“Cavalleria” a caminho do interior

Quando se pensa em Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, logo vem à mente o Verismo, esse movimento que marcou a ópera italiana no final do século XIX. Para alguns autores, Cavalleria marca o início do Verismo na ópera; para outros, seu ápice. Todos, contudo, consideram a obra como o símbolo do movimento.

Segundo Andreas Giger, em Verismo: Origin, Corruption, and Redemption of an Operatic Term, publicado em 2007 no Journal of the American Musicological Society, a primeira referência ao Verismo de que se tem notícia não veio nem da ópera, nem da literatura: apareceu em 1867, em um texto de Guido Guidi sobre uma pintura de Antonio Puccinelli. Segundo Giger, Guidi parece ter usado o termo “veristi” para se referir a artistas que retratavam cenas contemporâneas, e não históricas. Posteriormente, surgiu um segundo uso do termo “Verismo”: um realismo exagerado, onde são retratados a miséria e o comportamento imoral das classes mais baixas, banindo qualquer traço de idealismo. Uma terceira maneira de conceituar o verismo é a que o vê como uma espécie de reação ao idealismo, ao classicismo e, sobretudo, ao conteúdo, à forma e à linguagem tradicionais. Há, ainda, os que vejam o Verismo simplesmente como uma reação ao Romantismo.

Para Giger, é muito mais útil e interessante pensar no Verismo nesse sentido, dado pelas críticas do século XIX, ou seja, como uma quebra com as convenções, do que o tomar, de forma tão restritiva, como o estilo derivado de Cavalleria e de Pagliacci (ópera de Ruggero Leoncavallo). “Visto dessa forma, argumenta ele, o Verismo não começa, mas é plenamente realizado na década de 1890 [com ‘Cavalleria’ e ‘Pagliacci’] e no início do século XX, e obras como ‘Don Carlo’, ‘Mefistofele’, ‘La Gioconda’ e ‘Otello’ não são obras-primas sui generis isoladas, mas marcos no caminho para essa realização”.

De fato, no final do século XIX, algumas convenções, tanto da estrutura musical quanto do vocabulário do libreto, começaram a ser quebradas. O vocabulário antiquado passou a dar lugar ao contemporâneo. Em Cavalleria, isso chega ao ponto de Santuzza bradar a Turiddu: A te la mala Pasqua, spergiuro!, e de a ópera acabar com um grito. As formas de cantar e atuar também sofreram modificações: as interpretações passaram a ser mais realistas, mais verdadeiras, a transmitir mais emoção.

O jovem compositor Pietro Mascagni e seus libretistas Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci tiveram dois meses para compor Cavalleria Rusticana a partir da novela homônima de Giovanni Verga, publicada em 1880: estavam correndo contra o tempo para poder inscrever a obra na segunda edição do Concurso Sonzogno (1888), que exigia que a ópera tivesse um único ato. Em 1890, a ópera foi proclamada vencedora do concurso e estreou no Teatro Costanzi, em Roma. Das quatro edições do concurso, Cavalleria foi a única ópera que entrou e ficou no repertório dos teatros.

No Avant Scène Opéra dedicado a Cavalleria e a Pagliacci, Bruno Poindefert dá a receita dessas óperas: “Tome uma intriga de uma simplicidade extrema (…), com algumas cenas de briga, uma dose de erotismo e duas doses de ciúmes e de violência. Escreva em dois meses uma música excessivamente estereotipada, mas enérgica e clara, destacando a voz (…). Adicione, finalmente, uma música bem próxima da música popular. Não se esqueça de unir todo o conjunto com um lirismo italiano, às vezes exacerbado, mas capaz de provocar fortes emoções (…)”.

O título Cavalleria Rusticana pode ser entendido como “código de honra rústico”. A “intriga de uma simplicidade extrema” se passa em um vilarejo siciliano, no domingo de Páscoa. Após um sombrio prelúdio orquestral, Turiddu, amante de Santuzza, canta uma siciliana para Lola. Enquanto os outros aldeãos se dirigem para a Igreja, em clima de Páscoa, Santuzza, amante de Turiddu, suspeitando da traição, vai à taberna de Mamma Lucia, mãe de Turiddu, e narra que, antes de partir para se tornar soldado, ele era noivo de Lola, mas quando retornou, a encontrou casada com Alfio. Ressentido, ele a seduziu, mas logo tornou-se amante de Lola. Após uma briga com Turiddu, Santuzza não resiste a denunciar a infidelidade a Alfio, que desafia o traidor para um duelo, garantindo à obra um fim trágico, com sabor verista.

É comum que Cavalleria seja apresentada junto com Pagliacci, de Leoncavallo. Esse “casamento” não é sem motivo, as duas óperas têm muito em comum: ambas curtas, têm praticamente a mesma estrutura (duas partes separadas por um intermezzo orquestral), são tipicamente veristas, são da mesma época (dois anos as separam), se passam em vilarejos do sul da Itália em dia de festa católica, seguem um roteiro de traição, ciúmes, delação e vingança, e em ambas encontramos características como violência, paixão, um canto forte, musculoso, e um teatro dramático.

