O talento de Isabel Leonard passou por São Paulo

O cancelamento da letã Elīna Garanča, programada como o primeiro espetáculo vocal da temporada deste ano do Mozarteum Brasileiro, nos ofereceu a oportunidade de conhecer o trabalho da mezzosoprano norte-americana Isabel Leonard, que em março último apresentou-se pela primeira vez no Brasil, em Curitiba, em um concerto em comemoração ao aniversário da cidade.

Menos conhecida das plateias brasileiras que a colega, Leonard tem uma carreira respeitável nos palcos da América do Norte e da Europa, nos quais interpretou papéis notórios do repertório de mezzosoprano, sobretudo leggero, que tão bem se encaixam à sua voz e ao seu físico lépido, a exemplo da Rosina, de Il Barbiere di Siviglia (de Gioachino Rossini), e de Cherubino, de Le Nozze di Figaro (de Wolfgang Amadeus Mozart). Trata-se, no entanto, de uma artista versátil, já que lhe coube dar corpo, no Met, à perturbada Marnie, na estreia mundial da ópera homônima com música de Nico Muhly e libreto de Nicholas Wright, baseada no romance de Winston Graham (o mesmo que originou o clássico de Hitchcock, de 1964) – e ela o fez otimamente bem, tanto do ponto de vista vocal quanto cênico. Trata-se, portanto, de uma artista que merecia ser conhecida pelo público paulistano.

Para o concerto programado na Sala São Paulo em 27 de junho, Isabel Leonard escolheu um repertório que passeou pela sua carreira: de Rossini e Mozart a Bizet (Carmen) e Massenet (a Charlotte de Werther). Passou também pelo espanhol Manuel de Falla (Sete canções populares espanholas) e pelo mexicano Agustín Lara (Granada).

Acompanhando-a, estava a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, conduzida com um misto de energia e finesse pelo maestro norte-americano Constantine Orbelian. A orquestra teve a sua melhor performance dos últimos anos, julgo eu – sublinhamos, trata-se de uma orquestra acadêmica, composta por uma parcela de estudantes, além dos cachezistas profissionais, daí a ser destacável que ela tenha conseguido verdadeiramente protagonizar em alguns momentos puramente orquestrais, como a Bacchanale, de Camille Saint-Saëns e La Boda de Luis Alonso, de Gerónimo Giménez.

Os temas orquestrais foram escolhidos considerando-se o repertório que seria apresentado por Garanča, daí o descompasso existente em alguns momentos entre eles e os números cantados. A própria Bacchanale, por exemplo, introduziria as árias de Sansom et Dalila, que seriam cantadas pela mezzo letã. Mantida a peça neste concerto, provavelmente devido às dificuldades da orquestra de ensaiar outro tema, serviu como uma estranha introdução à dramática Air des lettres, “tour de force” da ópera Werther cantado deslumbrantemente bem por Leonard e um dos pontos altos da noite.

O concerto ocorreu em curva ascendente: Leonard começou a conquistar o público da Sala São Paulo ao longo das árias de Mozart, e cativou-o de vez ao abordar, com penetração, graça e dicção perfeita (o que foi, aliás, uma constante nos números em espanhol, francês e italiano que cantou), as Sete canções populares espanholas.

A segunda parte do programa foi especialmente interessante. Além da já mencionada ária de Charlotte, desta obra-prima de Massenet que é Werther, a mezzo abordou duas passagens de Carmen, repertório par excellence do seu registro: a Habanera e a Seguidilla.

Como Sansão e Dalila, Carmen é uma ópera complicada: escritas ambas em um período em que o tipo da femme fatale estava consolidado, apresentam duas mulheres astutas, que manipulam os homens que as amam – culpa da moral machista da época. Carmen, além de tudo, é sexualmente livre, o que era motivo de terror por parte dos homens pregressos – e ainda hoje o é. Embora o texto dessas óperas flerte com o contexto histórico em que nasceram, a sua música maravilhosa o transcende. Como interpretar, portanto, esses papéis hoje? Isabel Leonard escolheu uma forma comedida, procurando escoimar a interpretação vocal e cênica dos lastros vampirescos – e, portanto, dos laivos machistas – que deram origem ao papel. Fez um trabalho bastante bonito, sobretudo com a Seguidilla, ária que traz um tanto da lepidez que já é própria da cantora.

O concerto foi fechado por dois bis, Somewhere, de West Side Story (de Leonard Bernstein) e Tu n’est pas beau, a ária da bêbada da ópera-bufa de Jacques Offenbach, La Perichole, que ela fez com uma graça ímpar. Foi um belo concerto. Que venham outros, para que possamos conhecer ainda mais esta artista tão talentosa.

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Fotos: Cauê Diniz/Mozarteum Brasileiro.

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