, cênica e vocalmente.

Nesta ópera, os solistas nada seriam não fosse o coro – os citadinos que recebem o espetáculo da trupe de Canio, e a ele reagem. O Madrigal Vivace de Jundiaí subiu à cena com desvelo. Esteve por vezes desencontrado, sobretudo no sábado, mas no domingo estava nítida a sua maior solidez tanto no âmbito cênico quanto no musical. Aprimoramento ainda maior certamente se dará ao longo do giro que a produção fará pelo interior de São Paulo.

A encenação de André di Peroli, no geral, funcionou bastante bem. As cenas de conjunto, sobretudo aquelas de que faz parte o coro, podem ainda receber alguma atenção – creio, por exemplo, que prejudique a curva dramática da obra o fato de Nedda circular entre os populares, fazendo fotos e trocando sorrisos, no momento em que Canio entoa a ária que imediatamente antecede o seu assassinato.

No que diz respeito à cenografia e aos figurinos, cenários pintados e elementos minimalistas de cena recuperam a contento a atmosfera não só da Commedia dell’Arte quanto do teatro clássico. É, sim, possível montar uma ópera em São Paulo sem gastos astronômicos com o cenário. Para tanto, a iluminação (aqui a cargo do próprio encenador e de Gustavo Teodoro) pode servir de aliada, como se dá neste caso, marcando-se tanto o brilho da arte desses palhaços como os seus dramas.

E, finalmente, a Orquestra Sinfônica de Santo André, sob a batuta de Abel Rocha, desincumbiu-se de seu ofício com sucesso, o que não é pouca coisa, dado o tamanho mínimo do fosso em que ela se espremeu.

Neste sentido, eu gostaria de concluir destacando o tour de force do conjunto – solistas, coro, orquestra e maestro –, porque, malgrado nós carinhosamente apelidemos o Sérgio Cardoso de “o Metropolitan do Bixiga”, ele não é um teatro de ópera.

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