Contudo, esse “casamento”, ainda mais na ordem cronológica, Cavalleria – Pagliacci, a mais comum, deixa sempre a última palavra com Pagliacci, cujo libreto é mais interessante e menos maniqueísta. Em Cavalleria, o único ponto de vista é o do coletivo (fazemos parte desse coletivo, sabemos de tudo) e só há um culpado, um traidor, punido com a morte. Já em Pagliacci, o assunto é a própria representação teatral e sua identificação com a vida real; não há ninguém totalmente culpado ou totalmente vítima. Musicalmente, também Pagliacci apresenta mais nuances, há momentos líricos que precisam ser tratados como tal, e a complexidade musical é muito maior: mudanças rítmicas bruscas são constantes e fundamentais ao desenrolar da trama, a orquestra participa ativamente dos acontecimentos.

Nesse sentido, foi particularmente interessante o percurso da Cia. Ópera São Paulo, de Paulo Abrão Esper, por essas duas óperas: no ano passado, foi apresentado Pagliacci; agora chegou a vez de Cavalleria. Na sexta-feira, dia 30 de junho, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, a obra de Mascagni subirá ao palco sob a regência do maestro Abel Rocha e com direção cênica de André di Prioli, e, de lá, segue para outras onze cidades do interior de São Paulo.

Paulo Esper me contou que Cavalleria Rusticana é uma de suas óperas preferidas: foi a primeira que ele assistiu em um teatro – no Municipal de São Paulo, em dezembro de 1981. Além disso, ao longo de sua rica história, a Cia. Ópera São Paulo trouxe, para cantar ou dar aula, três grandes Santuzzas: Fedora Barbieri, Elena Obraztsova e Fiorenza Cossotto.

Na estreia em São Paulo e no dia 02 de julho, no Teatro Polytheama, em Jundiaí, Santuzza será vivida pela jovem mezzosoprano italiana Lucrezia Venturiello, vencedora da edição 2022 do Concorso Lirico Zandonai, em Riva del Garda, na Itália. Nas demais apresentações, a soprano brasileira Marly Montoni assumirá o papel. Turiddu e Alfio serão interpretados, respectivamente, pelo tenor Alan Faria e pelo barítono Vinicius Atique, que também participaram, no ano passado, da montagem de Pagliacci.

Como ocorreu com a ópera de Leoncavallo, Cavalleria é mais um título do projeto A Caminho do Interior: uma iniciativa de difusão e divulgação da ópera italiana pelo interior do Estado de São Paulo, encabeçada por Paulo Esper, que conta com o patrocínio do Consulado Geral da Itália em São Paulo e do Istituto Italiano di Cultura di San Paolo. Após São Paulo e Jundiaí, a ópera seguirá por diversas cidades do interior – São José dos Campos (09/07), Presidente Prudente (13/07), Assis (14/07), Bauru (10/08), Ribeirão Preto (25-26/08), Campinas (06/09), Americana (21/09), Rio Claro (22/09) e Jacareí (24/09) –, até chegar ao litoral: Santos (28/09).

Cavalleria Rusticana (1890)
Ópera em um ato

Música: Pietro Mascagni (1863-1945) 
Libreto: Giovanni Targioni-Tozzetti (1863-1934) e Guido Menasci (1867-1925)
Estreia: 17 de maio de 1890, no Teatro Costanzi, Roma (Itália)

A Caminho do Interior: temporada 2023 (junho a setembro)

Quando: 30 de junho (sexta) e 01 de julho (sábado), sempre às 21h
Onde: Teatro Sérgio Cardoso – Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo.
Ingressos: Gratuitos – pelo site Sympla.

Direção Musical e Regência: Abel Rocha
Direção Cênica: André di Peroli
Direção Geral e Artística: Paulo Abrão Esper

Elenco:
Turiddu, jovem soldado: Alan Faria (tenor)
Mamma Lucia, sua mãe: Mayra Terzian (soprano)
Santuzza, aldeã: Lucrezia Venturiello (mezzosoprano) e Marly Montoni (soprano)
Alfio, carroceiro: Vinicius Atique (barítono)
Lola, sua mulher: Marcela Bueno (mezzosoprano)

Orquestra Sinfônica de Santo André
Madrigal Vivace de Jundiaí (regência: Vasti Atique)

Classificação Etária Indicativa: 12 anos

Realização:
Consulado Geral da Itália em São Paulo,
Istituto Italiano di Cultura di San Paolo,
Cia Ópera São Paulo,
Amigos da Ópera de Jacareí,
Orquestra Sinfônica de Santo André, e
Vinicius Atique Produções

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